Prosa & Verso, Rio – 13 de setembro de 2003
Suzana Vargas
Não por acaso a ficção brasileira de tendência documental ganhou mais um autor. Desde a publicação de “O centro das nossas desatenções” (1996), seguida do premiado “Meu querido canibal” (2000), Antonio Torres, fascinado pela história do Rio de Janeiro, persegue a figura lendária de René Duguay-Trouin, corsário francês de Luis XIV. Agora, em “O nobre seqüestrador”, a perseguição desdobra-se em um monumental romance onde ficção, História, biografia, análise crítica e lirismo realizam um dos mais belos casamentos da escrita contemporà¢nea. Isto porque dificilmente estes gêneros tão distintos entre si costumam, juntos, resultarem num conjunto harmonioso em que a vitória é da literatura.
Utilizando planos e técnicas diversas de narrar, o autor faz um relato multifacetado das aventuras e desventuras de Trouin que, em 1711, seqüestra o Rio por 50 dias, apoiado em uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e seis mil homens. Autobiografia de um homem, de uma cidade e do próprio autor é como podemos também definir a fantástica história dividida em três partes, com direito a breve intervalo jornalístico, post-scriptum e até uma bibliografia.
Estátua é ponto de partida para a viagem da trama
Na primeira parte, iniciamos uma viagem pela história franco-brasileira a partir da condição atemporal da estátua de René Duguay-Trouin: partimos de Saint-Malo, França. Recuamos no tempo e no espaço, mas não na linguagem que nos chega com o frescor da contemporaneidade. à a estátua que fala, que observa, que registra os acontecimentos num diálogo permanente com o leitor. Situa-nos, tanto na História da Espanha, mergulhada na Guerra de Sucessão, como no caos vivido pela cidade do Rio de Janeiro e na delicada posição dos franceses diante das alianças européias. Ao mesmo tempo, o próprio René Trouin nos introduz em sua biografia afetiva, amorosa e familiar. Afinal temos um herói ou – mais precisamente – um anti-herói em carne e osso, cuja construção leva em conta o homem comum que foi empurrado para o mar pela família, desistindo de ser seminarista ainda jovem.
“Fui um produto de um país europeu com a mesma ganà¢ncia dos outros, os mesmos desejos e necessidades de superação dos demais” – é o que ele declara a certa altura em que tenta justificar o seqüestro, a expropriação, a infinidade de mortes e a devassa que praticou no Rio. Tudo em troca de ouro em barras e em pó (1.624 libras), quatro canastras cheias de prata, 1.484 caixas, três barricas e uma quartola de açúcar, 1.167 barbatanas grandes e pequenas de baleias, 200 cabeças de gado e muitas mulheres.
Os portugueses, na época, sem estratégias de defesa para o Rio, cederam em tudo. O próprio governador, Francisco de Castro Morais, conhecido como “Vaca”, fugiu vergonhosamente deixando a cidade entregue à sua sorte.
Através desses relatos, o lendário personagem de Trouin não só nos introduz na história franco-brasileira da época como possui plena consciência de que nosso presente não é menos bárbaro. E de que os brasileiros continuam seqüestrados pelos mitos da natureza luxuriante, sol, mar, céu, sexo, samba, carnaval, mulatas.
Mas o que mais chama a atenção no romance de Antonio Torres, para além da impressionante pesquisa que por si só justifica a publicação do livro, é a capacidade que sua narração tem de unir as duas portas da História. Presente e passado se misturam e se equivalem no Rio atual e ainda sem defesas. Este salto para o presente se dá através da figura do personagem-escritor, que a certa altura toma conta do relato, assumindo, na sua condição de recém-desempregado, parte da narração. à o ano de 1998 e ele se despede de seu emprego no 28 andar de um arranha-céu na Avenida Rio Branco. Acaba de regressar de uma viagem em que se dedicou a esquadrinhar a vida de René Duguay-Trouin, longa e triste.
Um diário de bordo ou de guerra fictício, mas com anotações da cronologia real, trechos de poemas, citações compõem um tecido convincente de informações sem que a criatividade e a poesia abandonem os episódios. Até que a cidade começa a falar e conta sua gênese e a de seus fundadores. Numa manobra narrativa surpreendente, a cidade se transforma em protagonista onde antes era só cenário. Talvez um dos mais importantes e cobiçados cenários da época. A voz da cidade, diferentemente dos outros narradores, é feminina e vai nos contar os importantes desfechos do seqüestro.
Um cenário onde de fato pouca coisa mudou
Veremos através dela que muito pouca coisa mudou de lá para cá. Continuamos desguarnecidos e – como diz a narradora – estuprados. Esta será talvez a maior qualidade do romance: nos ajudar a verificar com George Orwel (citado no livro) que “aquele que tem o controle do passado tem controle do futuro. Aquele que tem o controle do presente tem o controle do passado”.
Quanto ao seu autor? Pode-se dizer que com “O nobre seqüestrador”, seu 10 romance, Antonio Torres vem confirmar o que dele já se disse desde “Um cão uivando para a lua” (1972), seu primeiro livro, e “Essa Terra” (1976), passando pelo magistral “O cachorro e o lobo” (1997). à um escritor definitivo porque soube imprimir sua marca pessoal e humana em histórias que, nas mãos de outro artista não tão habilidoso, facilmente se transformariam em meros compêndios de didática duvidosa.