UMA REGIÃO DA MEMÓRIA: ESPAÇO E IDENTIDADE NA TRILOGIA DO JUNCO, DE ANTÔNIO TORRES

Abaixo está o artigo em PDF que você pode ver ampliado clicando aqui – Uma Região da Memória: Espaço e Identidade na Trilogia do Junco, de Antônio Torres por Lucas Mateus Mariz de Andrade e André Pessaro Pelinser da UFRN UFRN – Artigo publicado na revista Versalete, da Universidade Federal do Paraná.

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O Cachorro e o Lobo: sob o signo da leveza – Resenha de Maria Adélia Mota da Silva

Maria Adélia Mota da Silva

Pedro Páramo é uma ótima indicação para aqueles que querem pensar um pouco sobre os caminhos da narrativa de Antônio Torres. Esse famoso romance de Juan Rulfo é referido por Torres em O cachorro e o lobo , segundo de uma trilogia que tem Essa terra como primeiro livro. A odisseia mexicana do filho que vai à procura do pai ausente dá a Totonhim, personagem principal do romance de Torres, a vontade de voltar e rever sua terra.

O medo da morte do pai faz Totonhim viajar para encontrá-lo em plena comemoração dos seus oitenta anos. Entre ruas e estradas velhas, percorre o passado, deparando-se com o que chamou de admirável mundo velho. Nessa terra, de certa forma, todos são parentes ou conhecidos. As vozes antigas pertencem ao mundo da memória afetiva. O doido, a esmoler, o político, a professora, todos são arquétipos de um mundo que, metaforicamente, está morto. Aqueles que teimaram em não abandonar essa terra estão condenados à derrota e a um tempo fora dos padrões que se perde no nevoeiro das remotas lembranças do filho sensível e bem-humorado.

Letrado, funcionário de banco, morador de uma metrópole, o personagem principal também é um derrotado. Sua existência de cidadão pacato e invisível traz muitas dúvidas quanto ao futuro e às vicissitudes cotidianas. Seguro e conhecido é o passado edificado nas memórias sobre o pai, a mãe e o irmão morto. De volta ao lugar onde enterrou o umbigo, Totonhim aproveita cada minuto da rápida visita para reviver sensações que cumprem a função terapêutica de invocar a infância, a adolescência e uma parte da vida adulta.

Se, em Pedro Páramo , o filho vem cobrar o descaso paterno, em O cachorro e o lobo é o pai que sente a ausência do filho que foi seduzido pelas comodidades da vida em São Paulo. Entre uma prosa e outra, surgem velhas canções, fragmentos de poemas e referências literárias que ajudam a seduzir o leitor. Torres o pega pela mão e o conduz a um mundo do qual, em poucos anos, só haverá o registro literário. Por isso, Essa terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha são romances necessários e apontamentos de um tempo perdido. Sem esse registro, as histórias interioranas morrerão na memória dos que hoje têm mais de quarenta.

No Junco, a vida dos de fora chega pelas parabólicas nos telhados das casas em que seus moradores resistem. São, em sua maioria, velhos. Estão lá ou voltaram para morrer. Ironicamente, o pai de Totonhim é feliz em sua reclusão. Se bebe, se fuma, se fala com os mortos, há um pouco de excentricidade e muito de sabedoria na vida cotidiana do velho Antão. Esse é o elogio e o louvor que Antônio Torres faz aos homens do povo. Torna-os lobos solitários e sobreviventes em um mundo no qual a pressa não existe. O cotidiano interiorano tem seu tempo particular.

Segundo Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio , a Literatura tem função existencial. Para isso, há “a busca da leveza como reação ao peso de viver”. Ao voltar à sua terra, Totonhim encontra uma sucessão de personagens e recordações que o levam, de forma apaziguadora, a encontrar a si mesmo. O peso do qual falava Calvino não existe no Junco. A vida, como no poema “Cidadezinha Qualquer”, de Drummond, vai devagar e marca seu ritmo próprio. Com a simplicidade e a beleza que só grandes sensibilidades conseguem repassar para suas narrativas, Antônio Torres faz de uma existência interiorana um questionamento sobre os valores modernos, como é o caso da velocidade. Pressa para quê? A história vai sendo contada com o tom de um dedo de prosa, como uma conversa que só assimilará aquele que for capaz de desacelerar o ritmo da vida para acompanhar o da narrativa.

Milan Kundera, em A arte do romance , escreve sobre apelos aos quais o leitor deve ser sensível. Um apelo encontrado em O cachorro e o lobo é o da diversão. Há romances que são concebidos como puro diletantismo e este é um deles. A extrema leveza ao narrar a história faz de Torres um prosador de formas singelas e narrativa ágil. Ser simples em sua forma de narrar, decididamente, não é característica para muitos escritores. Torres dá a verossimilhança de presente ao leitor e este busca encontrar-se também na narrativa. A identificação entre a obra e o leitor causa uma sensação que faz do Junco o mundo da memória pessoal.

O pertencimento proporcionado pela leitura da narrativa de Torres transforma-se no prazer de reencontrar-se, de recuperar as origens, há muito perdidas sob o signo da velocidade. Para quem é leitor e já viveu em uma cidadezinha qualquer, vem a nostalgia de se reconhecer, como em um espelho. Rever-se menino ou jovem é um sortilégio muito sedutor em uma narrativa. Esse é um dos prazeres proporcionados pelos livros de Torres. Essa é uma das muitas razões para tirar Pelo fundo da agulha da estante. Que venha a próxima leitura!

NAS LEMBRANÇAS DO HOMEM, A RELEITURA DO PASSADO: MEMÓRIAS EM O CACHORRO E O LOBO, DE ANTÔNIO TORRES

Capas de O Cachorro e o Lobo
Algumas capas de O cachorro e o lobo

Trabalho de conclusão de curso de Letras – Uneb 10 – sobre O Cachorro e o Lobo.
Teixeira de Freitas – Bahia – 2009
Cibele Soares Hermano
Cristiane Diamantino de Oliveira
Izabel Freitas Machado

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Uma fábula do bicho homem

Cid Seixas

“Num tempo em que esse mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora já era o começo de um romance”. É assim que Antônio Torres abre um dos capítulos iniciais do livro O cachorro e o lobo, assinalando um duplo resgate: o retorno a um tempo mítico, no qual o homem encontrava o vagar necessário para reparar nas coisas, e o resgate daquela gente que sabe contar histórias.

Habitando a fratura entre dois lugares distintos, a cidadezinha da infância perdida e a metrópole da competição, a obra de Torres se caracteriza pela procura do novo, pelo experimento. Já com este livro, ele abre as comportas do açude, deixando sangrar as águas da emoção mais direta e despojada. Se nos primeiros romances, a escritura precisava se ancorar na razão e apostar no experimentalismo para neutralizar as confissões do sujeito, chegou um tempo em que as descobertas devolveram à linguagem o saber necessário para falar do silêncio e do tumulto do homem.

O cachorro e o lobo é resultado do encontro da sensibilidade do autor com a sensibilidade do leitor, fundindo os dois rios num estuário em que a emoção e o sentimento mais íntimo não precisam ser escondidos. Quando a escrita é simultaneamente pessoal e transferível, o mar de palavras constrói aquilo que já foi definido por Drummond como o sentimento do mundo.

Autor de uma obra formada por quase uma dezena de livros, Antônio Torres vem sendo reconhecido, sobretudo, como o autor de Essa terra, romance publicado em 1976 e reeditado sucessivas vezes. As traduções do livro para o inglês, o francês, o alemão, o espanhol, o italiano etc. serviram para abrir espaço nas letras nacionais para este baiano do sertão que, a exemplo de outros retirantes, partiu em busca da terra prometida dos nordestinos: a São São Paulo, conforme o título da canção de um outro baiano emblemático.

Torres começou a vida como jornalista em Salvador, transferindo-se depois para a Última Hora de São Paulo e, finalmente, para o Rio, onde trabalha em publicidade.

O interior continuou sendo uma referência um tanto longínqua, embora forte, constituindo o espaço e o cenário mais profundo e recuado do seu mundo ficcional. Foi este espaço interior e paisagístico, que tem como centro polar a antiga Junco, no caminho dos sertões de Antonio Conselheiro, que forneceu a seiva de Essa terra. Foi este mesmo livro que consolidou o nome de Antônio Torres como escritor.

REFERENCIAL – Ao retornar, vinte anos depois, à ruidosa quietude da sua Macondo, Torres escreveu um livro que não apenas dá continuidade à saga de Totonhim pelas veredas do Junco e pelas terras da promissão que ficam “pra lá do Vale do AnhangabaÚ”. O cachorro e o lobo é um livro que, pela madureza da escrita e pelo domínio da técnica romanesca, passa a ser o referencial da obra do autor. Feito escritor, maduro e senhor do seu ofício, a volta ao lugar da partida serviu para corrigir o viés do olhar, ou para reescrever, com ternura e sabor de fruto sazonado, o intervalo entre a cidade e o sertão – a civilização e a natureza.

Durante muito tempo, embora refinando a escrita e diversificando a temática, Antônio Torres continuou sendo o autor de Essa terra. Mesmo quando a crítica apontava nele um artesão do texto mais seguro e cheio de inventos, o livro de 1976 projetava sombras sobre as novas histórias. Caio Fernando Abreu escreveu na Veja que Torres vinha conquistando um universo próprio inconfundível, com a garra de quem estava disposto a ocupar um dos grandes lugares vazios deixados na literatura brasileira por Clarice Lispector, Guimarães Rosa ou Osman Lins.

Mas Essa terra persistia como afirmação e desafio. O lugar da partida era apenas um ponto distante, um pólo distinto do lugar de chegada.

O cachorro e o lobo apresenta-se com a força de uma obra essencial, coroando a plenitude do romancista e propondo-se como referência obrigatória. Os fantasmas e criaturas do universo romanesco de Antônio Torres não mais pertencem ao pequeno mundo da velha vila do Junco. Pertencem à cidade solar da criação, ao lugar do sonho e do desejo de todo leitor. Ou melhor: o Junco que serve de paisagem ao romance O cachorro e o lobo não é mais uma cidadela plantada na “boca do sertão” baiano, nas estradas de poeira levantada pelas sandálias da gente de um outro Antônio, que erguia igrejas e torres. O engenho da ficção integrou o lugarejo desconhecido na geografia literária do mundo contemporâneo.

A Macondo de Antônio Torres e o Junco de García Márquez (que embaralham e confundem capitais de países de sonhos tão diversos) são cidades um pouco parecidas. Cidades que flutuam na memória e na sensibilidade de milhares de leitores.

O romancista de Essa terra, de Balada da infância perdida, escreveu uma Carta ao Bispo, pegou Um táxi para Viena d’áustria e, finalmente, conseguiu reunir frente a frente duas espécies próximas e distantes: O cachorro e o lobo.

LUGAR DE SONHO – Para juntar antepassados e pósteros de uma mesma família de migrantes desgarrados, o autor precisou criar um habitat adequado. Um lugar de sonho plantado sobre pálpebras abertas e olhos esbugalhados. Ele construiu uma cidade de todos nós, situada naquele espaço tão grande e desconhecido para o perplexo viajante, que Drummond cunhou o topônimo Oropa-França-Bahia, perdido nos confins do horizonte e da razão.

Com o progresso do Centro-Sul do país e o desequilíbrio crescente entre esta região e o Nordeste, uma nova humanidade de retirantes – não mais os retirantes da seca, mostrados pelo romance regional – habita as páginas da ficção torreana. São os migrantes de um outro Brasil, do Brasil perdido no tempo e nas roças abandonadas. Com a ilusão criada pelas luzes da Cidade Grande, o homem do Nordeste que plantava e colhia a vida nesse chão, nessa terra, foi plantar sonhos e desilusões nas construções de concreto de São Paulo.

é este homem, retirante de si, que Antônio Torres vai buscar para constituir a população da sua cidadela de papel. O velho lobo espalhou as crias pelo mundo. Mas, em vez de lobos, capazes de habitar as tocas do mato e liderar a matilha, nascem cachorros desgarrados, perambulando pelas ruas da cidade.

Uns são atropelados pelas máquinas. Outros desaparecem. Um ou outro cão solitário consegue se fazer ouvir, uivando para a lua, na esperança de algum dia reunir a matilha, como faziam os ancestrais.

Livro linear, que conta uma história palpável e de fácil assimilação, O cachorro e o lobo é também um romance emblemático, alegórico, onde leituras paralelas conferem uma nova dimensão à linearidade da fábula.

O forte deste livro é retomar o gosto de bem contar uma história, como faziam os narradores de ontem e como fazem os narradores de hoje e de sempre. Cervantes, Maupassant, Camilo, Machado, Torga, Amado ou Adonias.

Josué Montello, no Diário da noite iluminada, diz que todo o drama de Narciso está no fato da imagem que ele tem de si mesmo não coincidir com a imagem vista pelos outros. E lembra: por vezes, não é outro o desencontro do autor e do leitor.

Mas quando o artista vai se tornando senhor do seu engenho, o tiro no escuro, ou o experimento meramente probatório, na busca desesperada de fazer coincidir as duas imagens, cede lugar à confluência da emoção do autor para a sensibilidade do leitor. é o que acontece neste novo livro de Antonio Torres.

Farrapos de memória, cerzidos com fios dourados de ficção, ganham consistência ao serem aplicados à entretela do romance. Uma resistente costura de tacos multiformes constitui o bordado, ou o novo tecido, feito de materiais de natureza diversa para formar a textura una e bem urdida de uma bela colcha de retalhos onde nasceram o cachorro e o lobo.

Cid Seixas é jornalista e escritor. Dedica-se à crítica.

SEIXAS, Cid. O cachorro e o lobo: Uma fábula do bicho homem. A Tarde, coluna “Leitura Crítica”, caderno 2, p. 5, 30 jun 97.

SEIXAS, Cid. Antonio Torres escreve a fábula do bicho-homem. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. 3, 8 de novembro de 1997. (Este texto resulta de uma nova versão do artigo anterior.)

. TORRES, Antonio: O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro, Record, 1997.