Jornal O Norte – João Pessoa, Paraíba, 02/05/83
Hildeberto Barbosa Filho
Se Percy Lubbock escrevesse, hoje, o já clássico “A Técnica da Ficção”, não poderia prescindir do farto material disponível na narrativa de Antônio Torres, mormente em “Carta ao Bispo”. Sobretudo porque, privilegiando as formas de composição, ou seja, as estratégias do foco narrativo, teria, no aludido romance, as mais equilibradas experiências de uma narrativa moderna. Centrando a ação nos limites de um tempo diegético extraordinariamente curto (os instantes finais do personagem “Gil” que decide suicidar-se), o autor recorre a pluralidade dos recursos narrativos, principalmente no tocante ao terreno dos pontos de vista, buscando diluir a concentração dramática da ação principal. E, aguçando-a em outras seqüencias episódicas, consegue fornecer uma visão macroestrutural da trajetória do personagem, instaurando, assim, os alicerces do edifício romanesco em lugar de tecer os fios articulatórios da estrutura do conto.
Daí a narrativa em primeira pessoa, calcada sobremaneira nos dados da memória; a narrativa em terceira, mantendo a unidade da trama, e a presença recorrente do fluxo da consciência joyceano, remetendo para o universo caótico em que se debate o personagem. Nesse caso, se a narrativa opera, ordenadamente, um primeiro nível (o da fabulação), vai apontar, no espaço entretextual, para uma inquietação ideológica subjacente, traduzida na permanente indagação a respeito da condição ontológica do ser humano. Conseqüentemente, um exercício de narrativas superpostas, travando os rumos da narração e da reflexão. Por isso, no texto do escritor baiano, uma dimensão além da estética – o sentido filosófico. Em meio aos momentos cruciais do delírio da personagem, a linha episódica é interrompida (o que se faz constante na obra) por elucubrações dessa jaez: “O mundo está rodando. O mundo, mamãe, é um tonto, um alcoólatra de ressaca, um cego no meio do tiroteio. Esta vida é uma gangorra. Mas eu ainda quero rosetar. Rose-tar, mamãe. Cravar o espinho do cravo na roseira do mundo, cravar o meu espinho numa rosa aveludada, macia e cheirosa, cheirando a mulher.”
Logo, importa revelar em “Carta ao Bispo”, não somente a problematização conteudística das motivações recorrentes, isto é, o fluxo migratório e as suas irradiações temáticas: solidão, medo, opressão etc, como também o corte social na micro-região do “Junco” baiano, porém, fundamentalmente, o discurso maior sobre a existência. O que, diga-se de passagem, eleva a ficção de Antônio Torres a um plano universal.