Bom de ler

Paulo de Tarso Pardal

A primeira boa surpresa para o leitor de O Nobre Seqüestrador, de Antônio Torres, localiza-se no ponto de vista. Ler uma história cujo narrador é o próprio personagem transfigurado em estátua – um recurso do gênero fantástico – é o primeiro elemento que incita o leitor a iniciar e terminar este romance histórico, que conta, além de outras histórias, a invasão do Rio de Janeiro por René Duguay-Trouin, em 1711, um corsário de ‘´Sua Majestade Cristianíssima Luiz XIV, o Rei Sol’´.

Quando se termina de ler o livro, sente-se aquela sensação de bem-estar, de ter podido investir tempo em uma leitura que valeu a pena.

Além desta boa surpresa, o leitor depara-se com uma linguagem atualizada, cujos artifícios retóricos são os do dia-a-dia. Estes dois elementos têm implicações profundas na narrativa.

Primeiro, a atualização da linguagem implica em atualização do narrador. Duguay-Trouin viveu no século XVIII, mas a voz que por ele fala, no romance, é do século XXI (esta é uma das transformações do romance histórico contemporà¢neo). Isto quer dizer que a História é vista com a devida revisão temporal. A conseqüência disso é que os conceitos são redimensionados, na maioria das vezes ironicamente, sempre que aparecem. Esta revisão, além de enxergar as culturas com visões diferentes, causa um impacto muito grande no leitor, que se vê muito mais próximo das ações, apesar da distà¢ncia temporal do fato histórico. A ironia, a gíria, os termos chulos, as construções sintáticas e, principalmente, a visão contemporà¢nea da cultura globalizada sobre a cultura do século XVIII faz da narrativa um excelente texto de leitura. O leitor sente-se instigado, porque a linguagem é a dele, leitor, daí o conforto que ele sente ao ver a vida de um personagem histórico ser desfiada com o seu jeito atual de se comunicar.

Acho que este artifício da narrativa é um dos grandes méritos deste romance de Antônio Torres. O Nobre Seqüestrador é um texto para ser lido nas salas de aula de História. Se isto ocorresse, com certeza, teríamos estudantes mais interessados tanto em História como em Literatura.

A linguagem é carregada de ironia e sarcasmo. Isto é conseqüência, ainda, da atualização temporal do narrador: passados os séculos, ele tem competência histórica e cultural para falar das duas épocas, para comparar as duas, e fazer humor com as duas. Ele está confortavelmente instalado em um plano de tempo privilegiado, para falar como um ser que conhece as teias dos dois períodos históricos. Comparar as barbáries das duas épocas, por exemplo, é prova de que este narrador está atento ao movimento dos dois mundos, cujos motivos que os aproximam são o seqüestro, o assalto, a violência, enfim.

Para ele, contar a história da sua vida, com essa atualização, não lhe limita os passos, nem o leitor tem uma visão unilateral dos fatos, pelo contrário, amplia sua visão. Talvez o procedimento irônico e sarcástico que está em toda a narrativa venha desta visão madura e temporalmente distante. As tensões, por isso, são mínimas.

Antes dos narradores pós-modernos, Machado de Assis já se valera de um ponto de vista surpreendente, com o famoso Memórias Póstumas de Brás Cubas. Natércia Campos, cearense, filha do reconhecido contista Moreira Campos, construiu um romance – A Casa -, cuja voz que fala é a da própria casa. Estes recursos são estratégias de conduta da narrativa. Acredito que os escritores da nossa época talvez passem por grande questionamentos quando decidem iniciar seus projetos literários, devido à  visão que eles têm que dar ao mundo criado. As verdades absolutas desapareceram, e os conceitos que serão transmitidos não podem mais estar em função de um só ponto de vista. Acho que a multiplicidade de narradores (logo mais abordaremos este aspecto) de O Nobre Seqüestrador têm a função de relativizar tais verdades. Este é também um artifício da narrativa pós-moderna, com que Antônio Torres soube muito bem jogar. Veja-se, por exemplo, a última parte do livro, em que a própria cidade do Rio de Janeiro é quem comanda a narrativa, contanto, ela mesma, o que ocorreu depois da invasão. Em seguida, ela faz um passeio pela sua história, desde 1502 até 2003, quando há outra colagem de uma reportagem (ficcional?) do Jornal do Brasil. Neste caso específico, há uma clara fotografia da violência de ontem e de hoje. à‰ aqui que termina o livro. O importante é perceber que a mudança de voz na conduta da narrativa implica que os tempos estão sempre sendo atualizados, tanto pela linguagem como pela mudança de perspectiva.

Este aspecto, porém, é apenas um, dentre os demais elementos que compõem uma narrativa.

Dentro da estrutura da narrativa pós-moderna, o romance de Antônio Torres é conduzido através de outras visões, de outros narradores, muitos deles possíveis de identificação, mas alguns estão localizados em zonas obscuras, quando da mudança de voz. O livro, por isso, exige um leitor iniciado, atento à s mudanças de perspectiva. Nestes casos, há uma radical mudança de condução. Colagens aparecem, como é o caso do capítulo ‘´Intervalo’´, em que o autor, aproveitando o gancho do assalto à  cidade do Rio da Janeiro em 1711, gruda, no texto ficcional, uma reportagem sobre a violência do Rio de Janeiro atual, datada de 3 de dezembro de 2002. A barbárie pela qual esta cidade está passando (não só o Rio, mas tantas outras metrópoles brasileiras), de tão absurda, parece mesmo uma ficção. à‰ importante ver, nesta ponte temporal de 291 anos, não só uma denúncia, mas um aspecto da vida contemporà¢nea que nem a ciência, nem a tecnologia, nem a cultura conseguiram resolver. Se houver uma intenção de denúncia (na verdade, só quem pode dizer isto é Antônio Torres), haverá, também, mais ainda, um pedido (um apelo?) de reflexão sobre os tempos, afinal estamos tratando de História, mesmo que ficcionalizada. Este é outro mérito do livro.

Um aspecto importante na estrutura do romance é a questão da metalinguagem. A perícia com que é construído o jogo entre a ficção e a realidade só demonstra que Antônio Torres tem um domínio absoluto da narrativa. Na pesquisa empreendida por ele está a base do argumento histórico. O importante, neste caso, é perceber que os procedimentos da pesquisa estão dentro do texto ficcional, transfigurados, evidentemente. Este procedimento funciona como um cartão de crédito, um recurso à  autoridade, que envolve o leitor no jogo da ficção. O desvendamento da construção do texto faz parte do prazer da leitura, como diz Linda Hutcheon, em seu livro Poética do Pós-Modernismo . Antônio Torres estabelece uma ponte entre aquilo que é história e aquilo que é ficção e, além disso, mostra como todo o processo de pesquisa foi realizado. Este procedimento dá muito mais vida ao texto, e o prazer da leitura acentua-se, uma vez que o leitor sente-se guiado por uma voz que tenta desvendar os segredos da criação literária.

à‰ neste ponto que Antônio Torres é original. Recriando-se como personagem – e nesta linha divisória ele está dentro do plano da ficção – ele transfigura-se em outro ser, para dizer, ficcionalmente, a experiência da pesquisa empreendida na vida real. Este é o jogo estabelecido. Todas as cartas estão aí para serem jogadas, decifradas, prazerosamente, pelo leitor atento, dizendo como o real se transfigura em ficcional. Este recurso metalingüístico é muito bem construído, o que prova o domínio que o autor tem quando do trato da desrealização.

No começo desta conversa, eu lhe disse:

– Vamos, aproxime-se. Eu já não mordo.

Ao dizer isso, não quis apenas fazer uma ironia com o meu status de estátua.

Perceba-se que o narrador está falando para o pesquisador, que está diante da estátua do corsário, e que é acusado, logo no início da narrativa, de seqüestrador:

Você veio até aqui para seqüestrar as minhas memórias, porque sou também um malfalado personagem da história do seu país, vamos, aproxime-se, já não mordo… (p.12)

Por vários motivos, esta passagem é reveladora.

Primeiro, para decifrar o fenômeno da desrealização: o narrador chama o pesquisador de ‘´personagem’´, tanto quanto ele. Dizendo isto, os dois ficam no mesmo plano da trama ficcional. Um, como narrador da história pesquisada. Outro, como pesquisador, que forneceu os argumentos históricos. O narrador, no entanto, sendo o próprio personagem (Duguay-Trouin), dispensaria o pesquisador da história. O emaranhado do desvendamento da ficção, assim, fica muito mais complexo, mas é este, exatamente, o jogo que Antônio Torres nos propõe – uma bela e original jogada de mestre.

Segundo, pode-se, através desse pequeno excerto, fazer hipóteses sobre o título do romance, que pode passar por uma dupla linha de interpretação: o nobre seqüestrador pode referir-se ao corsário, já que sua profissão era legal e nobre. (A propósito disso, há uma passagem em que o narrador faz a distinção entre pirata e corsário.) Era legal porque estava de acordo com a lei e com os códigos de ética da época. Era nobre porque aqueles que podiam assaltar em nome do rei tinham que ter patente, o que os tornava nobres. Aliás, um dos últimos atos de Luiz XIV foi nomear René Duguay-Trouin a chefe de esquadra, o grande sonho do corsário.

O nobre seqüestrador, por outra linha de pensamento, pode referir-se, também, ao pesquisador. Neste caso, a nobreza tem a ver com o objetivo do pesquisador: transformar a pesquisa em arte. A nobreza, portanto, está na Literatura, já que é esta expressão artística que dá suporte ao fato histórico narrado em forma de ficção.

Todas estas propostas de interpretação, no entanto, são suposições, são sugestões que a leitura deste romance proporciona, pela riqueza interna de que se reveste o texto. E quando se fala de riqueza interna se fala, na verdade, de linguagem, daquilo que está dito e, principalmente, daquilo que está apenas sugerido, característica que só os bons escritores conseguem.

Os tópicos até agora comentados são mínimos, em relação à s demais e abundantes informações que o livro contém. Se o propósito da narrativa era contar a invasão francesa de 1711 ao Brasil, tal propósito se esvai, esgarça-se em outros tópicos, em outras ações que vão compondo o imaginário do seqüestro da cidade, tanto em relação à  época de Duguay-Trouin, como em relação à  época atual. à‰ contada a vida do Rei Sol, a vida do corsário, uma passagem da 2’ª. Guerra Mundial, a história da cidade do Rio de Janeiro etc.

Concluindo, o romance de Antônio Torres, além das preciosas informações que normalmente os livros oficiais de História não trazem (o objetivo deles é outro), proporciona um mergulho nos conceitos de Literatura e de Teoria Literária. à‰ um livro que, se por um lado, traz uma complicação estrutural, devido à s técnicas pós-modernas de construção, com todo o jogo de metalinguagem, por outro lado, convida e convence o leitor a resistir a estas complicações e a ir em frente na leitura, proporcionando-lhe uma verdadeira viagem na História do Brasil e nos segredos da criação literária.

História e seqüestros do Rio e suas narrativas

Prosa & Verso, Rio – 13 de setembro de 2003
Suzana Vargas

Não por acaso a ficção brasileira de tendência documental ganhou mais um autor. Desde a publicação de “O centro das nossas desatenções” (1996), seguida do premiado “Meu querido canibal” (2000), Antonio Torres, fascinado pela história do Rio de Janeiro, persegue a figura lendária de René Duguay-Trouin, corsário francês de Luis XIV. Agora, em “O nobre seqüestrador”, a perseguição desdobra-se em um monumental romance onde ficção, História, biografia, análise crítica e lirismo realizam um dos mais belos casamentos da escrita contemporà¢nea. Isto porque dificilmente estes gêneros tão distintos entre si costumam, juntos, resultarem num conjunto harmonioso em que a vitória é da literatura.

Utilizando planos e técnicas diversas de narrar, o autor faz um relato multifacetado das aventuras e desventuras de Trouin que, em 1711, seqüestra o Rio por 50 dias, apoiado em uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e seis mil homens. Autobiografia de um homem, de uma cidade e do próprio autor é como podemos também definir a fantástica história dividida em três partes, com direito a breve intervalo jornalístico, post-scriptum e até uma bibliografia.

Estátua é ponto de partida para a viagem da trama

Na primeira parte, iniciamos uma viagem pela história franco-brasileira a partir da condição atemporal da estátua de René Duguay-Trouin: partimos de Saint-Malo, França. Recuamos no tempo e no espaço, mas não na linguagem que nos chega com o frescor da contemporaneidade. à‰ a estátua que fala, que observa, que registra os acontecimentos num diálogo permanente com o leitor. Situa-nos, tanto na História da Espanha, mergulhada na Guerra de Sucessão, como no caos vivido pela cidade do Rio de Janeiro e na delicada posição dos franceses diante das alianças européias. Ao mesmo tempo, o próprio René Trouin nos introduz em sua biografia afetiva, amorosa e familiar. Afinal temos um herói ou – mais precisamente – um anti-herói em carne e osso, cuja construção leva em conta o homem comum que foi empurrado para o mar pela família, desistindo de ser seminarista ainda jovem.

“Fui um produto de um país europeu com a mesma ganà¢ncia dos outros, os mesmos desejos e necessidades de superação dos demais” – é o que ele declara a certa altura em que tenta justificar o seqüestro, a expropriação, a infinidade de mortes e a devassa que praticou no Rio. Tudo em troca de ouro em barras e em pó (1.624 libras), quatro canastras cheias de prata, 1.484 caixas, três barricas e uma quartola de açúcar, 1.167 barbatanas grandes e pequenas de baleias, 200 cabeças de gado e muitas mulheres.

Os portugueses, na época, sem estratégias de defesa para o Rio, cederam em tudo. O próprio governador, Francisco de Castro Morais, conhecido como “Vaca”, fugiu vergonhosamente deixando a cidade entregue à  sua sorte.

Através desses relatos, o lendário personagem de Trouin não só nos introduz na história franco-brasileira da época como possui plena consciência de que nosso presente não é menos bárbaro. E de que os brasileiros continuam seqüestrados pelos mitos da natureza luxuriante, sol, mar, céu, sexo, samba, carnaval, mulatas.

Mas o que mais chama a atenção no romance de Antonio Torres, para além da impressionante pesquisa que por si só justifica a publicação do livro, é a capacidade que sua narração tem de unir as duas portas da História. Presente e passado se misturam e se equivalem no Rio atual e ainda sem defesas. Este salto para o presente se dá através da figura do personagem-escritor, que a certa altura toma conta do relato, assumindo, na sua condição de recém-desempregado, parte da narração. à‰ o ano de 1998 e ele se despede de seu emprego no 28 andar de um arranha-céu na Avenida Rio Branco. Acaba de regressar de uma viagem em que se dedicou a esquadrinhar a vida de René Duguay-Trouin, longa e triste.

Um diário de bordo ou de guerra fictício, mas com anotações da cronologia real, trechos de poemas, citações compõem um tecido convincente de informações sem que a criatividade e a poesia abandonem os episódios. Até que a cidade começa a falar e conta sua gênese e a de seus fundadores. Numa manobra narrativa surpreendente, a cidade se transforma em protagonista onde antes era só cenário. Talvez um dos mais importantes e cobiçados cenários da época. A voz da cidade, diferentemente dos outros narradores, é feminina e vai nos contar os importantes desfechos do seqüestro.

Um cenário onde de fato pouca coisa mudou

Veremos através dela que muito pouca coisa mudou de lá para cá. Continuamos desguarnecidos e – como diz a narradora – estuprados. Esta será talvez a maior qualidade do romance: nos ajudar a verificar com George Orwel (citado no livro) que “aquele que tem o controle do passado tem controle do futuro. Aquele que tem o controle do presente tem o controle do passado”.

Quanto ao seu autor? Pode-se dizer que com “O nobre seqüestrador”, seu 10 romance, Antonio Torres vem confirmar o que dele já se disse desde “Um cão uivando para a lua” (1972), seu primeiro livro, e “Essa Terra” (1976), passando pelo magistral “O cachorro e o lobo” (1997). à‰ um escritor definitivo porque soube imprimir sua marca pessoal e humana em histórias que, nas mãos de outro artista não tão habilidoso, facilmente se transformariam em meros compêndios de didática duvidosa.

O seqüestrador de memórias

JB Online – 30/08/2003
Flávio Carneiro

Antônio Torres colhe na história oficial as aventuras do corsário francês Duguay-Trouin, que pilhou o Rio de Janeiro em 1711

No premiado Meu querido canibal, Antonio Torres se utilizou do diálogo entre literatura e história para apresentar sua versão histórico-ficcional da chegada de Villegaignon ao Rio de Janeiro, no século 16. Já na época do lançamento do livro, o autor não escondia seu fascínio por outro personagem marcante da atribulada história entre franceses e brasileiros, em priscas eras.

Trata-se do corsário René Duguay-Trouin, que em 1711 parte de La Rochelle para atacar o Rio, a mais cobiçada das possessões portuguesas à  época e, depois de dominar completamente toda a resistência local, exige vultoso resgate para deixar livre a cidade. Insólito seqüestro, convenhamos, obra de um marinheiro que jogava ali sua cartada decisiva, em lance que acabou por transformá-lo, séculos depois, numa quase obsessão do escritor baiano, que não se cansava de repetir: ”grande personagem!”

Grande personagem, sim, e ninguém poderá dizer ao certo se tal grandeza deve-se exatamente aos méritos do corsário ou ao que dele disseram os historiadores, em especial os franceses, ou ao tratamento que sua imagem recebeu pelas mãos laboriosas do escritor. E, afinal, que importà¢ncia tem isso se no campo sinuoso da literatura, e de certo modo também da história, não existe verdade ou mentira mas apenas versões bem ou mal contadas?

A de Torres, sem dúvida, está no grupo das muito bem contadas. A começar pela grande sacada da primeira parte do romance, narrada nada mais nada menos que pela estátua de Duguay-Trouin, erigida de frente para o mar, na passarela da muralha de Saint-Malo. Diante da visita do escritor, a estátua – cuja memória se estende para além da morte daquele que lhe serviu de modelo, vindo até nossos dias – se compraz em narrar, com a habilidade de um velho contador de histórias, a vida do valoroso corsário, entremeada com comentários irônicos sobre o que veio depois.

E quando o leitor já está se acostumando à  prosa daquela estátua falante, vem uma segunda parte, em que surge outro narrador, anônimo, em terceira pessoa, a contar não apenas a história de René Duguay-Trouin mas a do próprio Torres, em seu trabalho de pesquisa – feito um historiador – à  procura de dados para construir seu romance. Aqui, o autor vira personagem de si mesmo e as batalhas são outras, passadas noutros mares, quem sabe tão bravios quanto os de outrora. Depois dessa guinada ligeira, o romance retoma sua rota principal, que pode ser tanto a história do corsário quanto a da própria cidade do Rio de Janeiro.

Pois é justamente ela, a cidade, que toma posse do romance na terceira parte do livro. Agora a narrativa é conduzida por uma voz feminina, a da cidade seqüestrada, que dá início ao seu relato situando-o nos dias que se seguiram à  partida dos franceses: ”Quando eles foram embora, eu, a Praça do Rei, me olhei no espelho das águas e o que vi foi uma meretriz de beira de cais, desgrenhada, ofendida, estuprada, malcheirosa, abandonada.”

Sua história se confunde com a da destruição, é o que ela nos diz. E no belo capítulo ”Quando Deus me fez e depois”, essa destruição é narrada não em tom melancólico, de vítima, mas com a firmeza e a indignação de quem se manteve bela mesmo depois de tantas violações. Violações que, como nos lembra a narradora, remontam à  chegada dos portugueses e se estendem até os mais recentes seqüestros, operado pelos piratas do narcotráfico, entre outros.

Mas há seqüestros e seqüestros. Um deles é perpetrado pelo próprio Torres, que vai pilhar a história oficial para dali recolher novos tesouros, agora de papel e tinta. à‰ a estátua do corsário quem lhe diz, entre a camaradagem e a ironia: ”Você veio até aqui para seqüestrar as minhas memórias.” E com a nobreza necessária a esse tipo de pilhagem, o autor não se propõe a aniquilar as versões que ele mesmo consultou. Pelo contrário. A elas rende uma espécie de homenagem, ao listá-las numa bibliografia que, aliás, pelo simples fato de estar ali, aponta para o hibridismo, assinalando a obra como algo entre o documento e a ficção.

Torres compõe um personagem que, sem deixar de manter vínculos com a imagem que dele construíram os historiadores, se mostra mais humanizado, mais carne-e-osso, nem herói nem vilão. Ao colocar a estátua como narrador e ele próprio como interlocutor dessa estátua, Torres assume o papel de confidente, abrindo espaço para que o corsário possa se expressar como bem entender. Nessa estratégia, que lembra Machado e seu Brás Cubas, dá-se voz ao defunto narrador, o qual, justamente por estar desimpedido das convenções a que estão sujeitos os vivos, pode falar livremente de si mesmo e dos outros.

Desse modo, o temido corsário pode contar não apenas suas façanhas com também seus medos e inseguranças, pode confessar que sua vida de marinheiro deveu-se, em parte, a uma imposição familiar e que foi ”sob as ordens de mamãe” que ele se lançou ao mar. Do pano de fundo constituído pelos fatos históricos – a guerra de sucessão da Espanha, a dramática posição francesa frente à  coalização européia, a situação caótica vivida pelo Rio de Janeiro antes mesmo do famoso seqüestro -, recorta-se a figura do marinheiro sonhador, inteligente, destemido, infantil à s vezes, quase romà¢ntico, senhor de uma glória fugaz e abandonado à  solidão e à  melancolia no final da vida.

Antonio Torres nos oferece não apenas este grande personagem, construído entre as linhas do presente e as do passado, da realidade e da imaginação. A cidade do Rio de Janeiro, mais que cenário, é também protagonista do romance. à‰ ela que, em última instà¢ncia, abriga e conduz todo o relato, postada desde sempre no lugar de princesa, tentando a custo manter-se viva, sob saraivadas de canhões e balas perdidas. E desse encontro entre a seqüestrada e seu algoz vai se construindo também a própria história do país – ou pelo menos um de seus capítulos -, escrita com rigor e fantasia, como convém aos nobres romancistas.

O Nobre Seqüestrador ou o Hibridismo Segundo

UFRJ – Brasil
Ligia Vassallo
(Ensaio publicado na revista Censive da Universidade de Nantes, n’º 3, editado por Luiza Lobo e Carlos Maciel, 2008)

O Nobre Seqüestrador, romance do escritor baiano Antônio Torres publicado em 2003, dá ensejo a refletir sobre a tendência ao hibridismo na literatura brasileira atual.

Romance e hibridismo são duas categorias que se remetem mutuamente, uma vez que, ao longo de sua construção, o gênero romanesco se tornou um composto híbrido por excelência, já que incorporou à  sua estrutura outros gêneros, como o ensaio, a carta, a biografia, as fontes de cultura oral e assim por diante. Isto ocorre, como sabemos, desde os primeiros balbucios até sua maturidade literária, com a Comédia Humana, de Balzac, no século XIX, momento em que atinge sua forma canônica.

A partir do século XX, entretanto, tem sido muito operoso o trabalho de desconstrução desta mesma forma canônica, fato que se pode constatar não só nas obras das diversas vanguardas como também nas grandes experimentações do período, situação por demais conhecida. Esta desconstrução, em alguns casos, tem a ver com o hibridismo, como se verifica em parte na literatura da América Latina.

De todo modo, o hibridismo, no tocante à  forma romanesca, é apenas uma das faces da questão, que envolve igualmente conceitos e elaborações teóricas. Tais discussões enriqueceram-se muito, em especial no último quartel do século XX, graças à  contribuição de estudiosos provenientes de áreas geográficas periféricas da cultura ocidental, de que destacamos alguns, como o palestino Edward Said, o anglo-indiano Homi Bhabha, o peruano Antonio Cornejo Polar, o argentino Nestor Garcia Canclini, os quais, com suas teorias, põem em questão princípios e valores eurocêntricos que por tanto tempo foram impostos como hegemônicos, em particular na América Latina, continente que ocupa nossos interesses e análises.

Essas teorias exóticas, que por tanto tempo nos sufocaram, apagam a especificidade de nosso continente, de si mesmo já híbrido devido à  conjunção de autóctones, europeus e africanos, continente que é o ‘€œespaço-entre’€ tão bem conceituado por Silviano Santiago, no qual as idéias estão fora do lugar, para evocar a célebre expressão de Roberto Shwarz.

A esse respeito, tem razão Eduardo Coutinho ao invocar Edward Said, para quem a circulação da idéias, apesar de ser uma condição básica da atividade intelectual, não pode desvincular estas mesmas idéias de sua historicidade e de seu contexto originários, com os quais mantêm fortes laços, e que as interferências na apreensão das teorias do primeiro mundo, caso sejam transportadas sem perspectiva crítica para um novo contexto, podem levar a interpretações duvidosas e inadequadas.

Valoriza-se agora, com Homi Bhabha, a emergência dos interstícios, dos entre-lugares, a sobreposição e o deslocamento dos domínios da diferença, geradores de hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica, Daí a necessidade de erigir-se um novo paradigma e é nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente, em um movimento ambivalente.

Lembremos que fronteiras, sincretismo, mestiçagem e hibridismo constituem vieses de um só fenômeno, ligado à s questões interculturais. Alias, este último termo, que envolve um movimento de interação, troca, intercessão entre dois pólos, é preferível ao de multiculturalidade, uma vez que esta última categoria, ao contrário, leva ao separatismo, ao isolamento e, sobretudo, ao gueto.

A hibridação é um termo detonante, que aponta para uma questão crucial. Para um dos mais importantes teóricos do tema, Nestor Garcia Canclini, ‘€œa hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas, sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito, geradas na interculturalidade recente em meio à  decadência de projetos nacionais de modernização da América Latina’€.

Ou, dito de outro modo, Canclini entende por hibridação aqueles ‘€œprocessos culturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos, práticas’€. Eles contribuem assim para identificar e explicar múltiplas alianças fecundadas, como a junção entre a estética popular e a dos turistas, a das culturas étnicas nacionais com as das metrópoles, etc.

Corrobora nessa direção de a afirmação de Mario Valdéz, para quem os ‘€œsistemas subalternos reformulam, ressemantizam e criam estruturas híbridas e imagens sincréticas, que em conjunto é o que lhes tem dado seu caráter distintivo e que talvez, para entender o sincrético, tivéssemos que pensar dialeticamente’€.

à‰ assim que têm funcionado a cultura e a literatura na América Latina ‘€“ incluindo-se aí o Brasil -, segundo o parecer coincidente de estudiosos recentes. A propósito, Antônio Cornejo Polar observa que nos últimos anos é freqüente detectar, sobretudo no romance regional, certos elementos não romanescos que costumam ser descritos como próprios do mito, da epopéia, da História, do testemunho, da denúncia social, dos relatos folclóricos, etc. A partir de certo conceito de romance, essas formas heterogêneas são percebidas como impurezas, sem que se suspeite que tal heterogeneidade produz um desvio peculiar na constituição do gênero, além de representar um conflito entre duas culturas distintas: a índole de um universo agrário, semifeudal, e recursos e perspectivas marcados pela procedência citadina e burguesa. Este é um fato especificamente literário, que consiste na modificação da estrutura de gênero, inclusive em seus aspectos formais.Por isso, na América Latina, é difícil ater-se aos habituais julgamentos e requisitos sobre as virtualidades do romance, especialmente se estas virtudes são concebidas em termos de um contexto diverso, como o europeu ou o norte-americano.

Desse modo, ao que tudo indica, Cornejo Polar advoga que a estrutura formal híbrida, no romance, é uma especificidade latino-americana. Característica semelhante é também apontada por Ana Cecília Olmos, em artigo na revista Bravo! a propósito da literatura argentina do pós-boom, que mistura gêneros diferentes para pensar um país diferente. Essa produção recente tem no hibridismo, na mistura de gêneros, a sua mais singular característica, pois ela

optou’  por entremear a ficção com outros registros discursivos (a História, o jornalismo, o testemunho, a crítica literária, a autobiografia), explorando uma zona de indefinição genérica para seus relatos. A hibridez, apesar da idéia de esterilidade que a palavra encerra, seria, então, o traço que define uma singularidade literária que rendeu e continua a render uma volumosa narrativa.

A contaminação textual está na base de romances que, ligados à s cenas políticas do país, interrogam uma experiência histórica que reitera, sob diferentes desígnios (ditaduras militares e projetos neoliberais), a brutal instauração e o fortalecimento de sistemas de controle e exclusão social.

Informa ainda o mesmo texto crítico que, com maior sutileza estética e em estreito diálogo com o discurso histórico, outras ficções voltam-se em direção ao passado na tentativa de compreender os conflitos do presente.

As ponderações de Ana Cecília Olmos se aplicam perfeitamente ao romance O nobre seqüestrador (2003), que nos propomos a analisar. Buscamos com isso detectar de que modo seu autor procede para compor um texto que escapa à s categorias já codificadas, misturando e recombinando procedimentos conhecidos porém provenientes de áreas distintas, nem sempre estritamente literárias, de modo a atingir um resultado ímpar e novo, fora das classificações habituais. à‰ indispensável ter em mente, contudo, que esta tendência, embora presente na literatura brasileira atual, está longe de ser majoritária, porque de maneira geral a literatura brasileira ainda é bastante pautada pela escrita linear e pela fatura realista-naturalista, situação que não cabe aqui desenvolver.

Estas duas tendências, por sinal, são bem visíveis no conjunto da obra de Antônio Torres, na qual dois títulos, Meu querido canibal (2000) e O nobre seqüestrador (2003), evidenciam uma nítida virada de rumo. Neles, em especial no último, como veremos a seguir, entremeiam-se gêneros como o romance histórico e o de aventuras, a biografia e as memórias, poemas e letras de músicas, cartas e documentos históricos, ensaio e até mesmo matéria de jornal.

Observa-se logo de saída que, devido a esta imbricação de gêneros, nenhuma das subcategorias de romance manifesta-se textualmente em sua ortodoxia. Assim, embora não configurem romances históricas canônicos, ambos os títulos têm claros envolvimentos com situações e personagens históricos que, além do mais, ancoram-se no Rio de Janeiro, mais particulares em dois momentos assinalados pela presença de franceses no Brasil, nos séculos XVI e XVIII respectivamente. Tal circunstà¢ncia já de si é híbrida, uma vez que os eventos que lhe servem de eixo pertencem à  História desses dois países. O primeiro livro focaliza Cunhambebe, o líder da Confederação doa Tamoios, no século XVI, árduo combate dos portugueses porém grande aliado de François Durand de Villegagnon, o idealizador da França Antártida. O segundo título se dedica a René Duguay-Trouin, corsário francês do tempo de Luís XIV, que seqüestrou a cidade do Rio de Janeiro por mais de 50 dias de 1711. Por sinal, o diário de bordo deste último, publicado originalmente em 1740, mereceu uma recente edição no Brasil.

Por outro lado, apesar de tais romances serem centrados nos feitos e traços de importantes personalidades, em nenhum dos casos pode-se falar de romances estritamente biográficos, porque em ambos Antônio Torres precisou se valer de suas astúcias de escritor para preencher as lacunas e os silêncios que a História não registrou. Quanto a Cunhambebe, além do mais, Torres teve que dar vida a um personagem vindo de uma outra cultura completamente diversa, até mesmo por pertencer a uma sociedade ágrafa. Já René Duguay-Trouin, por seu turno, é desmistificado e humanizado, mostrado com as fragilidades e insucessos de um herói-canalha.

O romance de aventuras pautado no corsário divide-se equilibradamente em três partes e tem dois personagens principais, uma voz masculina e uma feminina, respectivamente agente e paciente da mesma história, que se expressam em primeira pessoa do singular ao longo do texto. Este se concreta sobre o primeiro, referido no título, representado pela jactanciosa estátua de René Duguay-Trouin, o agressor que se gaba de seus feitos aventurosos e guerreiros. Contrapondo-se a ele situa-se, em plano menor, o objeto ‘€“ ou melhor, o espaço ‘€“ de sua façanha maior, a cidade do Rio de Janeiro, denominada a Praça do Rei, a qual se lastima de sua posição de mulher vilipendiada e vítima dos maus tratos recebidos naquele momento, em 1711, e aliás hoje também, lamentando-se como um coro de tragédia grega.

à‰ indispensável salientar que a personificação da estátua do corsário, bem como a da Praça do Rei, constitui uma grande invenção de Antônio Torres. Aliás, o escritor dá o mesmo tratamento a outras cidades mencionadas na narrativa, como La Rochelle e Niterói. Ressaltemos que este recurso retórico, pelo qual a Aurora, em Homero, tem dedos cor-de-rosa, é raramente ou quase nunca empregado em um romance moderno, embora seja muito comum não só na epopéia como na poesia neoclássica setecentista, conferindo desse modo coincidência temporal entre o procedimento literário e a época do personagem biografado.

Por outro lado, como os seres que foram personificados não são animados, eles podem ultrapassar as contingências humanas e logram, assim, fugir à s injunções temporais do romance, o que os capacita a abordar o presente e o futuro em relação a eles, em igualdade de condições. Aliás, esta condição da presbiopia, ou vista de longe, ocorre também freqüentemente na Divina Comédia, de Dante ‘€“ uma obra fulcral mas igualmente inclassificável e híbrida. Por esses motivos a linearidade temporal da narrativa de Torres é freqüentemente interrompida; ela se concreta no século XVIII, mais particularmente em episódios de 1711, sendo porém entrecortada por remissões ao presente da enunciação e a alusões explícitas aos dias de hoje

Em O nobre seqüestrador aparece ainda uma terceira voz narrativa, anônima, a de um narrador onisciente que se desdobra ou se confunde com um narratário que é, ao mesmo tempo, não só o ouvinte silente das peripécias da estátua falante ‘€“ o ‘€œvocê’€ a quem ela se dirige sem obter resposta, como em O grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa ‘€“ como também é o ‘€œbrasileiro’€ do texto, que vai à  França à  procura de informações históricas para seu livro. Ou seja, o ouvinte mudo revela-se, portanto, como sendo o autor do romance, com alguns problemas profissionais e existentes a resolver. Mas nem por isso tal artimanha dá ao texto um caráter confessional de obra memorialística, porque ilumina apenas uma fração dessas confissões.

à€ figura do autor do romance, contudo, não bastam à s digressões, pois ele se intromete na história de seu biografado e começa a falar de si, embora em terceira pessoa, inserindo na narrativa principal suas preocupações pessoais bem como seus passos em relação à  pesquisa empreendida para a elaboração do livro. Este ardil narrativo não chega ser equivalente ao que se lê nos roteiros de filmes, aproximando-se ao invés daquilo que alguns denominam o making of da obra, ou o desnudamento de sua preparação.

à€ figura do autor do romance, contudo, não bastam à s digressões, pois ele se intromete na história de seu biografado e começa a falar de si, embora em terceira pessoa, inserindo na narrativa principal suas preocupações pessoais bem como seus passos em relação à  pesquisa empreendida para a elaboração do livro. Este ardil narrativo não chega ser equivalente ao que se lê nos roteiros de filmes, aproximando-se ao invés daquilo que alguns denominam o making of da obra, ou o desnudamento de sua preparação.

Na fatura de O nobre seqüestrador é interessante explorar a presença de inúmeros textos não propriamente ficcionais, a saber: as múltiplas cartas de diferentes signatários, incorporadas ao texto entre aspas; a presença implícita ou explícita de diversos documentos históricos; as transcrições de diários de bordo, tanto de viagem transatlà¢ntica (p. 84; p. 189) quanto da campanha francesa (p. 189-215); as listas diversas (p. 175; p. 177; p. 221); o currículo de Francisco Távora, o novo governador da cidade (p. 220); uma citação do livro do historiador francês Roger Vidal sobre a imagem de René Duguay-Trouin (p. 123) e certamente várias outras ocorrências.

Dentre tantos fragmentos, alguns são mais destacados tipograficamente, como o que consideramos duas colagens de matéria de jornal, uma tomada a O Globo de 3 de dezembro de 2002 (p. 142-143) e outra ao Jornal do Brasil de 25 de fevereiro de 2003 (p. 247-248). Estas transposições operam uma espécie de mise em abyme, porque abordam, na atualidade, a questão do medo, comum nessa época e ao século XVIII, que decorre da insegurança dos citadinos ‘€“ não só pelo ataque do corsário, no passado, bem como pela recente ocupação da cidade do Rio de Janeiro por parte dos narcotraficantes, em 2003, ação interpretada textualmente como um seqüestro. Aliás, muito a propósito, a transcrição do Jornal do Brasil incrustada no livro remete à  empreitada de Duguay-Trouin.

Sem destaque tipográfico e embaralhadas em meio à s conjeturas da estátua falante e da Praça do Rei, surgem passagens textuais informativas de cunho histórico e geográfico sobre as cidades associadas à s atividades do corsário, como Saint-Malo, La, Rochelle, Brest e Rio de Janeiro, que mais parecem saídas das páginas de um guia turísticos ou de um enciclopédia. Em compensação, tal assepsia é contraposta pelo excessos de subjetividade das figuras personificadas, em especial a linguagem vulgar usada pertinentemente pela estátua em certas situações, constituindo entretanto um verdadeiro anacronismo em relação à  fala local do século XVIII.

Não se pode deixar de mencionar um outro aspecto muito interessante do último romance publicado por Antônio Torres, que concorre para ressaltar a originalidade de seu hibridismo formal. Trata-se da incorporação de elementos habitualmente tidos como paratextuais, tal como bibliográfica, agradecimentos e créditos, os quais costumam constar de trabalhos acadêmicos e ensaios, mas nunca ou raramente de obras ficcionais. Só conheço esta ocorrência no belíssimo poema O oratório dos Inconfidentes, de Domício Proença Filho, outra obra de fatura igualmente híbrida.’ 

A estes aspectos acrescenta-se também um outro, proveniente da produção ensaística, como as passagens caracterizadas pela função metalingüística, encontradas sobretudo nas várias explicações sobre as especificidades e diferenças existentes entre corso e pirata (p. 16; p. 26; p. 28; p. 43). Quer-nos parecer que tais elementos, junto com os recortes-colagens de jornal, estão presentes para burlar o pacto com o leitor, desnudando a pesquisa empreendida pelo escritor e seu making of do romance.

A esfera dos textos ortodoxamente literários também é visível, sob diferentes modalidades, nas inserções textuais de O nobre seqüestrador. Destaquemos da saída as letras de música quem pontuam o texto, estrategicamente situadas no princípio, no meio e no fim do romance, de modo a construir uma espécie de marcação de suas três partes e três vozes. A primeira delas, colocada à  guisa de epíteto à  obra, é a ‘€œCanção de Duguay-Trouin’€, de Chico Buarque e Edu Lobo, criada originalmente para a peça O corsário do rei, de Augusto Boal. A segunda é uma anônima cantiga de ninar sobre o famoso corsário, que na França ‘€œos pescadores cantavam para as suas crianças’€ (p. 113). Ambas se concentram sobre a figura do protagonista masculino, preponderante na primeira parte do romance, como sabemos, ao passo que a terceira letra de música, incluída ao final da terceira parte da obra, é a transcrição de um conhecido hino de louvor à  cidade do Rio de Janeiro (p. 243), a voz feminina da Praça do Rei.

Arrolamos ainda diversas citações de obras literárias ao longo do romance: o inferno segundo Jean-Paul Sartre (p. 149); um poema do português Alexandre O’€™Neil sobre o medo (p. 143) e um fragmento de Baudelaire (p. 151); o início de ‘€œum conto memorável’€ (p. 153); um fragmento de Shakespeare (p. 116), ‘€œumas linhas do inglês George Orwell’€ (p. 168), mais precisamente de seu famoso romance 1984, do qual o medo é justamente um dos principais ingredientes.

O que é que se pode então concluir a propósito do sincretismo nessa obra de Antônio Torres? Por um lado, corroborar a assertiva de Nestor Garcia Canclini, já citada, para quem práticas discretas, que existem separadamente, se combinam para gerar outras estruturas e objetos. Mas também reconhecer no escritor a bagagem de técnicas e procedimentos da tradição literária do passado, aos quais dá um uso renovado. Porém, mais do que todos esses aspectos, salientar o desejo bem sucedido de focalizar cenas deixadas à  sombra em nosso processo histórico, na medida que resgata episódios e personalidades até então vistos monoliticamente sem grandeza pelo discurso oficial. Para fugir à  mirada canônica foi preciso, coerentemente, criar uma nova modalidade romanesca, esse romance híbrido, sincrético, mestiço, com formas articuladamente desarticuladas, pois esta é a única maneira de falar fímbria e do não-dito. Aí repousa a grande originalidade de O nobre seqüestrador.

Vemos assim de que modo opera a sintonia entre a literatura hispano-americana e a que é praticada no Brasil. O hibridismo, tal como realismo mágico e o fantástico, são tendências que ocorrem nas duas literaturas, embora no Brasil se verifiquem em muito menor proporção.

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