O Globo – Rio de Janeiro, 21/10/79
Edilberto Coutinho
Através de ação puramente psicológica, em que o passado está na consciência presente do personagem, Antônio Torres recria, neste “Carta ao Bispo”, todo universo de um homem que existe esmagado. Mais que isto, porque Gil se faz esmagado, e vamos conhecê-lo, exatamente, na situação-limite em que sentir e conhecer se repelem, são antinomias insuportáveis. Então, ao despedir-se da luta, Gil escreve sobre as razões de seu pretendido descanso. O que dirá na carta o leitor poderá, facilmente, recompor em suas próprias palavras. Porque não é difícil a gente se identificar com este personagem tão cheio de verdade humana e psicológica, com a consciência obscura, porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele. Sobre nós.
O romancista não faz uma análise psicológica de Gil por trás do personagem. Seu livro não é uma tese. O narrador não está, em nenhum momento (e nem coloca o leitor) em posição por assim dizer superior do personagem. Claro que não. Porque Antônio Torres escreveu um romance (e que romance), não uma tese acadêmica. A força interior, o caráter interior, psicológico de Gil, portanto, não é apresentado no plano de consciência, geradora de conhecimento. Gil é surpreendido pelo que acontece, e não consegue atinar claramente com o sentido psicológico de seu destino, do destino. Ele tem a intuição de que nenhum futuro o fará sair de seu passado. Torres suprime e subverte as ligações cronológicas, de modo que o que Gil percebe é o passado. Ele não conseguiu arrancar Malhada da Pedra da pasmaceira, então vai se arrancar da vida. Decide isto e, neste momento, um número grande de coisas lhe ocorrem à lembrança. Gil não está agora sendo perseguido pelos outros, mas por ele mesmo, pelos anos todos que viveu, por suas ações e reações, coisas omitidas e cometidas.
Tudo corre para ele, neste corredor da morte em que o encontramos, quando decide finalmente fazer-se responsável pelo próprio destino, que apenas intui. Torres não tem verdades prontas para oferecer. Ele mostra, através do roteiro de Gil, as suas dúvidas, conduzindo o leitor a refletir sobre “este país trocado: cada macaco fora de seu galho”. Gil não ouve a voz antecipadora da mãe, verdadeira Sancho Pança de saias do sertão baiano: “Política e forró é gostoso, mas não é para os filhos da gente”. Gil-Quixote vai em frente, porque acha que Zito, “que é como se fosse meu irmão”, ia ganhar as eleições. “Porque agora a gente vai ganhar”. E o que acontece a este perdedor exemplar na visão implacável e verdadeira que seu criador no oferece? “Gil deixa sua causa sincera e insana, na qual enterrou quase todos os seus quarenta anos. Queria salvar um lugar e um povo. Sozinho”.
Antônio Torres escreveu um romance rigoroso (estrutura e linguagem pedindo análise mais aprofundada), vigoroso, novo, feroz e ferino, que faz avançar a ficção brasileira. O professor e crítico Jorge de Sá fez uma síntese admirável da obra de Torres, nestas palavras: “Com os pés fincados no chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos problemas característicos, A.T. recria personagens tão vivos quanto cada um de nós”. Aí estão as características mais fortes deste romancista de mão cheia, que sabe contar uma história de sabor bem brasileiro, capaz de seduzir qualquer leitor. Mas que não é um ingênuo, e sabe também como armar a sua narrativa, de modo a oferecer uma leitura que pode ser feita em mais de um nível; que pede um leitor cúmplice, participante; a seu modo, também, recriador; quase um co-autor. Porque é preciso merecer o livro. Um livrão, apesar de magro em número de páginas. Mas cheio de sustança, em cada uma delas. Livro para ficar. Um triunfo.