Sobre “Carta ao Bispo” Veja – 5 de dezembro de 1979
Caio Fernando Abreu
A literatura brasileira, na década de 70, foi pródiga em contistas, um tanto avara em romancistas. Uma das poucas (e valiosas) exceções é o baiano Antônio Torres. Desde sua estréia, em 1972, com “Um Cão Uivando Para a Lua”, ele vem trabalhando nesse terreno. Depois de publicar “Os Homens dos Pés Redondos” em 1973, veio o grande sucesso de “Essa Terra”, em 1976. Fiel ao romance, ele publica agora este “Carta ao Bispo” – um livro pequeno, em número de páginas, mas tão denso, tão fluido, que pode ser lido de um fôlego só, ou lentamente, saboreando a linguagem. Em qualquer das duas hipóteses, o leitor descobrirá significados novos e surpreendentes.
“Escrever é sangrar”, dizia anos atrás João Antônio, autor de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, num de seus apaixonados depoimentos. É essa, principalmente, a sensação provocada por Antônio Torres. Ele sangra, sua, palpita e chora, em sua urgência de se expressar. Muitas vezes dispara, descontrolado, e a frase esquece vírgulas, parágrafos, toda sintaxe tradicional, preferindo acompanhar a memória e a emoção da personagem, Gil, surpreendido pelo autor numa situação-limite, extrema em que vacilam as fronteiras entre vida e morte, lucidez e loucura, coragem e covardia. Como a própria consciência da personagem, a linguagem tenta se organizar, e novamente se fragmenta, fracassa. Perdedor da vida, resta a Gil a vitória, ou pelo menos a escolha, da própria morte. Ao autor, por outro, segundo a epígrafe de Nietzsche, resta apenas arte, para “não morrer de verdade”. Essa arte, em Antônio Torres, é freqüentemente atingida, em cheio, através da palavra escrita.
AMOR DESESPERADO – “Carta ao Bispo” é a história de uma derrota. A derrota de Gil, “cavaleiro-andante de torna-viagem, sempre encalhando em algum lugar”, é também a derrota do homem brasileiro do nordeste, que fracassa mesmo quando tenta ser solidário com seus irmãos de fome e seca. Empenhado na luta política, na procura do amor, tentando ser responsável pelo destino dos outros, Gil só consegue assumir sua integridade no momento em que decide ser dono do próprio destino. A saída, então, é o suicídio. Se é certo ou errado, não importa: “O errado e o certo não é nem o errado nem o certo. Estou na minha estrada”.
Assim como sua personagem, o autor também assume, ou reafirma, seu destino de escritor, com a publicação deste livro. E de forma cada vez ainda mais segura, no extremo oposto do suicida Gil. Conquistando pouco a pouco uma linguagem e um universo próprios, inconfundíveis, Torres parece estar se preparando para ocupar um dos espaços deixados vagos com a morte de romancistas do porte de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Osman Lins. Voltado – sem proselitismos, o que é raro – para a realidade brasileira, ele é capaz de dizer com simplicidade coisas como “Olha as varandas, olha os coqueiros, bananeiras no quintal, fuxicos no portão (…) Terrinha bendita, terrinha maldita, gente feinha, gente bonita, lugarzinho que a gente reclama mas gosta, compadre”.
Em torno desse amor – desesperado, talvez suicida – por seu país é que gira a bela “Carta ao Bispo”, na mesma linha do anterior “Essa Terra”. Com a circunstância de que, em Torres, esse amor nasce mais do coração, das vísceras, que da cabeça, do raciocínio. Daí a paixão, o calor, o encanto poderoso do livro, e a maneira como ele atinge o leitor pelo caminho da emoção. Suas dúvidas tornam indispensável refletir sobre “este país trocado: cada macaco no seu galho”. “Carta ao Bispo” é um livro que, oportunamente, desmente a fragilidade da atual literatura brasileira, além de confirmar e ampliar a vigorosa posição de Antônio Torres dentro dela.