Os incríveis compassos da invenção

Correio Brasiliense
Marcilio Farias

O Romance tem aquela prerrogativa maior do Romancero, que é a linguagem extensiva, dilatadora e elastecedora das tensões verbais intrínsecas à narrativa. O romance moderno, fragmentou essa prerrogativa maior, fruto da herança e dos ensinos da traditio e instaurou formulações novas para extensão ou contração do jogo narrativo.

No Brasil, essa ruptura com a linearidade dos processos narrativos só veio a acontecer, em definitivo, a partir do único realmente primoroso romance de Machado: “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Isso depois de Sterne, de Scott, de James e principalmente, depois de clássicos do romancero adquirirem edições internacionais, como o caso do “Cid”.

A partir de Machado a situação se acomoda até Callado (que incorpora o pontilhismo jornalístico à formulação da narrativa do romance em um livro inigualável. “Kuarup”) e João Antônio. O que acontece então é uma explosão de postulações narrativas realmente impressionantes e com diversos autores. Abel Silva, Roberto Drummond, Carlos Gurgel, Álvaro Faria se inscreveram nesse fluxo fantástico que injetou algo novo e vigoroso na modorra falso burguesa do nosso romance anterior a essa fase.

Antônio Torres é um romancista que alia uma consciência fundamental dos processos narrativos historiais do romance (o que se evidencia pela rigorosa arquitetura da obra) a um sentido rítmico impressionante que sabe onde distender ao máximo a carga da linguagem: onde deve contê-la máxima ou mínima, em sua tensão de significâncias. Desde “Um cão uivando para a lua” que o itinerário inventivo de Torres se abriu, colocando-o um passo adiante do moderno ficcionismo latino-americano, situando-o pari passu com Cortazar, Astúrias e Llosa. “Os homens dos pés redondos” é uma alegoria impressionante: tal como “Essa terra”, talvez a mais profunda análise do millieu latino-americano.

“Carta ao Bispo” é uma excitante aventura narrativa, em saudabilíssimo exercício de proposições narrativas, aliado e correlato a uma penetração marcante de um fenômeno sócio-político visceral na formação do homo brasileiro: a odisséia interior da Bahia, e sua desagregação interna, à medida em que a convivência com o fato político (ou pliticoso comme il fault) vai colocando-o em xeque com sua estrutura íntima de emoções e expectativas.

Gil é símbolo. Torres retoma aqui ou melhor, amplia aqui aquela sua tendência fabulativa esboçada nas suas obras anteriores. No entanto, o peso do seu novo livro é reforçado pela aguda inventiva que espaceja as várias formas de captação das emoções em uma manipulação atenta e segura do apparat lingüístico.

“Agora ele está só, tão desgraçadamente só quanto no dia em que nasceu. Mas agora ele dispensa a parteira e já não precisa mais berrar ao mundo que está só”.

Gil é um símbolo. Mas que o personagem, através do qual se repassa toda a agonia do existir defasado, distendido, Gil é a clave da exploração narrativa de Torres. A alquimia de correspondências entre o agônico mover-se do personagem e o distanciamento critico do autor permite ao leitor, pela disposição e/ ou montagem ideogramática dos blocos narrativos (onde mesclam-se a narrativa clássica, o discurso interior e o fragmentarismo icônico) uma visão plurimorfa e plurívoca de um processo que in facto ocorre com o interior de Gil, o símbolo.

O romance possibilita uma recriação, do fluxo real dos sentimentos sob o ritmo ou compasso da intervenção crítica, analítica do autor. No caso de Torres, essa intervenção se faz em todos os níveis e instantes do processo narrativo, abarcando e abrangendo as mínimas feições tocadas pela sua analítica.

“Parecia até um desperdício, esta cidade: tanta árvore, tanta fronde, tanta franja, tanta flor a derramar-se sobre os alegres portões ensolarados que não escondiam a estupidez de honestos ferroviários que comem e cagam a fazem filhos e morrem no fiado, igualzinhos aos bêbados do petróleo, essa horda fedida e barulhenta que chegava de noite estourando gasolina, detonando dinheiro e enchendo a cara e depois caía na cama até a hora da buzina, levantar, lavar a cara e seguir para o campo do petróleo e uma vez na vida toma banho, uma vez na vida tem uma folga, troca os trapos e segue atrás do trio elétrico, crente que a vida é boa, pelo menos uma vez por ano”. (Página. 32).

O que mais define a excelência do criador é a sua disposição para o claro-aberto. A palavra prédispõe o que a possui, isto é, a utiliza, para a clarificação dos processos interiores, onde a energia existencial se move no silêncio, como se fosse plâncton e dunas. O dizer do romance postula antes de qualquer nada a atenção às grandes massas de significados (i.é.. de energia simbólica) que se movem no entre mear dos trechos. Clarificar o uso da palavra é abrir-se a toda manifestação do discurso criador, é o que a critica academicista chama de perfeição estética.

Torres mergulha no seu universo de significâncias com a disposição do guerreiro. O pique que imprime a sua narrativa é o equivalente ao pique interior das suas indagações enquanto e como criador. Li o livro n o mesmo dia que recebi, sem interrupções, em uma hora e meia. Terminei a leitura sem fôlego. A dose exata das marcações narrativas, a sutil trança que o real e a critica desse real tecem e retecem. Vão construindo um bloco maciço de emoção e frustrações, um mover-se uníssono de vida e antivada.

Pouco importa saber se Gil morre (após tomar uma superdose de formicida Tatu) sem conseguir o tão almejado contato com o Bispo, ao qual sempre desejou (desejava?) escrever uma carta. Morre como um rato, uma barata, um homem. Simplesmente morre. O comentário do Bispo, incidentalmente nos braços de quem poderia ter expirado, não poderia ser mais adstringente:

“Não sei mais se acredito em Deus ou se este homem tem sangue de cavalo.” (Página. 107).

O principal na criação de Antônio Torres é a seriedade proposicional de seu trabalho. Qualquer proposição (ensina-nos a lógica das formas) (formas que, no entanto, independem da lógica que o raciocínio ordenador engendra) possui em si a trajetória anterior de um estado ou vários estados de coisa. O romance possui atrás de si toda a história, toda ontologia. Torres demonstra conhecer bem essa realidade fenomênica: conhece-a e penetra em sua corrente com a mesma desenvoltura de quem sabe as possibilidades e limites (infinitas possibilidades, infinitos limites) do ser, da existência, do sofrimento e da paixão.