Rita Olivieri-Godet
(Université Rennes 2)
“Comme l’analyse littéraire de l’autobiographie le vérifie,
l’histoire d’une vie ne cesse d’être refigurée par toutes les histoires
véridiques ou fictives qu’un sujet raconte sur lui-même ; cette
refiguration fait de la vie elle-même un tissu d’histoires racontées”.
Paul Ricoeur, Temps et récit
Na produção literária brasileira recente, publicada a partir de 1990, a inscrição de um referencial histórico possibilitando a interrogação da formação e do destino da nação brasileira, que até então constituía uma vertente importante da narrativa, dá lugar a uma representação neo-realista dos problemas atuais das sociedades urbanas modernas. Observa-se que na nova narrativa brasileira, o espaço da cidade cosmopolita desloca o espaço nacional. Os escritores que surgem durante essa década se desviam da interrogação sobre o passado histórico para se apossarem dos fenômenos de sociedade do tempo presente. No entanto, se uma outra relação entre literatura e história desponta, a tendência para construir a intriga romanesca apoiando-se na ficcionalização da história brasileira persiste[1]. Na virada do século, a proximidade das comemorações dos 500 anos da ‘« descoberta ‘» do Brasil recolocou na ordem do dia o debate sobre a nação e despertou o interesse por uma nova exploração do passado histórico. A publicação em 2000 de Meu querido canibal de Antônio Torres, narrativa que questiona o lugar que a nação brasileira reserva ao índio, inscreve-se nesse contexto. Com a publicação de O nobre sequestrador (2003), cuja intriga toma por referencial histórico um acontecimento importante da história brasileira, este autor continua a interrogar as relações entre literatura e história. Meu trabalho propõe uma reflexão sobre a escrita da história nesse romance, questionando os limites de um modelo, o do romance histórico tradicional.
Corrigir, inventar, construir a história
Nos seus dois recentes romances, Meu querido canibal [2] e O nobre sequestrador [3], Antônio Torres manifesta de imediato o desejo de interrogar as relações entre literatura e história, ao fazer a escolha de recriar a vida de dois personagens históricos, diretamente relacionados com a cidade do Rio de Janeiro. O primeiro romance coloca em cena o índio Cunhambebe da nação indígena Tupinambá que habitava a região da Baía de Guanabara no momento da invasão francesa do Rio de Janeiro, em 1555, com o objetivo de construir uma França Antártica sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon. O texto romanesco mais recente inspira-se da biografia de René Dugay-Trouin, corsário do rei Luís XIV, que, em 1711, sitiou durante 50 dias a cidade do Rio de Janeiro. Para construir suas intrigas, esses dois romances inspiram-se de acontecimentos comuns à história francesa e brasileira, cruzando olhares entre o Velho e o Novo Mundo e interrogando o sentido de um tal encontro.
As pesquisas que o autor empreendeu sobre a história do centro da
cidade do Rio de Janeiro estão na origem da escrita desses dois
romances que possuem inegavelmente elementos comuns e podem, num certo
sentido, serem lidos como textos complementares. Eles preservam no
entanto suas singularidades no processo de textualização do real. Se a
história dos vencedores é o alvo comum da crítica realizada pelos dois
romances, esses não a questionam da mesma maneira nem com a mesma
intensidade.
Em Meu querido canibal, narrativa que recorre largamente à intertextualidade para reconstruir, num estilo ao mesmo tempo dramático e paródico, a história do Rio de Janeiro no século XVI, centrada no episódio da conquista da cidade pelos franceses (1555-1560), trata-se claramente de produzir um texto visando “corrigir” uma imagem do índio Cunhambebe, marginal e marginalizada, omitida ou deformada pela versão oficial da história, transformando Cunhambebe em herói nacional. à um narrador apaixonado e indignado que denuncia o apagamento do lugar do índio na história e na sociedade brasileiras e que empreende a construção desse herói marginal num tom polêmico e provocador que rasura as páginas da história. O romance trilha um caminho percorrido por inúmeras narrativas latino-americanas, o da resistência à s representações oficiais e muitas vezes eurocêntricas da história, uma espécie de anti-história construída a partir do ponto de vista dos vencidos. [4]
Com O nobre seqüestrador, a relação do texto à história se afasta da denúncia explícita. Na verdade, o projeto ideólogico da obra parece menos comprometido com uma prática militante de rasura das páginas da história e mais implicado na projeção de uma “visão da História que trabalha no texto, que é trabalhada e produzida pelo texto”. [5] Mesmo se o texto sublinha a ambigüidade entre o papel de herói e o de vilão que podemos atribuir a Duguay-Trouin, variando segundo que a perspectiva adotada é a da história nacional francesa ou brasileira, o diálogo que a ficção mantém com as práticas discursivas literárias e historiográficas que constróem o retrato de Duguay-Trouin e descrevem as circunstâncias do acontecimento histórico é menos polêmico que o do Meu querido canibal com suas referências textuais. à a idéia que o acontecimento só pode ser referido pelo discurso que conduz o texto a explorar as fronteiras entre as diferentes formas de narrativas sobre o fato histórico quer elas estejam ancoradas nas convenções de ficcionalidade ou fundadas nas de veracidade.[6] O questionamento da história dos vencedores não se faz mais pela simples inversão de perspectivas visando corrigir a versão oficial. Ele se afasta assim de uma estrutura dicotômica e privilegia uma organização mais atomizada da narrativa. A voz de um narrador apaixonado que o leitor podia aproximar da perspectiva do autor em Meu querido canibal desaparece em O nobre sequestrador dando lugar a uma instabilidade mais radical das instàncias narrativas, vozes e perspectivas transformando-se e multiplicando-se de um capítulo a outro. Deixarei para um próximo trabalho a comparação entre esses dois romances para analisar aqui a maneira como O nobre sequestrador inscreve o discurso da história no texto.
O nobre sequestrador e a tessitura da (H)história
Trata-se portanto de desvendar os fios híbridos, formados de
elementos tomados de empréstimo a diversas fontes, que o autor teceu
para construir sua história, entendida aqui ao mesmo tempo como diégese
e como visão da História. Uma primeira pergunta diz respeito à
discussão em torno do gênero ‘« romance histórico ‘», etiqueta
utilizada sem hesitação e sem suspeita, tanto nas entrevistas do autor
como nas resenhas redigidas pelos críticos quando da publicação do
livro. Eu diria que esse ‘« epitexto público ‘» revela um sentido
convencional que reconhece como romance histórico toda narrativa
ficcional que constrói sua intriga em torno de um personagem ou de um
acontecimento do passado. A propósito, a capa do livro multiplica os
indícios que remetem ao passado, superpondo imagens antigas da baía do
Rio de Janeiro com caravelas e fortes, tudo isso encimado pelo retrato
do capitão corsário Duguay-Trouin (1673-1736). Das entrevistas e
resenhas, em que se fala do longo trabalho de pesquisa que o autor foi
levado a fazer para escrever este livro, sobressai a imagem do escritor
esquadrinhando documentos antigos, dedicando-se à pesquisa de campo,
como se tivesse receio de cometer erros relativos a dados do contexto
histórico. Ao acrescentar ao índice e aos agradecimentos, uma
bibliografia na qual a quase totalidade dos títulos citados pertencem
à historiografia, a organização material do livro evidencia a intenção
de aproximar os trabalhos do escritor e do pesquisador da área de
história o qual se apóia em documentos para construir sua narrativa.
Nesse esforço empreendido pelo autor em busca de informação, teria ele
sido vítima da ilusão realista para evocar fielmente uma época
longínqua ? Ainda que, em alguns momentos, poder-se-ia desejar que essa
função informativa fosse mais discreta na economia narrativa do
romance, é certo que essa obra explora a relação entre ficção e
história em outras bases que as do romance histórico convencional. à o
que tenta demonstrar minha análise do processo de textualização em O nobre seqüestrador.
Para fazê-lo, retorno à capa do livro para dessa vez chamar a
atenção sobre o texto que acompanha a ilustração. A presença de uma
marca paratextual ‘ romance – , marca de ficcionalidade, colocada em
evidência sob o título O nobre sequestrador, propõe ao leitor
um pacto romanesco, não deixando nenhuma dúvida sobre o registro, o da
ficção, através do qual a obra deve ser lida. Contrastando com a
ilustração que reproduz uma imagem do passado, o título destaca uma
palavra que está enraizada no imaginário coletivo de nossas sociedades
atuais, como se anunciasse as tensões entre o passado e o presente
assim como as práticas discursivas históricas e literárias que serão
confrontadas ao longo da narrativa, nesse espaço de mediação que o
texto literário inaugura.
Portanto, é no limiar entre narrativa factual e ficcional que o texto vai explorar as trocas recíprocas e as fronteiras entre os gêneros, ao escolher colocar em cena a história de uma vida que, como assinala Dorrit Cohn, constitui o campo genérico em que narrativas factuais e ficcionais mais se aproximam.[7] Numa primeira parte, ‘« A estátua falante ‘», o romance toma como ponto de partida a autobiografia real de Duguay-Trouin, assim como as biografias desse capitão corsário, para as investir de um novo sentido. A história da vida desse corsário e da invasão do Rio de Janeiro se desdobra em história dessa cidade tendo a violência como fio condutor e permite também evocar as ‘« cidades históricas ‘» francesas, Saint-Malo, La Rochelle e Rochefort. Mas isso não é tudo. O romance torna-se objeto de sua própria intriga, encena sua própria história e projeta no seu universo o personagem do escritor.
A complexidade da urdidura da intriga a partir desses elementos heteróclitos se acentua com a instabilidade das instàncias narrativas cujos exemplos mais representativos são por um lado, a figura do narrador que se transforma ao longo do romance e por outro lado, o jogo de perspectivas. Todos esses elementos favorecem uma composição atomizada da narrativa que exprime a impossibilidade de construir uma imagem única e coerente do mundo. Assim o texto romanesco representa o enfrentamento entre as diferentes versões do real, como denota a multiplicação das vozes narrativas: a do narrador e personagem principal Duguay-Trouin (“A estátua falante“) uma autobiografia ficcional que se afasta do modelo da autobiografia real; a de um narrador anônimo e consciente que conta o percurso do escritor seguindo as pistas de Duguay-Trouin (‘« Quando as guerras eram outras e outro era o mundo ‘», La Rochelle, 24 de janeiro de 2002); a de um narrador e personagem-testemunho da viagem de Duguay-Trouin e do seqüestro da cidade (‘« Esta viagem ‘», La Rochelle 9 de junho de 1711 e ‘« Diário do assalto ‘», Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711) que imita uma forma de narrativa de testemunho, o diário de bordo ; enfim, a da cidade do Rio de Janeiro, narrador e personagem principal da terceira parte do livro, ‘« Quando eles forma embora ‘», uma autobiografia ficcional que segue de perto as fontes historiográficas sobre a cidade.
Assinale-se ainda o fato de que as citações dispersas no texto tornam mais complexas as mudanças da voz narrativa e da focalização. Dentre elas, duas adquirem um estatuto particular por se apresentarem como partes autônomas, ilhéus não ficcionais, para empregar a expressão utilizada por Gérard Genette.[8] Trata-se de dois extratos reproduzidos como artigos publicados no Jornal do Brasil, sobre a violência no Rio de Janeiro e o ‘« seqüestro ‘» da cidade por narcotraficantes. A reprodução desses fragmentos sublinha a permanência da marca da violência na história da cidade, reforça os laços entre o passado e o presente e permite alargar as versões e visões sobre este assunto. O primeiro extrato, ‘« Intervalo ‘», introduzido entre a primeira e a segunda parte do romance, é seguido de um poema de Alexandre O’Neill sobre o medo, aproximando assim narrativa factual e dicção poética ; o segundo fecha o romance sob a forma de um Post scriptum. Ambos exibem a atualidade dos seus relatos pela presença de marcadores temporais que reproduzem as datas de 3 de dezembro de 2002 e de 25 de fevereiro de 2003, respectivamente. O estatuto ambíguo que possuem, ilhéus não ficcionais apresentados enquanto tais, mas ao mesmo tempo englobados pelo discurso da ficção que lhes imprime um valor estético, expõe uma prática de conversão do discursivo em textual, aberta à colagem e ao agrupamento de elementos heteróclitos. Esses extratos apontam igualmente para a tensão entre o circunstancial e o imaginário, ou ainda entre o documento e a poesia, retomando os termos utilizados por Antonio Candido num artigo célebre [9] para designar o caráter dialético do texto literário, a um só tempo fonte de informação e objeto estético. à esta dupla dimensão que o romance procura dramatizar, exibindo seu sistema de referências textuais e contextuais e a liberdade delas se emancipar no seu processo de produção de sentido, uma vez que ficcionalizar pressupõe um trabalho de deslocamento e de produção de sentido capaz de instituir novas configurações do possível.[10]
Desde o início do romance, O nobre seqüestrador indica o
tom e as escolhas textuais principais que dizem respeito tanto à
configuração narrativa do tempo e do espaço quanto ao questionamento
sobre o gênero (romance histórico, autobiografia ficcional, biografia).
Adota uma forma de representação que embora não renuncie à uma certa
função referencial, abre-se à irrupção do fantástico e do insólito na
encenação narrativa. Leiamos as primeiras linhas do capítulo de
abertura :
Por mais que eu olhe nunca avisto Niterói
Quando o mundo era dos marinheiros, eu, René, filho de Marguerite Boscher e do comandante de navios Luc Trouin, não me fiz ao mar logo de cara, assim que me dei por gente, como você poderia imaginar, você, que veio de longe, lá do Brasil ‘ e do Rio de Janeiro ! -, que atravessou o Atlàntico e ainda rodou um bocado por aí de trem e de automóvel, aventurando-se em trilhas que supôs levarem a algum vestígio de minhas pegadas nesta França velha de guerra, Paris ‘ Bordeaux, Bordeaux ‘ La Rochelle, La Rochelle ‘ Rochefort, depois Paris ‘ Nantes, e de Nantes até aqui, aqui Saint-Malo, ponha aí um chapeuzinho no o para os brasileiros pronunciarem o nome da cidade corretamente, Saint-Malô, onde começa e termina a história deste lendário corsário de Sua Majestade Cristianíssima Luís XIV, o Rei sol, eu, René Duguay-Trouin, o tenente-general das Forças Armadas Navais, eternizado em bronze na passarela da glória nesta célebre muralha, a marca registrada de Saint-Malo, cá estou, no panteão ao esplendor do tempo dos marinheiros, postado de frente para o mar, de onde jamais queria ter saído desde o dia em que me acostumei com ele na marra, mas eia, você veio até aqui para sequestrar as minhas memórias, porque também sou um malfadado personagem da história do seu país, vamos, aproxime-se, já não mordo, olhe-me [‘¦] (O nobre sequestrador, p. 11-12)
Como assinala Paul Ricoeur, a ruptura entre tempo do romance e tempo real constitui a lei da entrada na ficção. [11] Ora, em O nobre seqüestrador, essa entrada na ficção está deliberadamente exposta pelo recurso a um artifício que renuncia aos valores da plausibilidade e da verossimilhança, que consiste em dar voz a uma estátua. A escolha de um tal sujeito de enunciação vai tornar possível uma configuração temporal e espacial que cria pontes entre o passado e o presente, fazendo coabitar a impressão de um vivido temporal imediato (‘« vamos, aproxime-se, já não mordo, olhe-me ‘») com a memória das coisas contadas (‘« Quando o mundo era dos marinheiros ‘»). Ela vai permitir simultaneamente aproximar o espaço americano do espaço europeu. Continuidade e contigüidade fundam a configuração espaço-temporal do romance, o que confere uma densidade histórica e uma dimensão universal à problemática da violência que concerne a cidade do Rio de Janeiro assim como qualquer outra metrópole do mundo moderno.
Constata-se que O nobre seqüestrador faz um uso singular do topos da data e do topos do lugar que, como sublinha Jean Molino, são elementos da narratica constitutivos da abertura do romance histórico. [12] O artifício da estátua falante produz assim uma configuração espaço-temporal particular que permite deslocar as características tradicionais da narrativa autobiográfica real de Duguay-Trouin, uma das múltiplas referências textuais do romance, rompendo com a representação linear do tempo. Assim, os títulos e datas que aparecem no início dos diferentes capítulos (ver as referências citadas anteriormente, em particular ‘« Esta viagem ‘», La Rochelle 9 de junho de 1711) jogam com as tensões entre contigüidade temporal e contigüidade espacial. Além do que, as alusões à s datas e aos acontecimentos históricos, que o romance toma emprestado à s suas referências textuais e que revelam uma visão anedótica e objetiva da história, são contrabalançadas seja pela irrupção do insólito na economia narrativa ‘ a estátua de Duguay-Trouin e a cidade do Rio de Janeiro investidas do papel de narrador, seja pelos fragmentos de comentários analíticos, muitas vezes irônicos e cheios de humor, que desvelam o jogo ideológico da perspectiva da história oficial, como é o caso por exemplo da crítica feita ao enobrecimento do papel do corsário: ‘« (As diferenças entre uns e outros, na versão popular : pirata ‘ aquele que assaltava, saqueava e matava por conta própria ; corsário ‘ fazia a mesma coisa, mas em nome do rei) ‘», (O nobre sequestrador, p. 44).
Por conseguinte, uma outra visão da história e da literatura desprende-se da autobiografia ficcional de Duguay-Trouin realizada por Antônio Torres na primeira parte do romance, afastando-se da descrição circunstancial dos acontecimentos e do caráter ornamental da linguagem que caracterizam a autobiografia real do corsário. Na leitura deste texto, observa-se a preocupação demonstrada por Duguay-Trouin em escrever suas memórias num registro de linguagem cuidado, ‘« literário ‘»: ‘« Mon style simple fera voir qu’ils sont écrits de la main d’un soldat incapable de farder la vérité, et peu instruit des rà¨gles de l’éloquence ‘».[13] Percebe-se que se trata de uma desculpa retórica que denota uma falsa modéstia além de deixar transparecer uma visão hierárquica das relações entre o real e o literário, atribuindo à linguagem literária a função única de ornamento supérfluo da realidade.
Evidentemente, essa não é a tônica do romance que nos ocupa, mesmo se a ficcionalização do personagem histórico de Duguay-Trouin em O nobre seqüestrador pressupõe um jogo de proximidade e de distanciamento em relação à s suas referências textuais. O uso clássico que a autobiografia faz da primeira pessoa encontra-se transformado no texto do romance; aqui, o eu da enunciação narrativa assume a atualidade do ato de palavra num registro coloquial, à s vezes vulgar, impregnado de marcas de oralidade. Esta língua familiar, trivial, é um marco fundamental no processo de ficcionalização do personagem: ela o torna atual, homem do século XXI, sem deixar de ser ao mesmo tempo um personagem do século XVIII, como bem viu Paulo de Tarso Pardal.[14]
Esse anacronismo deliberadamente buscado, não somente pelo uso de
uma linguagem marcadamente atual mas também pela escolha do presente
como tempo narrativo, cria um efeito de irrealidade que situa o
narrador-personagem fora dos limites compartimentados do tempo. Este
recurso lhe confere mobilidade e liberdade crítica, tanto em relação aos
acontecimentos do passado que ele está narrando, quanto em relação ao
que ele está vivendo e que tem a ver com o mundo globalizado atual. à o
que podemos ler nessas duas páginas e meia do capítulo de abertura
durante as quais se desenvolve uma longa enumeração organizada em torno
do agrupamento de elementos variados oriundos da realidade brasileira.
[‘¦] exótico, engraçado, sacana, rico e injusto Brasil, diz-se dele aqui, e digo eu, ainda hoje a terra dos meus sonhos, tão cobiçada, coitada, estonteante exuberância, muito langor e pouco rigor, a palavra esperança rimando com destemperança, oh trópicos divinos e profanos, um mundo de aventureiros, aberto a todas as pilhagens, todos os tráficos, ali até as flores e as cores enlouquecem, entre a exaltaçao patriótica, submissões que confrangem e anárquica rebeldia, rasteiras a cada passo, um susto a cada esquina, uma faca no peito, um cano na nuca, rajadas a esmo, o Brasil não é um país, é um exagero, em tamanho, luz sabor, a tal da ginga e loucura, é onde a vida, vivida num fio de navalha tem pouco ou nenhum valor, e a justiça se faz com as próprias mãos, e tome clichê [‘¦] ‘» (O nobre sequestrador, p. 12-13)’°
Essa enumeração, da qual segue reproduzido apenas um trecho reduzido, procura produzir uma imagem kaledoscópica do Brasil justapondo frases que jogam com contrastes e com a idéia de permanência e de variação. O conjunto que constitui essa sucessão de imagens de múltiplas facetas ecoa as referências saturadas do imaginário social. [15] A exuberância da natureza, certos traços de um pretenso ‘« caráter do povo brasileiro ‘», a violência e a miséria, a festa e a inegalidade social, o carnaval, o footbal e o sexo são clichês que se superpõem aos flashs da realidade quotidiana, esses também evocados por meio de imagens formadas por contrastes, como a das cidadezinhas do interior cobertas de antenas parabólicas. Reconhece-se nessa enumeração kaleidoscópica de imagens do Brasil, a utilização bem ao jeito dos modernistas e dos tropicalistas brasileiros de um procedimento que lhes é caro. Todos esses pequenos detalhes se multiplicam para realizar uma função descritiva e para inscrever no texto o rumor social sobre o Brasil. Na sua prática de pastiche e de paródia dos discursos sociais, o escritor não se priva em utilizar a língua como material sonoro e visual para construir essa profusão de imagens e procurar tirar proveito dos efeitos rítmicos particulares, a acumulação produzindo uma aceleração e acentuando a impressão de simultaneidade. à importante notar que essa construção cultiva os contrastes e se serve da hipérbole para melhor remeter à memória discursiva sobre o Brasil. Assim, o recurso à utilização de termos excessivos projeta uma figuração desordenada e desmedida do espaço brasileiro.
Um outro elemento importante, em relação com a oralidade, marca o
discurso do narrador-personagem. Trata-se da dimensão dialogal da
palavra que desloca o solilóquio como procedimento privilegiado pela
autobiografia para simular a expressão direta dos pensamentos e
sentimentos. A presença de um interlocutor (“como você poderia
imaginar”) – o personagem do escritor e por extensão o leitor,
destinatário último dessa palavra – reforça o registro da atualidade e
tem a ver com o debate de idéias. Mesmo se a heterogeneidade locutiva
do diálogo não se realiza plenamente, visto que é a palavra do narrador
que predomina, a projeção do escritor enquanto personagem e
interlocutor permite introduzir na narrativa flutuações de ponto de
vista, tornando-a assim mais intensamente dramática; a estátua dirige o
olhar para o escritor e seu mundo e torna-se por sua vez o objeto do
olhar, nem sempre complacente, do escritor.
Essa estratégia torna o herói mais humano, mais próximo de nós, nem um vilão sanguinário (‘« Não, não eram os inocentes que eu queria atingir, embora não tivesse como poupá-los do medo e do terror”), [16] nem um herói, como o querem as narrativas biográficas que multiplicam geralmente as páginas destinadas à fabricar uma identidade idealizada, como por exemplo a de Roger Vercel. Na sua biografia de Duguay-Trouin, Vercel coloca em destaque as qualidades do corsário, transformando-o num modelo do herói francês. [17]
Contrastando com o discurso homogêneo de exaltação das virtudes heróicas e com a perspectiva característica de uma historiografia nacional e nacionalista, embora mantendo o contacto com a mesma, o texto do romance exibe sua desconfiança em relação à história dos vencedores. Assim, a imagem da estátua, símbolo da comemoração reverenciosa [18] da nação, pode ser objeto de uma comparação com as prostitutas que se expõem publicamente nas vitrines de Amsterdam (p. 1). O que o romance busca é questionar a imagem que a nação projeta da história, o papel que as instituições de conservação da memória[19] (como o panteon de marinheiros onde se encontra a estátua de Duguay-Trouin) tiveram ao longo do tempo na construção da memória coletiva e o papel atual de turismo e business da memória que nossas sociedades modernas lhes reservam, onde todos os valores são suscetíveis de se transformar em mercadoria.
A inversão de perspectivas é um dos eixos que organizam a composição
romanesca. A estátua pode também ser alvo do olhar zombador do
escritor que o observa :
[‘¦] me fincaram para sempre nesta pose ‘ indelével, vá lá ‘ de
cartão postal, que à primeira vista lhe decepciona, pareço-lhe menor
do que era na sua imaginação, e algo esdrúxulo nestas vestes que me
eternizaram, da indefectível peruca ‘ bastas melenas, e cacheadas ! –
, aos nobres sapatinhos ‘ a gota já não me dói, que alívio -,
assemelhando-me mais, assim lhe parece, a um bailarino do que ao senhor
das águas e das tempestades, sei, você está achando que a minha figura
não tem a mesma estatura do meu histórico de arauto do medo e do
terror, e está mirando as minhas mãos com um olhar galhofeiro e
estereotipado,[‘¦] ‘» (O nobre seqüestrador, p. 15)
O texto funciona como uma superfície prismática onde se afrontam as diferentes facetas do passado e do presente: a estátua se vê refletida no olhar do escritor-personagem. Assim como este olhar manifesta de maneira irônica sua decepção face à estátua, de modo análogo, ele se transforma em objeto de avaliação e tem, por conseguinte, seu sistema de valores questionado. Esse paralelismo aponta incessantemente as lacunas da história por intermédio das variações de perspectiva. O romance duvida da possibilidade de uma releitura do passado sem que esta seja contaminada pelos esquemas culturais do presente ; da mesma forma, ele exprime a impossibilidade de figurar o presente segundo os paradigmas do passado : ‘« Para onde quer que olhasse, tentava ver o Rio e o mundo, hoje, pelos olhos do corsário. Missão impossível. ‘» (O nobre sequestrador, p. 156). à preciso portanto renunciar ao ideal de uma reprodução artística fiel à era histórica concreta assim como é necessário desconfiar do ideal que consistiria a espelhar a experiência histórica imediata como queria Georges Lukacs. [20] Em O nobre seqüestrador, Antônio Torres não cai na armadilha da “ilusão histórica”[21] como certas declarações, retomadas pela imprensa, poderia nos levar a pensar. Já é coisa mais que sabida que o romance não é um simples reflexo da realidade e que a realidade não passa de um tecido de histórias contadas.
O nobre seqüestrador afasta-se de uma forma de concepção da
relação entre ficção e história que se apoiaria numa correspondência
imediata entre os dois e na possibilidade de representação objetiva da
história. A consciência que o romancista manifesta das relações
complexas entre diferentes configurações discursivas, a habilidade com
que imita diferentes tipos de discurso e multiplica as vozes narrativas
e os pontos de vista, a escolha que faz de um processo metadiscursivo
que exibe as convenções da ficção mostram que, para esse escritor, a
relação ao real não pode ser pensada fora da linguagem. à por esse
desejo voraz de se apropriar das diversas formas de recitar o mundo,
para as fazer significar diferentemente, que o romance tece a história,
que o romance faz História. Esta fatura desdobrada, própria à prática
discursiva literária, está inscrita na própria ambigüidade do título, O nobre seqüestrador
podendo se referir, com um pequeno toque de ironia, tanto ao
personagem histórico transformado em personagem do romance quanto ao
escritor também transformado em personagem de sua história, como a
estátua nos lembra: ‘« você veio até aqui para seqüestrar as minhas
memórias ‘».
A instauração de uma ‘« mise en abyme ‘» do processo de criação manifesta uma autoconsciência da prática romanesca comum a uma das vertentes da ficção contemporânea. Pela figuração do escritor na cena romanesca em busca de um sentido e de uma palavra singular, a escrita mima sua fatura e faz da leitura seu análogo. Escrita e leitura realizam-se como uma atividade lúdica ; o percurso efetuado pelo escritor para dar um sentido à suas fontes históricas aproxima-se daquele do leitor que procura deslindar a rede labiríntica do texto :
Você manuseia o monte de cartas e mais cartas à Sua Majestade
Sereníssima El-Rey Dom João V, então meu amo e senhor, enviadas por
fiéis vassalos prostrados aos vossos Pés Reais, e fica tonto,
com evidências de avariação no entendimento, como um cego no meio de um
tiroteio verbal, o fogo cruzado das acusações, intrigas, revolta,
queixas, palavrório folhetinesco.
Entendo o seu atordoamento diante deste cipoal léxico, vazado em
termos de difícil decifração, em páginas empoladas e repetitivas.
(O nobre seqüestrador, p. 220)
Essa narrativa especular tende a dramatizar o processo de comunicação
literária, multiplicando as máscaras do autor e do leitor.
Desestabilizando os diferentes atores da narração, O nobre seqüestrador
serve-se da autobiografia ficcional para construir identidades
simuladas, a do corsário, mas também a da cidade do Rio de Janeiro.
Na terceira e última parte do romance, o papel de
narrador-protagonista é atribuído à cidade do Rio de Janeiro. De
simples paisagem onde os acontecimentos se tramam, a cidade toma de
assalto o primeiro plano da narrativa e torna-se o sujeito da
enunciação. Lançando mão de uma situação enunciativa irreal, este
processo de ostentação da ficção, contrariamente ao que se poderia
esperar, não é seguido de uma representação fantasista da cidade. O
texto romanesco, fiel à sua escolha de explorar as fronteiras entre o
ficcional e o real, projeta as tensões entre o espaço da pura ficção
(evidenciado pelos procedimentos hiperficcionais que constituem a
assunção da narração pela cidade e pela estátua) e uma representação
realista do espaço urbano que articula as relações entre a memória do
passado e os elementos da atualidade. O que está em jogo é o desejo de
ultrapassar os modelos estanques de representação, fazendo coexistir a
fabulação da realidade com elementos da estética realista, o fantástico e
o factual. A própria noção de verossimilhança vê-se assim deslocada,
dando lugar a uma nova relação com o tempo e com a história.
O recurso ao artifício narrativo que investe a cidade do papel de
sujeito da enunciação, na terceira parte do romance, pode também ser
lido como um desejo de deslocar o centro de interesse da história do
indivíduo para a memória histórica de uma comunidade. Assim é que, na
composição polifônica do romance, a cidade se apropria da palavra para
evocar o destino coletivo de um corpo social sofrido, espoliado e
submisso; esta voz, que além de tudo é feminina, evoca os sofrimentos
infligidos a seu corpo, recorrendo por momentos a um registro pungente
que faz emergir a dimensão lírica e musical da prosa.
Se o romance segue de perto as informações de suas fontes historiográficas para reconstruir a memória da cidade, isso não o impede de manifestar uma visão singular e particularmente negativa que faz coincidir a história da cidade com a da sua degradação. Desse modo o texto percorre as múltiplas marcas de transformações inscritas no corpo da cidade, ao longo do tempo, para lançar uma ponte entre o passado e o presente, visando conferir uma densidade histórica à violência, à corrupção, à injustiça social, elementos essenciais na figuração da megalópole atual. Por conseguinte, o presente aparece modelado pelo passado, sujeito à decomposição, ao desmoronamento dos valores, a uma ordem social injusta e caótica. O término do romance revela uma atmosfera impregnada de mal-estar, de sentimento de regressão, de recuo no tempo.
O nobre seqüestrador, no seu esforço de compreensão do real,
só faz acentuar paradoxalmente o sentimento, ao qual se refere o
historiador Eric J. Hobsbawm, que o passado perdeu sua função no
presente :
à la fin de ce sià¨cle, il est devenu possible pour la premià¨re fois de voir à quoi peut ressembler un monde dans lequel le passé, y compris le ‘« passé dans le présent ‘», a perdu son rôle, o๠les cartes et les repà¨res de jadis qui guidaient les êtres humains, seuls ou collectivement, tout au long de leur vie, ne présentent plus le paysage dans lequel nous évoluons, ni les mers sur lesquels nous faisons voile : nous ne savons pas o๠notre voyage nous conduit ni même o๠il devrait nous conduire. [22]
Em O nobre seqüestrador, a experiência do real imediato surge em toda sua absurda violência, sem ter incorporado nada da experiência do passado e sem nenhuma esperança no futuro. Há muito tempo que a noção de história repeliu a idéia de um progresso da humanidade. Em seu lugar, o romance insiste numa visão imóvel da história ou projeta, na melhor das hipóteses, a imagem crepuscular de um desencanto pós-modernista que ele compartilha com outros textos contemporâneos, inclusive aqueles que figuram a violência e a miséria das metrópoles. à a sua maneira de fazer História.
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[1] Ver Terra Papagalli de José Roberto Torero e Marcus Aurélius Pimenta (2000) ; Assis Brasil, Breviário das terras do Brasil : uma aventura no tempo da inquisição (1997) ; Assis Brasil (Francisco), Nassau : sangue e amor nos trópicos (1990) ; Ana Miranda, O retrato do rei (1991) entre outros.
[2] Antônio Torres, Meu querido canibal, Rio de Janeiro : Record, 2000.
[3] Antônio Torres, O nobre sequestrador, Rio de Janeiro : Record, 2003.
[4] Sobre o assunto remeto ao artigo de Vera F. de Figueiredo, ‘« Da alegria e da angústia de diluir fronteiras : o romance histórico, hoje, na América Latina ‘», in 5’° Congresso da Abralic ‘ Anais V. I Cà¢nones e contextos – UFRJ, 1996, p. 479-486.
[5] ‘« Sur le terrain du post-modernisme, la sociocritique, en analysant des textes aussi différents que [‘¦], pourrait alors clarifier les vrais ou les faux débats autour du post-modernisme en mettant à jour ce travail idéologique du texte à propos d’un enjeu fondamental, le passé ; la vision de l’Histoire qui travaille dans le texte qui est travaillée et produite par le texte ‘». Ver Régine Robin, ‘« Pour une socio-poétique de l’imaginaire social, in Jacques Neefs et Marie Claire Ropars, La politique du texte : enjeux sociocritiques, Lille : Presses Universitaires de Lille, 1992, p. 95-121.
[6] Sobre as convenções de ficcionalidade e de veracidade, consultar o artigo de Walter Mignolo, ‘« Lógica das diferenças e política das semelhanças : da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa ‘» in Literatura e história na América Latina, textos reunidos por Ligia Chiappini e Flávio de Aguiar, São Paulo : EDUSP, 2001, p. 115-135.
[7] Dorrit Cohn, ‘« Vies fictionnelles vs vies historiques. Limites et cas limites ‘», Le propre de la fiction, Paris : Seuil, 2001, p. 36.
[8] Gérard Genette , Fiction et diction, Paris : Seuil, 1991, p. 59.
[9] Antonio Candido, ‘« Poesia, documento e história ‘», Brigada ligeira e outros escritos, São Paulo : EDUSP, 1992, p. 45-60.
[10] Fernanda Irene Fonseca, num estudo intitulado Deixis, tempo e narração, (Porto : Fundação Engenheiro António de Almeida, 1992), insiste sobre essa capacidade que tem a linguagem de se deslocar de maneira fictícia e de configurar outros mundos possíveis.
[11] Paul RicÅur, Temps et récit II, La configuration dans le récit de fiction, Paris : Seuil, p. 43.
[12] Jean Molino, ‘« Qu’est-ce que le roman historique ? ‘», Revue d’Histoire Littéraire de la France, mars-juin 1975, n’° 2-3, p. 195-234, Paris : Armand Colin, p. 215.
[13] René Duguay-Trouin, Mémoires, Saint-Malo : Editions l’Ancre de Marine, 2000, p. 8.
[14] ‘« Primeiro, a atualização da linguagem implica a atualização do narrador. Duguay-Trouin viveu no século XVIII, mas a voz que por ele fala, no romance, é do século XXI (esta é uma das transformações do romance histórico contemporà¢neo). Isto quer dizer que a História é vista com a devida revisão temporal ‘», in Paulo de Tarso Pardal, ‘« Bom de ler ‘», Diário do Nordeste, Fortaleza, 25-01-2004. Miguel Sanches Neto também chama a atenção sobre as relações entre linguagem e configuração temporal: ‘« Mas quem fala não é o homem de carne e osso, e sim sua estátua, numa referência ao mito de Pigmaleão, rei lendário de Chipre. Por se apaixonar pela estátua esculpida por ele mesmo, faz com que ela viva e ganhe voz. à assim o corsário criado pela imaginação de Torres a partir dos documentos e da imaginação. Perdendo a condição de monumento, entra em cena, já na primeira parte, a figura desabusada do seqüestrador do Rio que, de tanto conviver com os turistas, não ficou preso à língua de seu tempo, valendo-se de termos contemporà¢neos ‘», in ‘« Corsários de ontem, bandidos de hoje ‘», Gazeta do povo, Curitiba, 19-04-2004.
[15] [‘¦] ‘« les références saturées d’imaginaire social ‘», Régine Robin, ‘« Pour une socio-poétique de l’imaginaire social, in Jacques Neefs et Marie Claire Ropars, La politique du texte : enjeux sociocritiques, Lille : Presses Universitaires de Lille, 1992, p. 112.
[16] O nobre seqüestrador, p. 24.
[17] ‘« [Duguay-Trouin] offrait déjà , dà¨s son vivant, tous les traits du héros français, tel qu’on l’imagine chez nous quand la mort a fait son Åuvre de transfiguration. Il était beau et de fià¨re tournure, courtois et galant [‘¦]. Il avait derrià¨re lui tout un passé d’audaces téméraires, d’exploits qui tenaient du miracle ‘». Roger Vercel, Visages de corsaires, Paris : Albin Michel, 1996, p. 165, (1à¨re édition 1943).
[18] ‘« commémoration révérencieuse ‘», Paul RicÅur, Temps et récit 1, Paris : Seuil, 1983, p. 34.
[19] Gérard Namer, Mémoire et société, Méridiens/Klincksiek, 1987, p. 9.
[20] Georges Lukács, Le roman historique, Paris : Payot, 2000, p.17.
[21] ‘« Illusion historique ‘», expressão empregada por Claude Duchet no seu artigo ‘« L’illusion historique : l’enseignement des préfaces (1815-1832) ‘» : ‘« il en est de l’illusion historique comme de l’illusion réaliste. Elles sont du reste interchangeables et se relaient sans cesse dans l’évolution des formes romanesques, l’effet de l’histoire étant homologue de l’effet de réel et remplissant les mêmes fonctions dans l’économie narrative. ‘» Revue d’Histoire Littéraire de la France, mars-juin 1975, n’° 2-3, p. 245-267, Paris : Armand Colin, p. 265
[22] Eric J. Hobsbawm, L’à¢ge des extrêmes. Histoire du court XXe sià¨cle 1914-1991, Bruxelles : Editions Complexe, 1999, 2003, p. 38