Antônio Torres: duas vezes imortal

Armando Avena
Correio da Bahia em 29/05/2015

Era um dia de chuva, mas o auditório do Palacete Goés Calmon estava repleto para ouvir o discurso de um baiano que pela segunda vez se tornava imortal. Os baianos estavam ali, prontos a homenagear um dos maiores romancistas brasileiros que, ao lado de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, compõe a trinca de ouro da literatura baiana recente.

Olhei em volta, em busca dos meus pares, e foi então que os vi, contritos, quase circunspectos, sentados reverencialmente na primeira fila da plateia. E todos eles estavam ali: Totonhim, Nelo, Virinha, Cabralzinho, o corsário René Duguay-Trouin, Cunhambebe, com um ar heroico e libidinoso, e até Watson Rosalvelti, pronto para a qualquer momento  pegar um táxi para Viena d’Áustria.

Todos estavam ali para ver ser seu criador, que os imortalizou em seus romances, também tornar-se imortal e pela segunda vez, pois  a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, ocupada por Jorge Amado e Machado de Assis, já lhe pertence.  Então se fez silêncio e Antônio Torres leu seu discurso de posse e falou dos seus antecessores, do jornalismo e do Jornal da Bahia, da infância e dos amigos, e da sua querida Junco, cidade onde nasceu e que hoje atende pelo nome de Sátiro Dias.

Depois, um lágrima, real ou imaginária, desenhou-se em cada rosto quando ele lembrou de João Ubaldo, que o chamava de compadre, e da dor de sua morte.  E a saudade o fez declamar os versos de T.S. Eliot: “Morremos com os mortos/ eles partem e com eles nos levam./Nascemos com os mortos./Eles retornam e consigo nos trazem”. No auditório do Palacete Góes Calmon, Antônio Torres trouxe Ubaldo de volta e nos fez retornar.

O escritor Antônio Torres de há muito alcançou a imortalidade e o fez por sua obra, pelos prêmios que recebeu, por ter sido condecorado pelo governo francês, como um preito aos romances que publicou na França, e por envergar o fardão da Academia Brasileira de Letras. Agora, a Bahia o tornou imortal pela segunda vez, uma imortalidade carinhosa de mãe orgulhosa do seu filho.

D’ESSA TERRA PARA OUTRAS TERRAS SAUDAÇÃO A ANTÔNIO TORRES

Aleilton Fonseca
Salvador, 21 de maio de 2015.

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…

(Castro Alves)

Caríssimo Escritor Antônio Torres:

Estes versos de Castro Alves lhe serviram de batismo, na sagração da palavra de um gênio lírico pronunciadas por seus lábios de menino, diante – como hoje – de uma plateia, num momento ímpar e singular. São os versos pronunciados por um longínquo menino do Junco, em praça pública, em dia de festa, escolhido pela professora Dona Serafina, ainda viva e quase centenária, que – sem o saber – encaminhava o seu aluno, num ritual perfeito – ao destino das letras, ao mistério das palavras. Dona Durvalice e Seu Irineu bem que gostavam de ver o filho brilhar.  O escritor de hoje o traz no coração e na alma, e guarda na memória os versos eloquentes, em apreço ao infante de outrora:

“Auriverde pendão de minha terra.”

Eis aí, mestre Antônio: ecoam estes versos por mais de seis décadas que o distanciam e aproximam daquele instante mágico. Ouçamos a voz do menino a quem agora recordamos solenemente. Escute ressoar naquela praça o timbre da pronúncia, o ritmo das sílabas, o eco das rimas. Experimente de novo a luz dos olhos que acolhiam todo aquele povo ao redor.  O menino, de uns oito anos de idade, está aqui hoje, em seu ser, pois o escritor já constava no seu destino.

O menino do campo, que sabia de cor o caminho da roça, para quem os auriverdes pendões de sua terra floresciam nas plantações de milho, folhas verdes e espigas amarelas, numa simbologia de fartura ou escassez – e promessas de bom porvir. Do alto das plantações, espraiadas entre pedras e mandacarus, nas colinas do território do Junco, os seus olhos observavam a brisa do Brasil que beija e balança as folhagens ao vento, destacando a silhueta sinuosa das estradas. Sabia o menino que aqueles eram os caminhos para o mundo? No intimo, talvez sem o saber, intuitivamente já o sabia. Eram aquelas imagens admiradas do alto os estandartes que a luz do sol encerra. Era para além das linhas e curvas que se estreitavam no horizonte, que acenavam no silêncio dos campos “as promessas divinas da esperança…”.

Tem razão Machado de Assis, que lhe deixou a própria cadeira de herança: o menino é o pai do homem. Persistem na formação do homem Antônio Torres aqueles primeiros passos no terreno da palavra literária, onde o que se ara, se aduba e semeia são versos e frases que se escrevem, se declamam, se narram e se ouvem, para alimentar a alma e dar sentidos mais profundos ao ato humano de existir.

O futuro prosador plantou e sentiu germinar em si o sonho de um dia ser como o poeta. Proferida em praça pública, a sua voz passou, sem que ninguém pusesse em ata, a ser signo de uma autoestima plural, atraindo vaticínios sobre um destino que haveria de ser brilhante. Naquele momento estava celebrado o compromisso com seu ethos local. Tornava-se o porta-voz de sua gente, na busca de projetar-se para além de suas estradas, e cercas, e pastos e matagais. O seu desiderato era seguir as estradas, num um ir e vir incessante, fixando-se num entre-lugar de discurso, a fim de dizer ao país e ao mundo da existência daquele território de sonhos, fixando-o como um ponto sensível na geografia literária do Brasil. Do Junco ao mundo, eis sua trajetória fecunda, escrevendo-o nos entrechos de seus enredos, grafando-o nas raízes e na fala das personagens, como locus de origem, de vivências, de resistência e, sobretudo, de revisitação simbólica.

O escritor deixou o Junco? Não. Antônio Torres jamais deixou o Junco, pois que essa terra nunca o deixou. Quanto mais longe, estava ele mais próximo, pelas memórias vertidas em palavras, narrativas, depoimentos, imagens e decifrações.  O escritor saiu do Junco, para estar mais intimamente enraizado em suas origens. Partiu em viagens para espalhar essa terra por todos os lugares onde seus romances encontraram leitores e viajantes dos enredos, e todos eles visitaram o lugar – através de suas histórias, e para além da geografia, como ícone de um mapa mágico de cidades de palavras: Junco, Comala, Macondo.

Eis as trilhas de sua peregrinação: do Junco a Inhambupe, eram passeios esperados e vividos no seio da alegria familiar.  Do Junco para Alagoinhas, foi o primeiro passo para além das fronteiras da infância, pois seu amor à escola era já visceral e incontornável. Mais tarde, em Salvador, foi seu advento no jornalismo, como já indicavam suas habilidades para a leitura e a produção de textos. Não sem antes ter sido o escrivão-mor de sua terra, traduzindo no papel de carta, as palavras, os sentimentos, os queixumes, os sonhos e as esperanças daqueles que buscavam manter os vínculos com os que haviam partido do lugar, tempo de muitas partidas sem retorno.

O apelo do sul não se fez demorar. Aos vinte anos, o jovem promissor tomou a metrópole de São Paulo como destino, preparo e semeadura. Das paisagens de luz intensa do sol e azul das nuvens, para a paisagem cinzenta da garoa insidiosa e arranha-céus impetuosos. O homem empreendia seus embates e sua aprendizagem, processava as experiências, aquisitava linguagens e tomava consciência acerca da complexidade de um país em processo de modernização tardia e conservadora, marcado por profundas desigualdades. Era tempo de crise, em plenos anos de chumbo da ditadura, onde as lutas pela liberdade e pela redemocratização alimentavam o sonho de um Brasil melhor. São Paulo, lugar de escolhas. Do jornalismo para a publicidade, e daí ao seu front definitivo que havia mesmo de ser a literatura.

O Rio de Janeiro seria, mais adiante, o cenário eleito de sua vida em família, com sua dileta esposa Dra. Sônia Torres, e seus filhos Tiago e Gabriel. O lugar da vida literária e cotidiana: as caminhadas nos calçadões, o convívio com amigos e colegas jornalistas e escritores, as revelações das ruas históricas e das novas paisagens, os lançamentos nas livrarias, palestras e conferências nas instituições culturais, as universidades onde foi escritor visitante. E dali para os lugares de todo o Brasil, e para os lugares do mundo – que os convites e as homenagens sempre pontilharam sua agenda. Junco-Salvador-Rio de Janeiro, e vice-versa – seu mapa afetivo de viagens sem termo.

No Rio, de primeiro, foram longos anos de vivências. E mais recentemente, fixou moradia sossegada com belas vistas para as colinas de Itaipava, na imperial cidade de Petrópolis. Eis o cenário de sua vida literária cada vez mais intensa, a carreira sempre em ascensão, até a consagração maior da Academia Brasileira de Letras, na cadeira 23, que tem como fundador e primeiro titular Machado de Assis, e patrono José de Alencar; uma cadeira que, durante 70 anos, consagrou os baianos Octavio Mangabeira, Jorge Amado e a baiana adotiva Zélia Gattai. Uma cadeira que continua, portanto, com brilho baiano e consagração nacional.

O homem fez-se verbo. No ano de 1972, no cenário de anos difíceis, em São Paulo, o mundo literário foi surpreendido. Aparecia naquele ano um romance de título longo e curioso: Um cão uivando para a lua. Estreava um romancista novo, num momento de pressas e urgências, quando gênero do conto e os contistas ocupavam a o centro da cena e o interesse de leitores, críticos e páginas literárias. O romance foi bem recepcionado pela imprensa, despertou interesse em Jorge Amado que lançava seu romance Tereza Batista Cansada de Guerra na mesma noite. Naquele dia dividiram as páginas dos jornais dois romancistas baianos: o consagrado e o estreante, aguçando a atenção dos leitores curiosos.

Um cão uivando para a lua foi aclamado a revelação do ano. Bem ao espírito da época, é um romance de linguagem híbrida, com forte acento jornalístico, numa dialética de efeitos, entre os dados da realidade e o jogo da ficção, ora enredo ora reportagem. A narrativa inquieta o leitor, que o lê na fronteira entre a condição atual do narrador, encerrado numa clínica de tratamento mental, e os recortes narrativos de sua trajetória pessoal e profissional. A seu modo engenhoso, a narrativa denuncia, nos entrechos e entrelinhas, as dificuldades de se exercer a liberdade de pensamento e expressão, numa sociedade que soçobra sob os poderes de grupos sociais dominantes. Um romance que problematiza as relações cotidianas nos bolsões urbanos, sejam centrais ou periféricos, com enredo entrecortado, descontínuo e agônico, conduzido por um narrador de dicção jornalístico-ficcional, cumprindo, aliás, um traço peculiar da ficção urbana dos anos 70.

Foi uma estreia de vulto, que chamou a atenção de leitores, escritores, críticos e resenhistas da imprensa especializada, com excelente repercussão nas páginas literárias dos grandes jornais. De certa forma, este romance representa o ambiente da época, mostra a asfixia do cenário urbano, onde se movimenta o narrador, jornalista, lúcido e louco a um só tempo, e deixa-nos sentir que o exercício do discurso pleno escora-se nos relatos de experiências pessoais problemáticas, sob atmosferas sociais pesadas, em relações desestruturadas, metaforizando-se, mesmo, essa narrativa, como a fala de “Um cão uivando para a lua”.

Após a estreia bem sucedida, seguiram-se mais dez romances, uma coletânea de contos e dois livros não-ficcionais, o festejado ensaio/apresentação sobre o Rio, intitulado O centro  de nossas desatenções, e um livro sobre a trajetória do circo no Brasil. A par de sua atuação intensa e sua presença nas páginas literárias, sua fortuna crítica não para de se acumular, sobre as seguidas edições e reedições de seus livros, à luz do brilho de suas participações públicas em eventos e debates, diante de estudantes, universitários, pesquisadores e leitores em geral, exercendo com eficiência e desprendimento a função pública do escritor que trabalha pela cultura de seu país. No estrangeiro, as traduções de seus livros ultrapassam fronteiras, e chegam já a vários países, em mais de uma dezena de idiomas, acumulando leituras, estudos, homenagens e títulos de reconhecimento, como o Chevalier des Arts et des Lettres, que a França lhe outorgou.  No Brasil, sua obra recebeu prêmios de alto valor, como o Pen Clube, o Zaffari & Bourbon, o Jabuti e o consagrador Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, para o conjunto de sua obra.

Os estudos críticos e ensaísticos acerca de sua obra se multiplicam, se adensam em artigos, dissertações e teses de doutorando em dezenas de universidades no Brasil e também no exterior. Uma reunião de estudos sobre sua obra se destaca, com um título em si bastante representativo dos temas de suas narrativas. Trata-se do livro Espaço Nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres, organizado pelos professores doutores Cláudio Cledson Novaes e Roberto Henrique Seidel, publicado pela Editora da Universidade Estadual de Feira de Santana, em 2010, e lançado no evento “Narrativas e viagens do Junco ao mundo: Setenta anos de Antônio Torres”, ali realizado em homenagem à trajetória do grande romancista, com a participação de vários estudiosos, que trataram de diversos temas e aspectos de sua obra.

Em geral, considerando as diversas abordagens de sua obra ficcional, podemos vislumbrar na base de seus romances três linhas de força fundamentais: o romance de representação/problematização da experiência urbana, que compreende também o drama de personagens migrantes nordestinos (Um cão uivando para a lua, Os homens dos pés redondos, Um táxi para Viena d’Áustria, Balada da infância perdida), o romance de representação/interpretação das memórias e vivências de formação (Essa terra, Adeus, velho, Carta ao bispo, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha; Meninos, eu conto); e o romance de representação/ressignificação da história (Meu querido canibal e O nobre sequestrador). São perfis não estanques e que se justapõem ou se interpenetram, com ênfase maior para um dos aspectos em questão. Os homens dos pés redondos (1973), por exemplo, reflete sua experiência de 3 anos em Lisboa e Porto, em Portugal, sua tomada de conhecimento acerca de uma sociedade esfacelada pela ditadura de Salazar. Um romance de tons sociais, culturais políticos e históricos – aliás, as linhas básicas que se amalgamam, em maior ou menor grau, no conjunto de sua ficção.

O Junco é uma história, e Antônio Torres é o romancista d’Essa terra. Em 1976, surgia o romance emblemático, trazendo ao escritor o reconhecimento que iria consolidar seu nome no panorama da ficção brasileira. Continuamente reeditado, traduzido para vários idiomas, objeto de estudos no país e no exterior, o romance tematiza, através da experiência do protagonista Nelo, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas consequências psicológicas e sociais.  Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista e da sua família sertaneja, nos desdobramentos de um enredo marcado pela desintegração e pela crise, que mostra a situação do migrante destruído nas engrenagens da metrópole, em relações marcadas por rejeição, preconceito, exploração e expurgo. Essa terra engasta-se na dura realidade da migração nordestina para São Paulo, movimento bastante comum durante o segundo e terceiro quartel do século XX.

A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Os dramas do deslocamento, do desenraizamento, da diáspora, da perda de referências, fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, no deslocamento dos corpos e das vivências, e na transição de valores, os comportamentos, os imaginários e as condições de vida.

O romance narra, sob certas nuanças, a história do Junco, como “um lugar esquecido nos confins do tempo”. O narrador lamenta, sem perder a ombridade: Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi.  E para contar a história com conhecimento de causa, eis o escritor d’essa terra, conhecedor da experiência, assinalado em praça pública, como portador da palavra para conformar e exprimir a identidade de seu lugar.

O processo de dissolução do sonho representado em Essa terra culmina com a partida de Totonhim para São Paulo, seguindo o mesmo caminho do irmão, sinalizando um novo ciclo da história. De fato, vinte anos depois, o romance O cachorro e o lobo (1996) narra o retorno de Totonhim ao Junco para rever o pai e resgatar outros aspectos da velha história, sob uma nova perspectiva, em tempos modificados pelos ares da modernização que, apesar de tardia e limitada, modifica o cotidiano e os costumes do lugar. E surge o romance Pelo fundo da agulha (2006) para completar a trilogia do Junco, com o narrador Totonhim, agora vivido e experiente, a remoer suas crises, tentando costurar os desvãos das memórias. Trata-se de um balanço de vivências e viagens, a tentativa de compreender os enigmas do passado e vislumbrar a vida como foi e suas possibilidades não concretizadas.

A trilogia capitaneada por Essa terra constitui um projeto ficcional preciso, de grande força estética, ao tematizar um aspecto dramático da sociedade brasileira, representando causas, circunstâncias, processo e efeitos do êxodo rural nordestino. Assim opera a inclusão de uma geografia física e humana remota à cena principal da narrativa do último quartel do século XX.

A trilogia preserva, ainda, nos entrechos das tramas, os traços da cultura local, representados pelo imaginário e pela oralidade que, numa perspectiva peculiar, fixa uma visão de mundo e diz muito da identidade sertaneja. Leva o leitor atento a enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama social, político e histórico. Uma escrita densa, de economia formal medida, tecida por um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar das tensões, uma camaradagem equilibrada com seus personagens.

Meu querido canibal: Este romance “é uma canibalização da história e da literatura”. Palavras do romancista. “O índio se chamava Cunhambebe.” “Um gênio militar, digamos logo. Com suas armas rudimentares – flechas, arcos e tacapes – enfrentava canhões…”. Palavras do narrador.

No ano 2000, esse romance surpreendeu o mundo literário, acrescentando nuanças novas à fortuna crítica e à imagem do escritor. Um livro tempestivo e necessário, para alertar e abalar as consciências, e ofuscar o verniz canhestro da comemoração dos 500 anos de colonização luso-europeia sobre as índias terras de Pindorama. A narrativa parte da ausência do elemento indígena no cotidiano, e recua até o século XVI, para retomar a Confederação dos Tamoios, reconfigurando-a através de uma reinterpretação crítica da História. Em um texto híbrido, a narrativa amalgama ficção, história e reportagem, para exumar o índio brasileiro da cova funda da história oficial.  Nesse romance, o discurso e a pesquisa desmontam a versão do colonizador, trazendo à tona de forma heroicizada o índio Cunhambebe, líder tupinambá na luta contra o massacre colonizador e o apagamento cultural de que foi vítima o seu povo.  Esse romance acaba de ser publicado na França, no Salão do livro de 2015, em tradução de Dominique Stoenesco. A acadêmica Rita Olivieri-Godet desenvolve estudos magistrais sobre a obra de Antônio Torres, referências indispensáveis para sua analise e compreensão. Entre outras belas explicações, ela conclui um artigo, afirmando:

Meu querido canibal rebela-se contra a recusa histórica da autonomia da alteridade indígena. Produz sua própria visão dos fatos recorrendo a um fazer literário antropofágico que suscita revisões da história e aponta as falhas da memória que levam à construção de uma identidade coletiva excludente. Assim procedendo, atua no sentido de escrever e inscrever, no presente, a utopia de um outro projeto identitário para a nação, aberto para a interação das atividades culturais, permeável ao encontro.

De fato, é uma excelente conclusão de estudo metódico e percuciente, no qual a ensaísta identifica, analisa e explica os elementos de composição do texto antropofágico de Torres, demonstrando os sentidos e intenções de seu projeto,  e sua contribuição para uma revisão crítica da história, repondo a questão do índio no centro do debate antropológico brasileiro.

 E sobre o contista Antônio Torres? Meninos, eu conto.  Este livro reúne três contos de que comportam dupla possibilidade de leitura, entre memorialismo e ficção. Como num jogo de espelhos, os meninos personagens e o narrador adulto se refletem na escrita e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva. Na foto da contracapa Torres maneja um estilingue, que simboliza o seu desejo de rever as imagens da infância e adolescência vividas na sua pequena cidade natal. Segundo o autor, esses contos “têm como cenário um lugar esquecido nos confins do tempo” onde “os meninos dividiam o seu tempo entre o trabalho na roça, junto com os pais, e o caminho da escola, no povoado”. São histórias de meninos do interior, ambientadas numa época em que cada lugarejo ficava isolado do mundo, tendo como horizonte apenas uma estrada poeirenta, por onde muitos seguiam para São Paulo e nunca mais voltavam. O escritor afirma: “Estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” .

O conto – “O dia de São Nunca”, por exemplo, – estabelece relações entre o espaço rural e o urbano, pois o menino protagonista mantém contato com três jovens da cidade que fazem uma espécie de turismo no povoado. O menino exercita a imaginação, ensina e aprende, como portador do saber local e aprendiz das novidades urbanas. Ele se esforça para compreender aqueles jovens forasteiros e sente o esforço deles para compreenderem o seu mundo. Para o menino, esses dois mundos agora se tocam, como um novo horizonte em seus sonhos e esperanças.

Caro escritor Antônio Torres:

Nesta inesquecível noite de 21 de maio de 2015, todos que aqui se acham presentes entraram, em algum momento de suas vidas de leitores, em consonância com sua obra literária, sentindo-se, portanto, chamados a compartilhar este ato, como testemunhas de sua investidura neste sodalício.

Saudamos o romancista completo, ungido pelo brilho do colar acadêmico, que reflete a luz de sua perícia criativa e exemplar. Todos nós sabemos o quanto o escritor Antônio Torres é reconhecido e reverenciado pela Bahia e pelo Brasil. E asseguramos quão imensa manifesta-se a felicidade que nos embala os corações, diante de sua posse nesta quase centenária companhia, por onde passaram figuras máximas de nossa cultura, como João Ubaldo Ribeiro, a quem você sucede à altura na gloriosa cadeira de nº 9, que antes pertenceu ao nosso grande presidente Cláudio de Andrade Veiga.

A vida literária é um ritual contínuo de sucessões, pois que somos elos de uma corrente sem fim, que nos convoca a um trabalho de construção da arte da palavra, como um único e interminável livro que representa a vida, a trajetória, a experiência da imaginação humana ao longo das gerações. A cadeira 9 foi fundada, há 98 anos, pelo acadêmico Campos França – e agora ela passa a suas mãos, ato previsto no calendário da existência, como todos os dias do futuro, conforme os paradigmas da vida.

Sua trajetória literária, laboriosa e criativa é motivo de júbilo para todos nós. Sua caminhada até aqui passou por muitos momentos e lugares, e este é de fato seu porto ideal. Seja bem-vindo, portanto, a sua casa para o convívio fraterno das letras.  Acredite, e ponha em ata: todo isso começou com os versos do grande poeta da Bahia:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…

Antônio Torres E a Literatura da Migração

(Revista Conhecimento Prático / Literatura – São Paulo, junho de 2014).
Por Maurício Silva*

Fato social presente na história brasileira desde os tempos mais remotos, a migração (migração/ imigração/ emigração) é apenas um dos inúmeros e intrincados capítulos de nossa realidade social desde tempos antigos. Nesse sentido, ondas migratórias de maior ou menor extensão e volume foram e ainda são verificadas em todo território nacional, principalmente quando vinculadas aos vários ciclos correspondentes à economia colonial (o ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar e o da mineração¹) quanto aqueles que, majoritariamente, dominam a economia pós – colonial até meados do século XX (como o da borracha e o do café ) foram acompanhados de intensos fluxos migratórios.

A Literatura Brasileira, em especial na sua vertente que buscava incorporar com mais veemência os fatos do cotidiano, procurou, na medida do possível, retratar esteticamente diversas ocorrências histórico-sociais, entre as quais recebeu singular atenção a questão da migração, em especial a partir da década de 1930, quando se começou a cultivar o que, posteriormente, a crítica convencionou chamar de realismo social ou, mais especificamente, nas palavras de Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, “ romance social-regional”, que trazia como marca distintiva a crítica às relações sociais e a representação de fatos históricos de relevância, entre eles a própria migração. Assim, autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado e muitos outros se destacaram como figuras de relevo dentro do cenário literário nacional exatamente por conciliare/m, em seus romances, alta qualidade estética e profundo questionamento da realidade brasileira contemporânea.

Atualmente, nosso universo literário apresenta uma heterogeneidade talvez pouco conhecida em épocas passadas, devido de um lado, à multiplicidade e à complexidade que o atual contexto sociocultural parece apresentar, e de outro lado, à nossa relativa incapacidade de perceber as tendências literárias dominantes no presente num cenário artístico muito próximo. Daí uma profunda e contínua impressão de que a literatura contemporânea pouco tem de inovador e original, o que acaba por legitimar uma já propalada ideia de que a produção literária brasileira estaria passando por uma grave crise criativa.

Felizmente, esse fato é prontamente desmentido pela mais superficial análise de nossa atual produção artística: com poucas exceções, a atual literatura brasileira tem revelado obras de valor realmente elevado do ponto de vista estético, marcadas por uma estimulante originalidade. Nem mesmo o caráter crítico e social, característico de uma parcela significativa e relevante da produção de meados do século, falta ao vigoroso espectro literário que a presente realidade cultural apresenta: do romance histórico à narrativa intimista, passando pela expressão inovadora das vanguardas ou pela composição de cunho mais engajado, a literatura contemporânea apresenta um vasto conjunto de autores e obras verdadeiramente singulares, reflexo flagrante de uma situação cultural marcada pela intensa criatividade e pelo alto valor estético.

Tema caro a um grande número de romancistas, a migração não podia deixar de ser retratada em nossa atual produção literária, tendo talvez como principal representante um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea: Antônio Torres. Ele mesmo migrante, saído da Bahia para São Paulo e o Rio de Janeiro, conheceu de perto a dura realidade de milhares de pessoas que partem de suas regiões para outras localidades, onde a esperança de sobrevivência pulsa um pouco mais intensamente. Romancista nato – buscando resgatar, inclusive, a não muito remota tendência social da literatura -, não pôde deixar de representar, nos seus livros, tão estimulante realidade. De fato, em Antônio Torres, a temática da migração surge, talvez como em nenhum outro romancista contemporâneo, em todo o seu vigor sugestivo e grandeza estética.

Recentemente empossado na Academia Brasileira de Letras, Antônio Torres é natural da pequena cidade baiana de Junco (hoje Sátiro Dias). Tendo se formado como jornalista em Salvador onde foi repórter do Jornal da Bahia, logo se transferiu para São Paulo, onde se empregou no jornal Última Hora, além de trabalhar no ramo publicitário. Seu primeiro romance,Um cão uivando para a Lua ( 1972 ), inaugura uma série de lançamentos de sucesso, até culminar com o célebre Essa terra ( 1976 ), que trata, entre outras coisas, do êxodo rural de nordestinos para as grandes metrópoles, principalmente São Paulo. Torres publicou ainda outros romances de sucesso, como Os homens dos pés redondos (1973), Balada da infância perdida (1986) e Um táxi para Viena d’Áustria (1991), entre outros. Com O cachorro e o lobo (1977) e com Pelo Fundo da Agulha (2006) , retornou ao tema da migração, iniciado em  Essa Terra. Autor premiado nacional e internacionalmente, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres (1998), tendo ganho ainda o Prêmio Machado de Assis  (2000), pelo conjunto de sua obra e o Prêmio Jabuti (2006), com o romance  Pelo Fundo da Agulha. Atualmente, seus livros estão traduzidos para diversas línguas e publicados em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Portugal.

Lançando mão de uma linguagem fluida, de uma narrativa marcada por certo intimismo psicológico, revelado aos seus leitores em infinitas filigranas, Antônio Torres faz emergir de sua prosa uma verdadeira avalanche de sentimentos desencontrados e em estado bruto. É, aliás, exatamente esse fluxo de consciência atípico que vai conduzir sua narrativa a um resultado duplamente relevante: de um lado, constrói-se a impressão de uma linguagem “anárquica”, em sua relativa falta de linearidade espaço-temporal; de outro lado, sua escrita passa a refletir um árduo combate entre a lembrança do passado e a realidade presente, oscilando continuamente entre estes dois polos.

Interagindo com essa linguagem singular, o tema da migração adquire contornos significativos para a compreensão intelectual e fruição estética do corpus literário do autor: assunto direta ou indiretamente presente em todos os seus romances, a migração já não se constitui apenas num fato social retratado friamente pela pena do escritor-crítico: na verdade, ela vai muito além, ao eleger para si mesma a condição de tema por excelência de sua prosa. Com efeito, assunto que norteia toda a obra, a migração emerge de seus romances como uma autêntica saga do deslocamento, onde protagonistas e personagens secundários cumprem um destino funestamente marcado pelas mudanças, pelos desvios, pelas transferências constantes. A realidade não se imobiliza: traduzida pelas personagens como fatalidade, resta-lhes apenas resignar-se e seguir adiante, carregando nos olhos a esperança de um futuro promissor, na mente, a lembrança do que ficou para trás e no peito, a firme resolução de cumprir o destino que lhe fora reservado: migrar.

ENTRE A CIDADE E O CAMPO

Em Antônio Torres, o papel desempenhado pela temática da migração desdobra-se, principalmente, em dois motivos recorrentes e relevantes: a dicotomia cidade-campo e a crise de identidade. Assim, se o tema da migração dá certa dinâmica aos acontecimentos (Um cão uivando para a lua), tornando-se assunto central de todo um romance (Essa Terra) e acessório noutro (Um taxi para Viena d’ Áustria) é no conflito declarado entre a cidade e o campo (não apenas enquanto espaços geográficos determinados, mas enquanto vivências individuais ou coletivas) e na consequente crise de identidade que se apodera dos protagonistas desse conflito que ele mais intensamente vai se manifestar.

Desse modo, em quase todos os seus romances, a migração do campo (genericamente, pequena cidade interiorana cuja economia se assenta na agricultura) para a cidade (centro urbano, metrópole) é uma constante. Às vezes, aparece com maior intensidade e, de certa maneira, dominando o contexto em que a trama se insere (Essa terra; Adeus, velho); às vezes, parece ser contingente, atuando apenas como subsídio ao enredo (Um cão uivando para a lua; Um taxi para Viena D’Áustria). Mas sua presença é, quase sempre, necessária. Pequenas cidades do interior no Nordeste (principalmente Junco, na Bahia, cidade natal do autor) destacam-se como ponto de partida para os grandes centros urbanos, geralmente Rio de Janeiro e São Paulo, mas também Salvador. A condição de estar na cidade, até mais do que a de deslocar-se para a cidade, é a motivação de muitos dos acontecimentos narrados.

A relação estabelecida entre o campesino que parte em busca de sucesso e a cidade é complexa: uma relação de amor e ódio, ora concentrada numa mesma pessoa, ora diluída por vários personagens de um mesmo romance. Neste contexto, o conflito entre os dois mundos aguça-se intensamente, evidenciando-se, por exemplo, na escolha feita pelo pai do narrador de Balada da infância perdida: “O meu pai não veio e não virás jamais. Odeia todas as cidades, sem distinção de tamanho, situação geográfica, renda per capita ou densidade populacional. Diz que são invenções do diabo. Elas roubaram todos os seus filhos […]. Preferiu a solidão da caatinga ao amontoado da Construção Civil”. Semelhante conflito, embora atenuado, pode ser verificado também em Adeus, velho, quando do retrato diferenciado que o narrador traça da Bahia, que, segundo suas próprias palavras, “eram duas: a do interior e a da capital”. Ao contrário do exemplo acima transcrito, o narrador procura inverter os valores outorgados a cada um dos elementos da dicotomia: a cidade, agora, é um lugar virtuoso e o campo, um lugar inferior.

Não exatamente dessa ideia de conflito latente, mas da diferença essencial entre a cidade e o campo que ela encerra, partilham também personagens de outros romances: assim, enquanto a cidade grandiosa e enigmática é desvendada sob a ótica do estranhamento, o campo é visto como um espaço marcado pela miséria e pela insensatez que dela decorre. Assim, a cidade torna-se, ao contrário do campo, assunto de destaque: finalidade e desfecho do processo migratório, ela é também o limite especial e existencial – já que é vista como o último baluarte das esperanças agonizantes – da saga do deslocamento. Neste sentido, não importa aos protagonistas do processo migratório e às personagens secundárias do romance se a cidade é a representação do Bem supremo a ser conquistado pelo forasteiro ou a concretização do Mal ilimitado a ser suportado pelo peregrino: o que importa mesmo é que ela existe enquanto ponto extremo de um destino a ser fielmente cumprido pelo migrante: o campo é o espaço de onde o migrante sai, deixando para trás toda uma existência comprometida com o passado; a cidade é o espaço visto como futuro, o porvir, expectativa, contudo obscurecida pelo desconhecido.

CRISE DE IDENTIDADE

Como dissemos antes, a migração vai se desdobrar, nos romances de Antônio Torres, também enquanto crise de identidade, consequência mais imediata da dicotomia cidade-campo vivida pelas personagens. Com efeito, vítimas de um maçante processo de deslocamento e, talvez mais do que isso, de uma degradante condição de exilado, as personagens dos romances de Antônio Torres acabam, necessariamente, tornando-se pacientes de uma crise de identidade.

A condição intermediária característica do migrante – e, em última instância, da própria migração -, contribui sobremaneira para esta situação: sem participar efetivamente de uma realidade comprometida com o campo (passado), já que dele se desvinculou temporariamente, nem de uma realidade amparada na cidade (futuro), já que nela vive como um exilado, os protagonistas dessa saga do deslocamento são verdadeiros deserdado da terra, seres em transição, seja entre dois espaços distintos (campo/cidade), dois tempos diferentes (passado/futuro) ou mesmo duas personalidades diversas (campesino/citadino). Enfim, são personagens que a rigor, carecem de uma identidade definida.

Essa crise de identidade, que pode encontrar uma correspondência na realidade concreta da migração, manifesta-se, explica ou implicitamente, de várias maneiras: na revolta constante de De Jesus (sintomaticamente também chamado de Estrangeiro), em Os homens dos pés redondos, na solidão quase crônica de A., em Um cão uivando para a lua ou, ainda, no elucidativo suicídio de Nelo, em Essa Terra. Todas essas personagens são migrantes que acabam por travar uma surda batalha com a nova realidade que se lhes depara, batalha essa que fatalmente desemboca numa crise existencial.

“O MEU PAI NÃO VEIO E NÃO VIRÁ JAMAIS. ODEIA TODAS AS CIDADES, SEM DISTINÇÃO DE TAMANHO, SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, RENDA PER CAPITA OU DENSIDADE POPULACIONAL. DIZ QUE SÃO INVENÇÔES DO DIABO. ELAS ROUBARAM TODOS OS SEUS FILHOS […]. PREFERIU A SOLIDÃO DA CAATINGA AO AMONTOADO DA CONSTRUÇÃO CIVIL.”(Antônio Torres, em Balada da infância perdida).

O complexo de culpa do protagonista de Um cão uivando para a lua, por exemplo, tem muito a dizer sobre a crise vivida por esse retirante consciente de sua condição de ser indesejado: deixando para trás a família, culpando-se pelo que acredita ser uma desconsideração da sua parte, A. sente-se como um verdadeiro desenraizado na cidade que precisa conquistar; não bastasse isso, a própria desidentificação das personagens do romance, que são chamados apenas pela primeira letra de seus nomes  (A.,T.) já é um indício marcante desse fato. Porém, mas do que o complexo de culpa de A.,                                  é a contundente experiência do encontro de Marília com a cidade grande em Carta ao Bispo, que nos irá revelar todo o caráter trágico da crise de identidade presente nos romances de Antônio Torres: “Eu, Marília, gelei quando bati com a cara na primeira porta.

Foi aí que descobri que eu simplesmente não existia. Fui uma invenção de um lugar, de um povo, de uma era, de mim mesmo. E nada disto existe”. Salta aos olhos o contraste brusco entre a afirmação deliberada e enfática da sua condição ontológica (“Eu, Marília…”) e posterior revelação de sua completa insignificância e anulação ( “eu simplesmente não existia…”) .

Independentemente do determinismo social que possa resultar do conflito vivido por personagens colocados num meio avesso a eles – como afirma Malcom Silverman, em seu livro Moderna Ficção Brasileira -, o importante é notar a dimensão da crise advinda desse conflito, uma crise que vai funcionar como elemento condicionante da personalidade de cada personagem. Por isso mesmo talvez não haja nenhuma noção mais apropriada para entender essa crise do que a já citada ótica do estranhamento, a qual, no limite, vai acabar conformando todo o processo de descobrimento da cidade pelo migrante: tanto a angustiante constatação de De Jesus de que, afinal de contas, sua existência não tem importância alguma, em Os homens dos pés redondos, quanto a visão conturbada e comovente da cidade pelo narrador da Balada da infância perdida vão ser marcadas por um profundo efeito de estranhamento. E é nas palavras substanciais do protagonista de Um cão uivando para a lua – para quem “as vozes da rua são vozes de outro planeta” – que vamos perceber o primeiro e mais flagrante indício desse efeito, a se perpetuar por todo o conjunto de sua produção literária. Traduzida esteticamente, a migração torna-se – nos romances de Antônio Torres – a saga do deslocamento. Suas narrativas demonstram, além de tudo, que a migração é um fenômeno social marcado, entre outras coisas, por uma fatal incompletude (do deslocamento? Da identidade?): em Essa Terra, por exemplo, Antônio Torres faz da palavra – ou melhor, da antipalavra – do pai de Nelo a síntese do significado da migração: ao terminar a narrativa aconselhando Totonhim a partir para a cidade grande, mas deixando a frase em suspenso, sem completar o que ia dizer, seu pai traz à tona a face mais cruel do processo migratório: como uma fatalidade, uma necessidade regida pelo poder incorruptível do destino, a migração se define exatamente pela ausência de limites, pela suspensão do discurso e de seu próprio desfecho.

Como nos romances de Antônio Torres, essa é também uma história que não tem fim…

CONLUSÃO

POR UM PÉ DE FEIJÃO

Antônio Torres

“Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (a nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol, desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados… Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum… O mundo era verde. Que podíamos desejar?…”

Este é um excerto de um texto de Antônio Torres, publicado originalmente em Meninos, Eu Conto, Editora Record -Rio/São Paulo, 1999, o qual foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século” , Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 586.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos publicados em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

*Maurício Silva é o professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira nos programas de graduação e pós-graduação da Universidade Nove de Julho. Autor de “A Hélade e o Subúrbio: Confrontos Literários na Belle Époque Carioca” ( São Paulo, Edusp, 2006) e de “O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” ( São Paulo Contexto, 2008), entre outros títulos.

Antônio Torres o best seller do sertão volta à seca

Ivan Finnoti
enviado especial a Sátiro Dias (BA)

Vinte e dois anos após transformar o suicídio de um conterrâneo no romance “Essa Terra” (100 mil exemplares vendidos), o autor volta a sua cidade natal, no sertão da Bahia, e é recebido como herói.

“Totinho, obrigado por colocar essa terra no mapa do mundo.” A faixa estava pendurada em frente à biblioteca da cidade, mas o vento a levou antes que o tal do Totinho chegasse para autografar seus livros. A cidade é a minúscula Sátiro Dias, de 3.500 habitantes, cravada no sertão baiano a 200 km ao norte de Salvador. A biblioteca se chama Antônio Torres e é o segundo maior orgulho da cidade. Já o Totinho da faixa é o Antônio Torres em carne e osso, esse sim o maior orgulho de Sátiro Dias. Autor de oito romances, Torres nasceu ali há 57 anos e fez da cidade e dos conterrâneos seus personagens centrais. Acrescente-se a isso a tradução de seus livros para sete idiomas e se verá porque Antônio Torres é o grande herói desse sertão. Há duas semanas, o escritor saiu de seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, e foi visitar Sátiro Dias -que comemorava 40 anos de emancipação. Para dizer a verdade, Torres foi mesmo é reencontrar seus personagens.

“Terra de poetas”

“Não tem mais o tanque velho onde você tomava banho”, avisa o prefeito. “O seu riacho secou”, conta uma tia. Assim Torres vai sendo informado das novidades dos últimos anos, enquanto entra na igreja para dar sua palestra, na tarde da sexta-feira retrasada.

Antes, de manhã, já tinha sido homenageado durante a missa. Os três padres convidados para o acontecimento interromperam o sermão para anunciar a chegada do escritor à cidade.

Em seguida, na praça central -e única-, Torres deu o corte inicial no bolo de 30 metros, dividido por cerca de 2.000 satirodienses. Ganhou ainda uma placa de cidadão honorário. Sem contar as faixas espalhadas pela cidade saudando o escritor. Sátiro Dias só fala de Antônio Torres.

“Não fui eu quem coloquei essa terra no mapa do mundo. Foi essa terra que me colocou lá”, diz ao entrar na igreja, se referindo à faixa na frente de sua biblioteca.

Agora discursa no púlpito, impressionado com os ouvintes a sua frente. Enxugando o suor do rosto, fala: “Vocês tem os mesmos rostos, as mesmas vozes que estão nos meus livros”.

Na saída: “Ufa, é tão difícil falar para essa gente… Eles são meus personagens. O que eu vou dizer que eles não saibam? É mais fácil discursar em uma homenagem em Paris do que aqui, na minha terra.” E olhem que Torres discursou mesmo em uma homenagem em Paris.

“Essa é uma terra de poetas”, resume, com orgulho indisfarçável, o morador Manoel do Nascimento, 65.

Depois da igreja, a próxima parada é a biblioteca. A essa altura, a faixa do Totinho já se desgarrou e está dando rasantes pelo sertão baiano -que está verde porque é inverno. Torres autografa seus livros no salão lotado.

O vendedor da editora Record -que levou uma dúzia de exemplares de “O Cachorro e o Lobo”, lançado no ano passado- não consegue vender nenhum. “Já era esperado. É mais para marcar presença”, diz.

Falta ainda uma solenidade noturna na Câmara dos Vereadores. Novos discursos, coquetel com salgadinhos e fim de papo.

Junco

Antônio Torres nasceu de parteira em uma fazenda da região quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco, em 1940. Primogênito de 11 irmãos, foi criado ali e assistiu à chegada do primeiro caminhão: “Ele apareceu no topo da colina, descendo a estrada, trazendo um inédito cheiro de combustível. Ficamos com medo, achando que ele vinha atrás de nós”.

Torres saiu de lá aos 14 anos para estudar na vizinha Alagoinhas. Trabalhou em jornais em Salvador e São Paulo (“Última Hora”), passou para a publicidade e acabou se tornando escritor nos anos 70. Suas obras ganharam traduções na França, Alemanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e Israel.

Talvez o livro que melhor resuma a obra de Torres seja “Essa Terra”, lançado originalmente em 1976. Vendeu 100 mil exemplares no Brasil e hoje está em sua 13ª edição, pela Ática.

O mote de “Essa Terra”, e de várias de suas obras, não é apenas a cidade perdida na seca. É isso mais a migração dos baianos para São Paulo em busca de trabalho. E também o destino trágico de quem não consegue vencer na cidade grande.

No livro, após anos trabalhando em São Paulo, o baiano Nelo volta para Junco e é recebido com festa. Todos o imaginam vencedor. Afinal de contas, chega usando óculos Ray-Ban e palavras difíceis. Mas acaba cometendo suicídio, se enforcando com uma rede.

Nelo é inspirado em história real. Em 1973, um satirodiense conhecido como Lela de Tote, depois de várias idas e vindas a São Paulo, se enforcou assim.

O que impressionou a cidade não foi o suicídio. “Havia muitos”, conta Torres, “mas o fato foi que Lela não amarrou seu pescoço em uma árvore, deixando a gravidade fazer o serviço. Ele se enforcou na armação de uma rede, que era mais baixa que ele próprio, apertando a corda com as mãos e morrendo de joelhos”.

Partindo dessa história, Torres traça um panorama desse sertão baiano, em que a seca expulsa os roceiros para São Paulo ou outras metrópoles. Não é o universo de “Vidas Secas” (Graciliano Ramos), em que os miseráveis cortam a caatinga a pé.

Os roceiros de Torres pegam caminhão pau-de-arara ou ônibus para o Sudeste, trabalham na construção civil e voltam para Sátiro Dias -ou Junco, como o escritor prefere.

Torres gosta tanto do antigo nome da cidade que só se refere a ela como Junco. Chegou a ensaiar um movimento para que a cidade reassumisse o nome.

“Não deu certo, mas já estou me acostumando. Sátiro Dias, na verdade, foi um baiano porreta. Trouxe o correio para nosso arraial e soltou os escravos do Ceará, onde foi governador, quatro anos antes da Lei Áurea”, diz Torres.

O correio trazido por Sátiro Dias foi, por décadas, o único meio de comunicação dos moradores com seus parentes no Sudeste. O primeiro telefone, por exemplo, só chegou ali em 1986. Até hoje, a agência recebe cerca de 300 cartas e envia outras tantas por semana.

A chegada do telefone faz parte da modernização pela qual Sátiro Dias passa nos últimos tempos. Já existem parabólicas na cidade (a televisão chegou em 1975). E há quatro anos, os últimos 40 quilômetros de estrada de terra que separavam a cidade do resto da Bahia foram vencidos pelo asfalto.