Antônio Torres queixa-se ao Bispo pelos vencidos

Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Norma Couri

Fosse pelo pai, este primeiro filho dos 13 que teve estaria até hoje na enxada, pé na terra úmida do Junco, sertão da Bahia. Mas o menino aos três anos lia livro de Igreja, aos oito Castro Alves, aos poucos devorou toda a estante de um tal mestre Zezito, fogueteiro, e foi estudar em Lagoinhas. Não demorou muito, trocou a enxada pela Olivetti vermelhinha que quebrou muitas vezes.

Aos 39 anos e muitas máquinas depois, Antônio Torres publica seu quarto livro e avisa que o menino já está nascendo. Chama-se Carta ao Bispo. Quem escreve a carta é Gil, o personagem principal, depois de envenenar-se com formicida encontrada na cozinha do bispo. A partir daí é a caminhada pelo corredor da casa, e cada passo é um capítulo desse romance “brasileiro na latitude da sua consciência”.

Uma queixa ao bispo é a última coisa que nos-resta, quando ninguém mais está disponível, ninguém mais escuta. Para Gil, a carta foi o limite de sua resistência física, o lamento deixado nas marcas de sua mão no corredor da casa.

O personagem é o brasileiro derrotado. O político de interior que não se elege prefeito e vira cabo eleitoral de um cachaceiro, tocador de viola, no final vitorioso. Gil dá um desfalque, está com processo correndo na Justiça, sabe que a opção é a cadeia ou a morte. “Só que ele resiste”, diz Torres. “Um dado novo, surpreendente até para mim. Sabe, o livro é como filho, a gente cria de um jeito, ele cresce de outro”.

A surpresa foi maior porque Torres sabe ser este quarto livro continuação de um processo iniciado com o primeiro, Um Cão Uivando para a Lua (o brasileiro vencido pelo Rio de Janeiro), emendado no segundo, Os Homens dos Pés Redondos, e pelo terceiro, Essa Terra. Torres levou 30 anos para escrever o primeiro livro, uma história que não acabava nunca. Porque era tudo um livro só, ele percebeu: “Faulkner disse que a gente parte para o livro pensando poder contar tudo, mas vai morrer achando que não conseguiu”.

– A gente é menor do que o próprio material. Por exemplo, a influência católica alastra-se por todo o meu livro, graças ao fato de eu ter ganho o meu primeiro salário como sacristão. Depois rompi com a Igreja, revoltado (como Gil) pela maneira como os padres enriqueciam com a pobreza do sertão. Mesmo assim estou impregnado de religiosidade.

Carta ao Bispo são 128 páginas escritas em pedaços de madrugadas, nas férias, nas sobras de tempo, durante dois anos. “Às vezes”, diz Torres sorrindo, “roubando tempo do patrão”. Há muitos anos no Rio, trabalhando em jornal e publicidade (hoje é diretor de criação da Denison), Torres ainda se assusta com a cidade. Tem “a visão do medo, da loucura, do isolamento, da pressão, da prisão e que ela nos conduz”. E acha muito difícil viver aqui sem dor.

– É duro ser escritor no Brasil. Viver na Zona Sul, andar três quilômetros e de repente ver o Nordeste, a roça vindo para a cidade. Conviver com a Europa e o século XVII que estão ao nosso lado.

Para Torres, o grande romance desde século vai ser latino. Conversa na Cadetral, de Vargas Llosa, Pedro Paramo, de Juan Rulfo, Grande Sertão, de Guimarães Rosa, ou qualquer outro. “A América Latina tem muito a dizer. Uma realidade nada uniforme, muito rica, com uma língua marcada por incríveis diferenças regionais. Jorge Amado já disse que operamos na periferia. É verdade. Não estamos na órbita do poder dos grandes centros; nossos isolamentos é conseqüência do subdesenvolvimento. Daí nossa força. Há uma brecha, na medida em que não obedecemos as leis do consumo. Qualquer dia desses vão olhar pra gente e dizer que valemos alguma coisa”.

Antônio Torres tem dois filhos pequenos (Gabriel, 5, e Tiago, 2 anos), uma “casa de baiano” (ajeitada pouco a pouco por ele e a mulher Sonia nos muitos apartamentos por que passaram no Rio) e uma pergunta, sempre sem resposta, da qual tira impulso para continuar. “Escrevo, no fundo, para exercitar algumas respostas”.

Trás nos ombros, como todo escritor brasileiro atual, o peso de ter nascido depois de José Lins do Rego, Lima Barreto, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Vira mais um copo de uísque, e lembra que o peso é como o da máquina de escrever, simbolizando, no fundo, a enxada que ficou no Junco, a responsabilidade social imposta pelo pai. Outro dia voltou lá, relembrou casos, como os das desculpas para se afastar do Junco: qualquer inauguração de cantoneira para santo, qualquer reza para moribundo. Na poeira levantada pelo primeiro caminhão, a oportunidade de fugir da enxada e chegar à escola rural mais próxima, a 3 quilômetros de casa.

Antônio Torres não tem parado no caminho, não tem deixado o peso do passado atrapalhar. E falando mais dos nossos escritores gigantes do que do assimilado no Junco, ele diz:

– Mas o peso está lá, eu sei que está.