Em Cartaz

ISTO É. 12/12/1979
Caio Porfírio Carneiro

Este é um romance “cheio de atalhos”, para nos valermos de expressão do autor sobre a “conversa encabulada” do personagem Gil com Chico, seu pai. Porque é por atalhos que Antônio Torres chega às evidências. Sempre foi mais ou menos assim nos livros anteriores. Nesta Carta ao Bispo, em particular, os atalhos se condensam, a plasticidade é menos difusa (em Antônio Torres a plasticidade é de meia-sombra e reversamente revelada) e a angústia humana, mais tensa e desesperante.

Num jogo curioso em que o tempo se retrai e se amplia em constante fusão e repulsão e o espaço geográfico vai da beira do regional à expressão ampla do universal, Antônio Torres alcança um nível de beleza literária onde tudo é alucinadamente palpitante. Desde a linguagem (fluente, contida, desestruturada, límpida e a fotográfica, mas sempre uniformizada no todo) ao epicentro da história – Gil – e tudo que dela (dele) emana, demanda e denuncia. Porque Gil é ele e sua consciência. Em essência, é isto. O conduto narrativo, em muitos pontos, está a indicar isto. A consciência, tal qual independente personagem, está sempre a acusá-lo, a lembrá-lo e a estudá-lo. E Gil, por sua parte, a viver os desencontros da vida e denunciar, pelo comportamento, as injustiças e desconcertos dela.

Daí as meias-voltas (atalhos), as muitas faces formais, para que o corpo ficcional se transfigure por inteiro.

Aqui a trama não se compõe nem flui num suceder narrativo natural. Muitos são os fragmentos, porque o que importa é a abordagem ficcional vista de vários ângulos, para que se alcance, em maior profundidade, o mundo de Gil e seus tormentos, o mundo (atualíssimo) que o cerca, com suas injustiças. Gil é apelo de salvação neste mundo conturbado. E ele próprio é personagem sem apelo. Nem o Bispo (a luz do túnel) o salvará, embora o Bispo implore, peça e chame.

Carta ao Bispo é obra para ser lida e sentida. Não temos aqui propriamente uma história, antes o espírito conturbado de uma época através de uma personagem. Porque Gil é o espírito da Bahia e é um pouco de todos nós e de nossos tormentos.

Livro bem-escrito, como tudo o que vem de Antônio Torres, e que pede espaço maior para análise mais detida, porque, apesar do pequeno número de páginas, estende-se ele da mais simples concessão ao limite perigoso da legibilidade, sem todavia transpô-lo. Aí está o difícil na arte literária tão nobremente realizada por este escritor de pulso que já alcançou (e com este livro soma mais um pouco) o justo lugar de destaque na moderna literatura brasileira.

Antônio Torres queixa-se ao Bispo pelos vencidos

Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Norma Couri

Fosse pelo pai, este primeiro filho dos 13 que teve estaria até hoje na enxada, pé na terra úmida do Junco, sertão da Bahia. Mas o menino aos três anos lia livro de Igreja, aos oito Castro Alves, aos poucos devorou toda a estante de um tal mestre Zezito, fogueteiro, e foi estudar em Lagoinhas. Não demorou muito, trocou a enxada pela Olivetti vermelhinha que quebrou muitas vezes.

Aos 39 anos e muitas máquinas depois, Antônio Torres publica seu quarto livro e avisa que o menino já está nascendo. Chama-se Carta ao Bispo. Quem escreve a carta é Gil, o personagem principal, depois de envenenar-se com formicida encontrada na cozinha do bispo. A partir daí é a caminhada pelo corredor da casa, e cada passo é um capítulo desse romance “brasileiro na latitude da sua consciência”.

Uma queixa ao bispo é a última coisa que nos-resta, quando ninguém mais está disponível, ninguém mais escuta. Para Gil, a carta foi o limite de sua resistência física, o lamento deixado nas marcas de sua mão no corredor da casa.

O personagem é o brasileiro derrotado. O político de interior que não se elege prefeito e vira cabo eleitoral de um cachaceiro, tocador de viola, no final vitorioso. Gil dá um desfalque, está com processo correndo na Justiça, sabe que a opção é a cadeia ou a morte. “Só que ele resiste”, diz Torres. “Um dado novo, surpreendente até para mim. Sabe, o livro é como filho, a gente cria de um jeito, ele cresce de outro”.

A surpresa foi maior porque Torres sabe ser este quarto livro continuação de um processo iniciado com o primeiro, Um Cão Uivando para a Lua (o brasileiro vencido pelo Rio de Janeiro), emendado no segundo, Os Homens dos Pés Redondos, e pelo terceiro, Essa Terra. Torres levou 30 anos para escrever o primeiro livro, uma história que não acabava nunca. Porque era tudo um livro só, ele percebeu: “Faulkner disse que a gente parte para o livro pensando poder contar tudo, mas vai morrer achando que não conseguiu”.

– A gente é menor do que o próprio material. Por exemplo, a influência católica alastra-se por todo o meu livro, graças ao fato de eu ter ganho o meu primeiro salário como sacristão. Depois rompi com a Igreja, revoltado (como Gil) pela maneira como os padres enriqueciam com a pobreza do sertão. Mesmo assim estou impregnado de religiosidade.

Carta ao Bispo são 128 páginas escritas em pedaços de madrugadas, nas férias, nas sobras de tempo, durante dois anos. “Às vezes”, diz Torres sorrindo, “roubando tempo do patrão”. Há muitos anos no Rio, trabalhando em jornal e publicidade (hoje é diretor de criação da Denison), Torres ainda se assusta com a cidade. Tem “a visão do medo, da loucura, do isolamento, da pressão, da prisão e que ela nos conduz”. E acha muito difícil viver aqui sem dor.

– É duro ser escritor no Brasil. Viver na Zona Sul, andar três quilômetros e de repente ver o Nordeste, a roça vindo para a cidade. Conviver com a Europa e o século XVII que estão ao nosso lado.

Para Torres, o grande romance desde século vai ser latino. Conversa na Cadetral, de Vargas Llosa, Pedro Paramo, de Juan Rulfo, Grande Sertão, de Guimarães Rosa, ou qualquer outro. “A América Latina tem muito a dizer. Uma realidade nada uniforme, muito rica, com uma língua marcada por incríveis diferenças regionais. Jorge Amado já disse que operamos na periferia. É verdade. Não estamos na órbita do poder dos grandes centros; nossos isolamentos é conseqüência do subdesenvolvimento. Daí nossa força. Há uma brecha, na medida em que não obedecemos as leis do consumo. Qualquer dia desses vão olhar pra gente e dizer que valemos alguma coisa”.

Antônio Torres tem dois filhos pequenos (Gabriel, 5, e Tiago, 2 anos), uma “casa de baiano” (ajeitada pouco a pouco por ele e a mulher Sonia nos muitos apartamentos por que passaram no Rio) e uma pergunta, sempre sem resposta, da qual tira impulso para continuar. “Escrevo, no fundo, para exercitar algumas respostas”.

Trás nos ombros, como todo escritor brasileiro atual, o peso de ter nascido depois de José Lins do Rego, Lima Barreto, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Vira mais um copo de uísque, e lembra que o peso é como o da máquina de escrever, simbolizando, no fundo, a enxada que ficou no Junco, a responsabilidade social imposta pelo pai. Outro dia voltou lá, relembrou casos, como os das desculpas para se afastar do Junco: qualquer inauguração de cantoneira para santo, qualquer reza para moribundo. Na poeira levantada pelo primeiro caminhão, a oportunidade de fugir da enxada e chegar à escola rural mais próxima, a 3 quilômetros de casa.

Antônio Torres não tem parado no caminho, não tem deixado o peso do passado atrapalhar. E falando mais dos nossos escritores gigantes do que do assimilado no Junco, ele diz:

– Mas o peso está lá, eu sei que está.

Sucessão e Superação

Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Jorge de Sá

Desde o seu romance de estréia, Antônio Torres mostrou-se propenso a realizar uma obra de características marcadamente nacionais. Centrado no eixo do regionalismo e apoiado na riqueza da oralidade, ele vem captando não apenas as implicações do homem rude com a sua terra, mas principalmente a forma brutal que conduz o brasileiro a uma possível compreensão Don osso processo histórico. Assim, seria quase impossível classificar a obra do criador de Um Cão Uivando para a Lua somente de acordo com uma das áreas do ciclo baiano. Com os pés no chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos problemas característicos, Torres recria personagens tão vivos quanto cada um de nós. Portanto, sua despreocupação com a universalidade do romance reflete uma fecunda brasilidade só alcançada pelos maiores escritores da nossa literatura. Consciente de que a arte literária não se faz com técnica apenas, ele mergulha por inteiro na construção de seus textos, percorrendo com seus personagens o difícil caminho que vai da consciência ingênua, em que a alienação nos coloca a serviço de ideologias estranhas a nós mesmo, até uma consciência critica, que problematiza o nosso real, conduzindo-nos a uma ideologia coerente com os interesses do povo brasileiro.

Logo se a obra de Torres foge do universal (no sentido apenas estético), cada vez mais se aproxima do centro nervoso de nossos impasses, tornando-se espelho de uma realidade latino-americana, repensando todo o seu contexto. Por essa razão, cada novo trabalho reescreve o anterior através de novos ângulos, conquistando novas formas de melhor avaliar as implicações sócio-econômicas no confronto entre a cidade e a roça. Nesse processo, Carta ao Bispo é a sucessão natural de Essa Terra. Mas é, também, a sua ultrapassagem.

Nessa ultrapassagem, o novo romance de Torres coloca em cena um aprendiz de político, apaixonado por seu povo e desejoso de arrancar Malhada da Pedra da marginalidade a que foi condenada. Verdadeiro “cavaleiro andante se torna viagem”, Gil amadurece e se desgasta tentando concretizar seus sonhos quixotescos. Sozinho, esmagado pelas armadilhas dos poderosos, sé lhe resta o suicídio como afirmação da sua luta e grito de alerta àqueles que constroem o destino de seus filhos com “metros de pano, litros de farinha, quilos de açúcar e nacos de carne”. Para que seu sacrifício não seja inútil, decide escrever ao Bispo Dom Luís, seu amigo e confidente. O conteúdo da carta, porém, será um eterno segredo.

Neste caso, que interesse pode despertar um romance cujo titulo anuncia uma carta que jamais será lida por nós? É exatamente nessa estratégia que o leitor se vê envolvido. Num ritmo vertiginoso, acompanhamos o fluxo da memória com que Gil reconstrói sua vida. Cada fragmento, cada fato que marcou a tumultuada existência do protagonista é um enigma a ser decifrado. No trajeto da cozinha à sala, verdadeiro corredor de lembranças, Gil espalha os estilhaços de ma verdade que pertence ao mundo. Na medida em que avançamos na leitura, percorremos as mesmas etapas e vamos recolhendo as frases que constituem o texto ignorado. E nos surpreendemos cumprindo a mesma função do escritor-narrador: selecionar e sintetizar para alcançar um todo. A mensagem cifrada passa a ser reescrita, fazendo de cada um de nós seu verdadeiro emissor à procura de receptores capazes de ouvir um grito parado no ar desde os primórdios da nossa colonização.

Os incríveis compassos da invenção

Correio Brasiliense
Marcilio Farias

O Romance tem aquela prerrogativa maior do Romancero, que é a linguagem extensiva, dilatadora e elastecedora das tensões verbais intrínsecas à narrativa. O romance moderno, fragmentou essa prerrogativa maior, fruto da herança e dos ensinos da traditio e instaurou formulações novas para extensão ou contração do jogo narrativo.

No Brasil, essa ruptura com a linearidade dos processos narrativos só veio a acontecer, em definitivo, a partir do único realmente primoroso romance de Machado: “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Isso depois de Sterne, de Scott, de James e principalmente, depois de clássicos do romancero adquirirem edições internacionais, como o caso do “Cid”.

A partir de Machado a situação se acomoda até Callado (que incorpora o pontilhismo jornalístico à formulação da narrativa do romance em um livro inigualável. “Kuarup”) e João Antônio. O que acontece então é uma explosão de postulações narrativas realmente impressionantes e com diversos autores. Abel Silva, Roberto Drummond, Carlos Gurgel, Álvaro Faria se inscreveram nesse fluxo fantástico que injetou algo novo e vigoroso na modorra falso burguesa do nosso romance anterior a essa fase.

Antônio Torres é um romancista que alia uma consciência fundamental dos processos narrativos historiais do romance (o que se evidencia pela rigorosa arquitetura da obra) a um sentido rítmico impressionante que sabe onde distender ao máximo a carga da linguagem: onde deve contê-la máxima ou mínima, em sua tensão de significâncias. Desde “Um cão uivando para a lua” que o itinerário inventivo de Torres se abriu, colocando-o um passo adiante do moderno ficcionismo latino-americano, situando-o pari passu com Cortazar, Astúrias e Llosa. “Os homens dos pés redondos” é uma alegoria impressionante: tal como “Essa terra”, talvez a mais profunda análise do millieu latino-americano.

“Carta ao Bispo” é uma excitante aventura narrativa, em saudabilíssimo exercício de proposições narrativas, aliado e correlato a uma penetração marcante de um fenômeno sócio-político visceral na formação do homo brasileiro: a odisséia interior da Bahia, e sua desagregação interna, à medida em que a convivência com o fato político (ou pliticoso comme il fault) vai colocando-o em xeque com sua estrutura íntima de emoções e expectativas.

Gil é símbolo. Torres retoma aqui ou melhor, amplia aqui aquela sua tendência fabulativa esboçada nas suas obras anteriores. No entanto, o peso do seu novo livro é reforçado pela aguda inventiva que espaceja as várias formas de captação das emoções em uma manipulação atenta e segura do apparat lingüístico.

“Agora ele está só, tão desgraçadamente só quanto no dia em que nasceu. Mas agora ele dispensa a parteira e já não precisa mais berrar ao mundo que está só”.

Gil é um símbolo. Mas que o personagem, através do qual se repassa toda a agonia do existir defasado, distendido, Gil é a clave da exploração narrativa de Torres. A alquimia de correspondências entre o agônico mover-se do personagem e o distanciamento critico do autor permite ao leitor, pela disposição e/ ou montagem ideogramática dos blocos narrativos (onde mesclam-se a narrativa clássica, o discurso interior e o fragmentarismo icônico) uma visão plurimorfa e plurívoca de um processo que in facto ocorre com o interior de Gil, o símbolo.

O romance possibilita uma recriação, do fluxo real dos sentimentos sob o ritmo ou compasso da intervenção crítica, analítica do autor. No caso de Torres, essa intervenção se faz em todos os níveis e instantes do processo narrativo, abarcando e abrangendo as mínimas feições tocadas pela sua analítica.

“Parecia até um desperdício, esta cidade: tanta árvore, tanta fronde, tanta franja, tanta flor a derramar-se sobre os alegres portões ensolarados que não escondiam a estupidez de honestos ferroviários que comem e cagam a fazem filhos e morrem no fiado, igualzinhos aos bêbados do petróleo, essa horda fedida e barulhenta que chegava de noite estourando gasolina, detonando dinheiro e enchendo a cara e depois caía na cama até a hora da buzina, levantar, lavar a cara e seguir para o campo do petróleo e uma vez na vida toma banho, uma vez na vida tem uma folga, troca os trapos e segue atrás do trio elétrico, crente que a vida é boa, pelo menos uma vez por ano”. (Página. 32).

O que mais define a excelência do criador é a sua disposição para o claro-aberto. A palavra prédispõe o que a possui, isto é, a utiliza, para a clarificação dos processos interiores, onde a energia existencial se move no silêncio, como se fosse plâncton e dunas. O dizer do romance postula antes de qualquer nada a atenção às grandes massas de significados (i.é.. de energia simbólica) que se movem no entre mear dos trechos. Clarificar o uso da palavra é abrir-se a toda manifestação do discurso criador, é o que a critica academicista chama de perfeição estética.

Torres mergulha no seu universo de significâncias com a disposição do guerreiro. O pique que imprime a sua narrativa é o equivalente ao pique interior das suas indagações enquanto e como criador. Li o livro n o mesmo dia que recebi, sem interrupções, em uma hora e meia. Terminei a leitura sem fôlego. A dose exata das marcações narrativas, a sutil trança que o real e a critica desse real tecem e retecem. Vão construindo um bloco maciço de emoção e frustrações, um mover-se uníssono de vida e antivada.

Pouco importa saber se Gil morre (após tomar uma superdose de formicida Tatu) sem conseguir o tão almejado contato com o Bispo, ao qual sempre desejou (desejava?) escrever uma carta. Morre como um rato, uma barata, um homem. Simplesmente morre. O comentário do Bispo, incidentalmente nos braços de quem poderia ter expirado, não poderia ser mais adstringente:

“Não sei mais se acredito em Deus ou se este homem tem sangue de cavalo.” (Página. 107).

O principal na criação de Antônio Torres é a seriedade proposicional de seu trabalho. Qualquer proposição (ensina-nos a lógica das formas) (formas que, no entanto, independem da lógica que o raciocínio ordenador engendra) possui em si a trajetória anterior de um estado ou vários estados de coisa. O romance possui atrás de si toda a história, toda ontologia. Torres demonstra conhecer bem essa realidade fenomênica: conhece-a e penetra em sua corrente com a mesma desenvoltura de quem sabe as possibilidades e limites (infinitas possibilidades, infinitos limites) do ser, da existência, do sofrimento e da paixão.

“Carta ao Bispo” e a indagação ontológica

Jornal O Norte – João Pessoa, Paraíba, 02/05/83
Hildeberto Barbosa Filho

Se Percy Lubbock escrevesse, hoje, o já clássico “A Técnica da Ficção”, não poderia prescindir do farto material disponível na narrativa de Antônio Torres, mormente em “Carta ao Bispo”. Sobretudo porque, privilegiando as formas de composição, ou seja, as estratégias do foco narrativo, teria, no aludido romance, as mais equilibradas experiências de uma narrativa moderna. Centrando a ação nos limites de um tempo diegético extraordinariamente curto (os instantes finais do personagem “Gil” que decide suicidar-se), o autor recorre a pluralidade dos recursos narrativos, principalmente no tocante ao terreno dos pontos de vista, buscando diluir a concentração dramática da ação principal. E, aguçando-a em outras seqüencias episódicas, consegue fornecer uma visão macroestrutural da trajetória do personagem, instaurando, assim, os alicerces do edifício romanesco em lugar de tecer os fios articulatórios da estrutura do conto.

Daí a narrativa em primeira pessoa, calcada sobremaneira nos dados da memória; a narrativa em terceira, mantendo a unidade da trama, e a presença recorrente do fluxo da consciência joyceano, remetendo para o universo caótico em que se debate o personagem. Nesse caso, se a narrativa opera, ordenadamente, um primeiro nível (o da fabulação), vai apontar, no espaço entretextual, para uma inquietação ideológica subjacente, traduzida na permanente indagação a respeito da condição ontológica do ser humano. Conseqüentemente, um exercício de narrativas superpostas, travando os rumos da narração e da reflexão. Por isso, no texto do escritor baiano, uma dimensão além da estética – o sentido filosófico. Em meio aos momentos cruciais do delírio da personagem, a linha episódica é interrompida (o que se faz constante na obra) por elucubrações dessa jaez: “O mundo está rodando. O mundo, mamãe, é um tonto, um alcoólatra de ressaca, um cego no meio do tiroteio. Esta vida é uma gangorra. Mas eu ainda quero rosetar. Rose-tar, mamãe. Cravar o espinho do cravo na roseira do mundo, cravar o meu espinho numa rosa aveludada, macia e cheirosa, cheirando a mulher.”

Logo, importa revelar em “Carta ao Bispo”, não somente a problematização conteudística das motivações recorrentes, isto é, o fluxo migratório e as suas irradiações temáticas: solidão, medo, opressão etc, como também o corte social na micro-região do “Junco” baiano, porém, fundamentalmente, o discurso maior sobre a existência. O que, diga-se de passagem, eleva a ficção de Antônio Torres a um plano universal.

Amor pelo país

Sobre “Carta ao Bispo” Veja – 5 de dezembro de 1979
Caio Fernando Abreu

A literatura brasileira, na década de 70, foi pródiga em contistas, um tanto avara em romancistas. Uma das poucas (e valiosas) exceções é o baiano Antônio Torres. Desde sua estréia, em 1972, com “Um Cão Uivando Para a Lua”, ele vem trabalhando nesse terreno. Depois de publicar “Os Homens dos Pés Redondos” em 1973, veio o grande sucesso de “Essa Terra”, em 1976. Fiel ao romance, ele publica agora este “Carta ao Bispo” – um livro pequeno, em número de páginas, mas tão denso, tão fluido, que pode ser lido de um fôlego só, ou lentamente, saboreando a linguagem. Em qualquer das duas hipóteses, o leitor descobrirá significados novos e surpreendentes.

“Escrever é sangrar”, dizia anos atrás João Antônio, autor de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, num de seus apaixonados depoimentos. É essa, principalmente, a sensação provocada por Antônio Torres. Ele sangra, sua, palpita e chora, em sua urgência de se expressar. Muitas vezes dispara, descontrolado, e a frase esquece vírgulas, parágrafos, toda sintaxe tradicional, preferindo acompanhar a memória e a emoção da personagem, Gil, surpreendido pelo autor numa situação-limite, extrema em que vacilam as fronteiras entre vida e morte, lucidez e loucura, coragem e covardia. Como a própria consciência da personagem, a linguagem tenta se organizar, e novamente se fragmenta, fracassa. Perdedor da vida, resta a Gil a vitória, ou pelo menos a escolha, da própria morte. Ao autor, por outro, segundo a epígrafe de Nietzsche, resta apenas arte, para “não morrer de verdade”. Essa arte, em Antônio Torres, é freqüentemente atingida, em cheio, através da palavra escrita.

AMOR DESESPERADO – “Carta ao Bispo” é a história de uma derrota. A derrota de Gil, “cavaleiro-andante de torna-viagem, sempre encalhando em algum lugar”, é também a derrota do homem brasileiro do nordeste, que fracassa mesmo quando tenta ser solidário com seus irmãos de fome e seca. Empenhado na luta política, na procura do amor, tentando ser responsável pelo destino dos outros, Gil só consegue assumir sua integridade no momento em que decide ser dono do próprio destino. A saída, então, é o suicídio. Se é certo ou errado, não importa: “O errado e o certo não é nem o errado nem o certo. Estou na minha estrada”.

Assim como sua personagem, o autor também assume, ou reafirma, seu destino de escritor, com a publicação deste livro. E de forma cada vez ainda mais segura, no extremo oposto do suicida Gil. Conquistando pouco a pouco uma linguagem e um universo próprios, inconfundíveis, Torres parece estar se preparando para ocupar um dos espaços deixados vagos com a morte de romancistas do porte de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Osman Lins. Voltado – sem proselitismos, o que é raro – para a realidade brasileira, ele é capaz de dizer com simplicidade coisas como “Olha as varandas, olha os coqueiros, bananeiras no quintal, fuxicos no portão (…) Terrinha bendita, terrinha maldita, gente feinha, gente bonita, lugarzinho que a gente reclama mas gosta, compadre”.

Em torno desse amor – desesperado, talvez suicida – por seu país é que gira a bela “Carta ao Bispo”, na mesma linha do anterior “Essa Terra”. Com a circunstância de que, em Torres, esse amor nasce mais do coração, das vísceras, que da cabeça, do raciocínio. Daí a paixão, o calor, o encanto poderoso do livro, e a maneira como ele atinge o leitor pelo caminho da emoção. Suas dúvidas tornam indispensável refletir sobre “este país trocado: cada macaco no seu galho”. “Carta ao Bispo” é um livro que, oportunamente, desmente a fragilidade da atual literatura brasileira, além de confirmar e ampliar a vigorosa posição de Antônio Torres dentro dela.

Desespero e solidão no universo de Torres

“Carta ao Bispo” Folha de São Paulo – 21 de outubro de 1979
José Monserrat Filho

Torres começa com Nietzsche, de epígrafe: “Resta-nos a arte para não morrermos de verdade.” Ou seja, o homem só consegue transcender através da arte, que seria outra realidade, criada e moldada pelo próprio homem a seu bel-prazer. Na realidade mesma, no mundo concreto em que vivemos, não há chance de transcendência. O homem não pode mudar o mundo para melhor, porque este não obedece à sua vontade. O homem é objeto, não sujeito.

A derrota de Gil, beijando um copo de veneno aos 40 anos, após escrever uma carta ao Bispo, viria, mais uma vez, confirmar esta impotência universal, agora num país especialmente propício ao fracasso humano, devido a condições sociais demasiado injustas e massacrantes.

Até que ponto Torres é fiel a Nietzsche? Até o desespero de uma visão solitária do mundo. A partir daí, há um escritor poderoso que constrói sua arte, não para fugir do mundo concreto, mas para enfrentá-lo, saber como ele é e como funciona na alma das pessoas. Há uma terra palpável, um povo “escabreado” que vive de cabeça baixa, uma revolta latente e uma vontade de lutar – “Queria salvar um lugar e um povo”.

Em cada frase, Torres procura furar e penetrar a realidade brutal, com aquela linguagem revoltada que lhe vem das vísceras e que está cada vez mais bem escrita. O resultado é um romance da melhor tradição brasileira e, ao mesmo tempo, novo, agitado e contraditório, como o dia de hoje.

Gil se mata, mas quem garante que ele morreu? “… este homem tem sangue de cavalo.” Haverá só um Gil? A impotência persiste, é verdade. Empenhado na luta política, Gil não tem poderes nem para dar um emprego de cobrador de ônibus. Sua morte é a morte do populismo, do herói solitário, do líder que deseja servir o povo sem mobilizar o povo.

O suicídio de Gil repete o de Getúlio, 25 anos depois. Mas num outro plano de consciência:

“– O povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém (…)

– Invente outra coisa, rapaz. Fale qualquer outro troço. Isso aí ninguém acredita mais”.

Desmascarada a demagogia e a promessa vã, mesmo bem intencionada, chega-se mais perto da verdade, da necessidade real: “– Esta noite tive um sonho. Foi um sonho lindo. Sonhei que todo mundo vai ter um palmo de terra onde cair morto”. E mais perto de como chegar lá: “– Quem é que diz o que é que pode? São eles ou são vocês?”

A luta exclusivamente pessoal é posta em cheque: “Para não ter caído na vala comum, com toda a certeza ele teve que estudar muito. E teve que ter muita fé em si mesmo. Será esse o segredo, Dom Luís? Fé e esforço, esforço e fé? E quando a cabeça fraqueja e a gente perde a fé?” Sobre as cabeças e apoiado nelas, um sistema a todas transforma em “bagaço”: “… e a grande cidade pergunta: – O que é que você sabe fazer? E antes mesmo que eu consiga responder, o berro estronda na minha cara atarantada: – O próximo. Quem é o próximo? ‘Boa sorte ao próximo’, penso, enfiando o rabo entre as pernas”.

Solidário com os oprimidos, Gil morre pensando neles: “Abraços. Adeuses. Ao povo da roça, à ribanceira da cidade. A ribanceira não tem dinheiro em banco, saldo médio, nem carteirinha do Tênis Clube. A ela os buracos e as ruas escuras”. O “incorruptível” Bispo Dom Luís, no entanto, acende a esperança: “as forças que hoje lutam contra o bem comum, e contra todos aqueles que desejam o bem comum, não são eternas”.

Que fazer, então?

“Por enquanto a única coisa que adiante é você procurar outro emprego. Depois entre para o Sindicato, se junte, se reúna aos seus.”

Mas o próprio Torres parece estar imerso no individualismo, este vôo solitário que “desaba no abismo”. Ao contrário de Nietzsche, porém, ele não se aliena. Mesmo sem ver outro fim neste “vôo no tempo”, prefere voar e cantar “enquanto resistirem as asas”.

 José Monserrat Filho é publicitário e jornalista.

Manejo estético da língua com uma densidade poética

O Globo, Rio de Janeiro – 01/11/1981
Virgílio Moretzsohn Moreira

Antônio Torres nos dá, pela Editora Ática, Adeus, Velho, o seu quinto livro. Nas mãos do leitor a pentalogia desse escritor baiano que compõe o seu gesto de insubmissão ao mesmo tempo que escreve a sua palavra.

Nesse seu último trabalho, novidade: a densidade poética. E uma outra: o manejo estético da língua. De Faulkner para frente (autor da predileção de Antônio Torres), o maior avanço que se teve na construção ficcional foi a fragmentação da narrativa, recurso que o baiano usa desde Os homens dos pés redondos.

Adeus, Velho é uma história de uma família do interior da Bahia que vive em situação difícil, afastada dos bens civilizatórios. No meio dela, emerge Virinha, que é repudiada pela família após ser desvirginada. Indo para a cidade (como também aconteceu com o autor), ela conquista seu espaço. Seus irmãos – são aos milhares – chegaram e deschegam, formando um complexo de amor e ódio fabuloso, uma esteira viva de desarranjos emocionais que seguram o leitor. A verdadeira literatura é aquela que provoca, condiciona e deflagra e que Tolstoi chama de “contágio psicológico”, e esse está bem presente na trama de Torres.

No romance Adeus, Velho o presente é apenas a extremidade do passado, como queria Bergson. Os personagens vão e voltam, e nesse caminhar, que a ponto como o mesmo percorrido por Hesse, tudo se dá. Virinha é, ao mesmo tempo flechada a amada pelos irmãos, numa curiosa sistematização freudiana, muito antiga, muito atual.

Logo no início do livro, exatamente na pagina 11, um momento de beleza poética: ”Uma nesga de terra reclinada, inclinada, uma cama feita pelas chuvas e agora oferecida a eles dois”. Arrebentadas as costuras do mundo rural, Torres desembarca no urbano. Mas isso, talvez, seja matéria para o 6º romance.

Adeus, Velho

Estado de Minas – quarta-feira 3 de março de 1982
Campomizzi FILHO

Os resultados do último censo nos mostram um esvaziamento rural. Áreas tradicionalmente agrícolas perdem, num desaguar constante, a mão-de-obra necessária à produção de grãos. Os pequenos municípios vêm sair anualmente respeitáveis contingentes humanos que se destinam aos grandes centros e que se amontoam na periferia das metrópoles. Essas migrações se acentuam de ano para ano, responsabilizando-se pelos amplos desafios que aí estão como marca de nosso tempo. Os meios de comunicação atuam buscando aqueles que ainda permanecem no campo. É que as cidades se apresentam em luzes e em sons, numa constante promessa de felicidade. Praças se abrem como à espera dos novos habitantes. Ruas se oferecem num abraço de fraternidade. O chamamento continua, agindo por sobre os moços que desejam um Horizonte mais amplo para a realização de seus sonhos. Estudiosos se interessam pelo problema. Economistas pretendem fixar o homem na sua terra de origem. Busca-se uma vitalização doa núcleos mais modestos, impedindo-se esse fluxo que deve ter um paradeiro. De certo que nossas letras se contaminam com o tema que exerce certo fascínio. O caminhão passando mostra nas suas placas um aceno. Indica as maravilhas que se escondem além do horizonte. O motorista é o herói que conhece distâncias e que percorre o contingente, desvendando mistérios e alargando fronteiras. Sua conversa é alegre. Seus gestos são amenos. Versátil, não pára nas suas andanças. Sua figura funciona em termos de convite à aventura. Pois Antônio Torres, de vitoriosas experiências anteriores, nome que se impõe pela seriedade de seus trabalhos e pelas linhas ascendentes de sua criação, entrega-nos esse seu “Adeus, Velho”. O romance traz-nos um instante de despedida, passado e presente nordestinos se distanciando cada vez mais nessa ruptura entre o rural e o urbano. No vilarejo esquecido, mourejando num cotidiano sempre igual, está a casa grande onde a família se reúne nos domingos e nas festas religiosas. A igreja preside as atividades locais. As portas do templo se abrem para as missas conventuais e para as novenas dos santos da devoção. A menina, reagindo ao dia-a-dia sempre igual, conversa com o moço. Entra no carro pesado que transporta bons milhares de toneladas. Entrega-se a ela que se vai sem uma palavra de agradecimento, como se aquilo tudo, doação total, fosse apenas e tão somente o cumprimento de uma de suas tarefas. Depois, a vida prossegue. O velho é exigente. Cansado, já não tem muitas força para dirigir o clã. Os resultados econômicos dos roçados e do pastoreio não são muitos. Os filhos tomam outros rumos e urge que partam todos, permanecendo no pequeno império construído com renúncias e sacrifícios apenas um deles, preso à força telúrica de raízes que se aprofundam. Um, o mais novo, casou-se com mulher bonita e rica. Mas não é feliz, que lhe falta alguma coisa, sem que se identifiquem aquelas almas tão distantes na formação. Virinha, a moça, entretanto, sabe quanto quer. Não se dobra às vicissitudes. A primeira derrota, percebendo lá em baixo o casario pobre e ouvindo o repicar dos sinos para a oração, permite-lhe uma nova tomada de posição. Não se submete à marginalização e nem se fixa na condição de esposa criando um filho atrás do outro. Mas é acusada de crime, eis que, convocada, surpreende-se diante do corpo exangue do antigo sedutor. As estações de rádio jogam a notícia a todos os cantos. A televisão transmite sua imagem. Não se importa ela, firme e capaz, ficando os pés no cão e encontrando o lugar que lhe cabe na cidade grande de múltiplas atrações e de enormes feridas. O velho morre. A figura patriarcal já não existe. Os filhos se distanciaram. O que fixou exige, em termos de domínio, as terras que seriam do grupo familiar. Um dos irmãos chegou a fazer fortuna como comerciante. Mas perdeu a cabeça e se foram os haveres. Hoje, com um pequeno negócio no Mercado Central, vê suas aspirações reduzidas. À visita do irmão que veio apressado para cuidar da libertação de Virinha teve avivadas velhas lembranças. Mas já estão todos rompidos, muito tênues aqueles laços que um dia os prenderam a todos em sangue e em fraternidade.

Existe o romance nordestino. Não desapareceu com os nomes prestigiosos que lhe deram vida. A estes se ajunta Antônio Torres, de qualidades próprias e de disposição rara. O jovem escritor conhece sua região. Sabe andar pelos seus caminhos, palmilhando estradas batidas e auscultando uma população sofrida. Os componentes dessa realidade lhe são familiares. Entende sua linguagem. Ama os horizontes onde vive uma gente que ainda crê no amanhã, apesar dos percalços e das vicissitudes. Dá às suas páginas um colorido que nos compromete com a paisagem, chamando-nos à sua trama e nos fazendo participantes dela. O jovem bancário que deixa tudo para socorrer a irmã, solidário e amigo, está também à procura de si mesmo. Mas é um elo entre o ontem e o hoje, uma espécie de resistência que se define ao toque das lembranças que ficam conosco e que nos perseguem. Na cidade, nem todos nos libertamos. Acompanham-nos alguns princípios com que não rompemos de todo. Seria esse o caso do rapaz que não se adaptou a esposa e o que está receoso de perder o lugar no estabelecimento bancário, importante, que lhes garante a sobrevivência em níveis bastante razoáveis. É essa a força de “Adeus, Velho”. Todos se despedem do pai que representa alguma coisa que não mais retorna. As cunhadas e os cunhados têm sua filosofia. Uma intriga doméstica divide o clã, os grupos formados ao impacto de pequenas tricas que resvalam para interesse econômico de uma herança em perspectiva. Esse é o fermento de que se serve Antônio Torres, com figuras humanas recortadas com especial carinho e recendo sua história de maneira a retratar tanto de nossa realidade social.

Torres: herdeiro de Graciliano

Revista Soviética – Ficção Contemporânea
Texto – O. Fiedossov
Tradução – Eduardo Serra e Carlos Azevedo

O primeiro livro de Antônio Torres, o romance Um Cão Uivando para a Lua, foi publicado em 1972. Depois disso, Torres publicou mais quatro romances, e seu nome entrou no rol dos mais conhecidos jovens escritores do Brasil (Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio Souza, Oswaldo França Jr., João Ubaldo Ribeiro e outros).

Oriundo do Nordeste, Torres reelabora a temática nordestina de Jorge Amado e Graciliano Ramos. De Graciliano, ele se aproxima principalmente quanto à sobriedade impetuosa na descrição da sociedade brasileira, a austeridade da narração, quase não deixando lugar para o lirismo. Mas Torres é um escritor absolutamente original, dotado de um estilo próprio, de uma maneira particular de perceber e se expressar. Nos seus livros, não há as características românticas e pitorescas como em Jorge Amado. Torres não se apresenta somente com um “contador de histórias”, que conduz sua narrativa de forma linear: as repentinas trocas de tempo e lugar de ação, os deslocamentos instantâneos no passado longínquo, que subitamente se rompem na descrição dos acontecimentos do dia-a-dia, são os seus traços característicos. Assim se tem uma impressão de anotações de diário, dos pensamentos humanos caprichosamente pulando de um assunto para outro. Este recurso possibilita ao autor levar o leitor a uma atmosfera de vazio, de instabilidade e desconforto que reina no espírito de seus personagens, no mundo interior de uma sociedade de privada de firmes princípios morais.

Na sua obra, como na de muitos escritores da América Latina, um dos principais temas é o isolamento, a incomunicabilidade e a alienação do homem no mundo sem sentimento e cruel da cidade grande, freqüentemente representada por Torres como uma enorme casa de loucos. A desestruturação psíquica e o suicídio – constantes desenlaces de seus enredos – atingem os seus personagens, atormentados pela falta de perspectiva e pela impotência diante do mal social (Um Cão Uivando para a Lua, Essa Terra e Carta ao Bispo).

O romance Adeus, Velho é uma reflexão do escritor sobre o passado e o presente do Brasil; sobre o tempo das transformações sócio-econômicas do pós-guerra; sobre o destino de sua geração. É um relato sobre as pessoas que conseguiram romper com a bolorenta e miserável vida do interior atrasado. Mas a nova vida, o futuro sedutor para onde se refugiaram do passado os jovens cheios de esperança, nada trouxe para eles a não ser cansaço e decepção.

Torres deu ao romance um titulo que tem duplo sentido: pode ser entendido como Adeus, meu pai. A ação, no sentido estrito da palavra, a trama propriamente dita, se desenrola no decorrer de 30 horas. No entanto, a base do livro se compõe de lembranças do passado. O velho Godofredo o personifica, representando o sistema de valores que ele não consegue transmitir aos seus inúmeros descendentes. O adeus ai agonizante Godofredo é, de uma certa forma, um adeus a um passado do Brasil. Desenvolvendo o tormentoso tema da passagem do velho para o novo, Torres pinta um triste quadro da decomposição do regime secular da vida do interior e da agonia espiritual de uma grande família patriarcal. As tentativas de Godofredo de reter os filhos na “terra” acabam num insucesso cruel, impondo-lhes uma vida tal como viveram muitas gerações de camponeses, cujo ganho agora “mal chega para colocar no prato feijão com farinha e tomar um gole de cachaça”. Eles se dispersam pelo mundo, sempre perdendo contato com a casa e uns com os outros.

No centro da narrativa, uma jovem mulher, Virinha, uma das filhas do velho Godofredo, que fugiu da estagnação da vida rural, para Salvador, a capital do Estado da Bahia. Ela é evidentemente impotente na luta diária pela sobrevivência, onde não há nada nem ninguém em que se apoiar, ninguém se importa com ninguém, e as pessoas sofridas se entrechocam com indiferença. Acusada de um crime, Virinha cai na prisão, uma dolorosa experiência na qual ela fica praticamente sozinha. Ela não consegue nem mesmo a compreensão do irmão Zulmiro, o único parente que lhe deu ajuda. Enquanto isso, o pai, agonizante, consciente da inutilidade das tentativas de impor sua vontade aos filhos, faz a única coisa que pode: manda dinheiro para pagar o advogado. A história de Virinha é uma amarga ilustração da dura situação da mulher brasileira. É uma critica ao sensacionalismo da imprensa burguesa, interessada não tanto na busca da verdade e na expressão sincera dos acontecimentos, quanto no aliciamento de leitores através de reportagens escandalosas. A história do filho adotivo de Godofredo, Zé Preto, um negro selvagemente espancado pela policia por um suposto roubo, soa como uma condenação da crueldade e d preconceito racial. Os bate-papos dos camponeses no botequim testemunham a crescente incredulidade no meio deles: não sentem ódio nem mesmo das palavras, chocantes para os fiéis, ditas pelo seminarista que não chegou a ser padre, sobre Deus e sobre os sacerdotes “que só sabem encher a pança e o bolso e depois das o fora, deixando um monte de besteira na cabeça do povo”.

O romance é escrito na maneira caracteristicamente fragmentada de Torres e, à primeira vista, com uma exposição assistemática dos fatos e acontecimentos, sem uma linha central clara. No entanto, os fatos fragmentados são postos numa ordem temática. Um dos capítulos fundamentais do romance é a história da ascensão e a queda de Tonho, o filho mais velho de Godofredo, que se tornou uma lenda para os irmãos. Tonho foi o primeiro a abandonar a casa paterna, contra a vontade do pai. Obteve vantagens no casamento na cidade e, por algum tempo, teve sucesso, para orgulho de todos os familiares. Mas depois as sua relações com a mulher se desmoronaram, ele arruinou a vida dela, foi viver em outra cidade e logo tornou-se tão pobre como quando saiu de casa.

Antônio Torres não tenta mostrar o caminho para a solução dos problemas colocados em seu livro. E talvez até não o veja inteiramente. Entretanto, seu romance é importante como tentativa de refletir sobre as complexas e múltiplas mudanças na sociedade brasileira nos últimos decênios. Com franqueza e grande expressividade, o escritor mostra a vida, ri da estupidez, condena o mal e defende o bem.