JB Online – 30/08/2003
Flávio Carneiro
Antônio Torres colhe na história oficial as aventuras do corsário francês Duguay-Trouin, que pilhou o Rio de Janeiro em 1711
No premiado Meu querido canibal, Antonio Torres se utilizou do diálogo entre literatura e história para apresentar sua versão histórico-ficcional da chegada de Villegaignon ao Rio de Janeiro, no século 16. Já na época do lançamento do livro, o autor não escondia seu fascínio por outro personagem marcante da atribulada história entre franceses e brasileiros, em priscas eras.
Trata-se do corsário René Duguay-Trouin, que em 1711 parte de La Rochelle para atacar o Rio, a mais cobiçada das possessões portuguesas à época e, depois de dominar completamente toda a resistência local, exige vultoso resgate para deixar livre a cidade. Insólito seqüestro, convenhamos, obra de um marinheiro que jogava ali sua cartada decisiva, em lance que acabou por transformá-lo, séculos depois, numa quase obsessão do escritor baiano, que não se cansava de repetir: ”grande personagem!”
Grande personagem, sim, e ninguém poderá dizer ao certo se tal grandeza deve-se exatamente aos méritos do corsário ou ao que dele disseram os historiadores, em especial os franceses, ou ao tratamento que sua imagem recebeu pelas mãos laboriosas do escritor. E, afinal, que importà¢ncia tem isso se no campo sinuoso da literatura, e de certo modo também da história, não existe verdade ou mentira mas apenas versões bem ou mal contadas?
A de Torres, sem dúvida, está no grupo das muito bem contadas. A começar pela grande sacada da primeira parte do romance, narrada nada mais nada menos que pela estátua de Duguay-Trouin, erigida de frente para o mar, na passarela da muralha de Saint-Malo. Diante da visita do escritor, a estátua – cuja memória se estende para além da morte daquele que lhe serviu de modelo, vindo até nossos dias – se compraz em narrar, com a habilidade de um velho contador de histórias, a vida do valoroso corsário, entremeada com comentários irônicos sobre o que veio depois.
E quando o leitor já está se acostumando à prosa daquela estátua falante, vem uma segunda parte, em que surge outro narrador, anônimo, em terceira pessoa, a contar não apenas a história de René Duguay-Trouin mas a do próprio Torres, em seu trabalho de pesquisa – feito um historiador – à procura de dados para construir seu romance. Aqui, o autor vira personagem de si mesmo e as batalhas são outras, passadas noutros mares, quem sabe tão bravios quanto os de outrora. Depois dessa guinada ligeira, o romance retoma sua rota principal, que pode ser tanto a história do corsário quanto a da própria cidade do Rio de Janeiro.
Pois é justamente ela, a cidade, que toma posse do romance na terceira parte do livro. Agora a narrativa é conduzida por uma voz feminina, a da cidade seqüestrada, que dá início ao seu relato situando-o nos dias que se seguiram à partida dos franceses: ”Quando eles foram embora, eu, a Praça do Rei, me olhei no espelho das águas e o que vi foi uma meretriz de beira de cais, desgrenhada, ofendida, estuprada, malcheirosa, abandonada.”
Sua história se confunde com a da destruição, é o que ela nos diz. E no belo capítulo ”Quando Deus me fez e depois”, essa destruição é narrada não em tom melancólico, de vítima, mas com a firmeza e a indignação de quem se manteve bela mesmo depois de tantas violações. Violações que, como nos lembra a narradora, remontam à chegada dos portugueses e se estendem até os mais recentes seqüestros, operado pelos piratas do narcotráfico, entre outros.
Mas há seqüestros e seqüestros. Um deles é perpetrado pelo próprio Torres, que vai pilhar a história oficial para dali recolher novos tesouros, agora de papel e tinta. à a estátua do corsário quem lhe diz, entre a camaradagem e a ironia: ”Você veio até aqui para seqüestrar as minhas memórias.” E com a nobreza necessária a esse tipo de pilhagem, o autor não se propõe a aniquilar as versões que ele mesmo consultou. Pelo contrário. A elas rende uma espécie de homenagem, ao listá-las numa bibliografia que, aliás, pelo simples fato de estar ali, aponta para o hibridismo, assinalando a obra como algo entre o documento e a ficção.
Torres compõe um personagem que, sem deixar de manter vínculos com a imagem que dele construíram os historiadores, se mostra mais humanizado, mais carne-e-osso, nem herói nem vilão. Ao colocar a estátua como narrador e ele próprio como interlocutor dessa estátua, Torres assume o papel de confidente, abrindo espaço para que o corsário possa se expressar como bem entender. Nessa estratégia, que lembra Machado e seu Brás Cubas, dá-se voz ao defunto narrador, o qual, justamente por estar desimpedido das convenções a que estão sujeitos os vivos, pode falar livremente de si mesmo e dos outros.
Desse modo, o temido corsário pode contar não apenas suas façanhas com também seus medos e inseguranças, pode confessar que sua vida de marinheiro deveu-se, em parte, a uma imposição familiar e que foi ”sob as ordens de mamãe” que ele se lançou ao mar. Do pano de fundo constituído pelos fatos históricos – a guerra de sucessão da Espanha, a dramática posição francesa frente à coalização européia, a situação caótica vivida pelo Rio de Janeiro antes mesmo do famoso seqüestro -, recorta-se a figura do marinheiro sonhador, inteligente, destemido, infantil à s vezes, quase romà¢ntico, senhor de uma glória fugaz e abandonado à solidão e à melancolia no final da vida.
Antonio Torres nos oferece não apenas este grande personagem, construído entre as linhas do presente e as do passado, da realidade e da imaginação. A cidade do Rio de Janeiro, mais que cenário, é também protagonista do romance. à ela que, em última instà¢ncia, abriga e conduz todo o relato, postada desde sempre no lugar de princesa, tentando a custo manter-se viva, sob saraivadas de canhões e balas perdidas. E desse encontro entre a seqüestrada e seu algoz vai se construindo também a própria história do país – ou pelo menos um de seus capítulos -, escrita com rigor e fantasia, como convém aos nobres romancistas.