Sucessão e Superação

Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Jorge de Sá

Desde o seu romance de estréia, Antônio Torres mostrou-se propenso a realizar uma obra de características marcadamente nacionais. Centrado no eixo do regionalismo e apoiado na riqueza da oralidade, ele vem captando não apenas as implicações do homem rude com a sua terra, mas principalmente a forma brutal que conduz o brasileiro a uma possível compreensão Don osso processo histórico. Assim, seria quase impossível classificar a obra do criador de Um Cão Uivando para a Lua somente de acordo com uma das áreas do ciclo baiano. Com os pés no chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos problemas característicos, Torres recria personagens tão vivos quanto cada um de nós. Portanto, sua despreocupação com a universalidade do romance reflete uma fecunda brasilidade só alcançada pelos maiores escritores da nossa literatura. Consciente de que a arte literária não se faz com técnica apenas, ele mergulha por inteiro na construção de seus textos, percorrendo com seus personagens o difícil caminho que vai da consciência ingênua, em que a alienação nos coloca a serviço de ideologias estranhas a nós mesmo, até uma consciência critica, que problematiza o nosso real, conduzindo-nos a uma ideologia coerente com os interesses do povo brasileiro.

Logo se a obra de Torres foge do universal (no sentido apenas estético), cada vez mais se aproxima do centro nervoso de nossos impasses, tornando-se espelho de uma realidade latino-americana, repensando todo o seu contexto. Por essa razão, cada novo trabalho reescreve o anterior através de novos ângulos, conquistando novas formas de melhor avaliar as implicações sócio-econômicas no confronto entre a cidade e a roça. Nesse processo, Carta ao Bispo é a sucessão natural de Essa Terra. Mas é, também, a sua ultrapassagem.

Nessa ultrapassagem, o novo romance de Torres coloca em cena um aprendiz de político, apaixonado por seu povo e desejoso de arrancar Malhada da Pedra da marginalidade a que foi condenada. Verdadeiro “cavaleiro andante se torna viagem”, Gil amadurece e se desgasta tentando concretizar seus sonhos quixotescos. Sozinho, esmagado pelas armadilhas dos poderosos, sé lhe resta o suicídio como afirmação da sua luta e grito de alerta àqueles que constroem o destino de seus filhos com “metros de pano, litros de farinha, quilos de açúcar e nacos de carne”. Para que seu sacrifício não seja inútil, decide escrever ao Bispo Dom Luís, seu amigo e confidente. O conteúdo da carta, porém, será um eterno segredo.

Neste caso, que interesse pode despertar um romance cujo titulo anuncia uma carta que jamais será lida por nós? É exatamente nessa estratégia que o leitor se vê envolvido. Num ritmo vertiginoso, acompanhamos o fluxo da memória com que Gil reconstrói sua vida. Cada fragmento, cada fato que marcou a tumultuada existência do protagonista é um enigma a ser decifrado. No trajeto da cozinha à sala, verdadeiro corredor de lembranças, Gil espalha os estilhaços de ma verdade que pertence ao mundo. Na medida em que avançamos na leitura, percorremos as mesmas etapas e vamos recolhendo as frases que constituem o texto ignorado. E nos surpreendemos cumprindo a mesma função do escritor-narrador: selecionar e sintetizar para alcançar um todo. A mensagem cifrada passa a ser reescrita, fazendo de cada um de nós seu verdadeiro emissor à procura de receptores capazes de ouvir um grito parado no ar desde os primórdios da nossa colonização.