A Iracema do baiano Antônio Torres

Saudação a Antônio Torres, na Abertura do Ciclo de Conferências 2015 da Academia Cearense de Letras, antes da Conferência Iracema: 150 anos sem perder o encanto, pronunciada pelo escritor, em Fortaleza, a 21 de setembro de 2015

A Academia Cearense de Letras abre seu Ciclo Anual de Conferências 2015  com a palavra de Antônio Torres, um dos mais respeitados romancistas da contemporaneidade, no Brasil  e além fronteiras nacionais, pois suas obras estão traduzidas em mais de vinte línguas, publicadas em vários países, com excelente recepção e autêntico  sucesso de crítica e de público leitor.

Antes de passar a voz ao conferencista, permitam-me ressaltar a relevância de começarmos o Ciclo dedicado a Iracema com a participação de Antônio Torres. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o escritor, que assumiu, em 9 de abril de 2014, a cadeira 23 da ABL, aliás, uma das mais privilegiadas da instituição –  José de Alencar é o patrono, Machado de Assis, o primeiro ocupante, e, entre os ilustres escritores que vieram a seguir, encontram-se Jorge Amado e Zélia Gattai, tão caros ao leitor brasileiro! -,  o romancista narra um episódio de sua infância quando leu em voz alta, em sala de aula, trechos do romance Iracema, transcritos na Seleta Escolar de sua professora. Ouçamos sua voz:

Um desses trechos inundou a sala, fez o sertão virar os verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. O efeito        dessa leitura foi simplesmente fabuloso. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho. Além de não fazer a menor ideia de como era o mar, também não conhecia a jandaia e a carnaúba, nem de pluma, nem de folhagem, pois pertenciam a outras paisagens, e distantes, como a do Ceará. E ali estávamos na região do semi-árido da Bahia. Foi esse o primeiro impacto que as linhas iniciais de um romance me provocaram, instalando-se como o lugar da imaginação, e aqui reinstalando-se como o da memória.

Por essas palavras e por muitas outras referências do romancista baiano  à obra de seu patrono, em conferências, discursos, entrevistas, artigos, e em sua ficção, já se  evidencia a importância de sua vinda para inaugurar este Ciclo de Conferência que comemora os 150 anos de Iracema, a índia tabajara que, embora nascida “além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte”, apresenta-se, no imaginário de habitantes e visitantes de Fortaleza,  como símbolo maior de nossa cidade e, há muito, deixou as páginas do livro para habitar nossas vidas, em expressões do falar cotidiano, em nomes de pessoas, lugares – cidade, praças, praias –, de entidades comerciais e culturais; e para recriar o romance em outras artes, dando vida a esculturas, telas,  desenhos, ilustrações, quadrinhos, cordéis,  canções, filmes, poemas, ópera …

Tenho certeza que o penetrante olhar do romancista nascido em Junco, vila situada no sertão mítico do Conselheiro e transformada em território literário por Antônio Torres, ao desviar-se dos personagens de suas terras de dentro, e dirigir-se a Iracema, habitante primitiva das terras brasílicas em processo de colonização pelos europeus, enriquecerá a bibliografia sobre o romance de Alencar, até mesmo por trazer a experiência da criação ficcional de outros habitantes primitivos, como o famoso guerreiro tupinambá Cunhambebe, que o escritor transmigra da História do Rio de Janeiro para o romance Meu querido Canibal. Assim, dentro de instantes, nosso convidado desvelará com maestria novos encantos de Iracema, o livro que mereceu de Machado, logo após sua publicação, a profética designação de obra-prima.

Inaugurando-se no gênero romance com  Um cão uivando para a Lua, de 1972, o  então jornalista Antônio Torres, inicia sua carreira com sucesso, sendo saudado por vários críticos com respeito e confiança em seu futuro como ficcionista. Na revista Visão, Carlos Nelson Coutinho, em artigo intitulado “Uma questão de coragem”, salienta:

Exatamente pela sua temática, pela sua recusa obstinada em aceitar as seduções “neutralistas” de um vanguardismo estéril, é que o pequeno romance Um cão uivando para a Lua, do estreante Antônio Torres, destaca-se como o mais importante lançamento literário dos últimos tempos no país. Não há dúvida de que Torres parte de sua experiência pessoal: da experiência de um jovem intelectual provinciano que vem tentar a realização humana na grande cidade, sobretudo através do jornalismo, mas que termina paulatinamente esmagado pelas engrenagens de um mundo alienado, corrupto e hipócrita.

Em carta ao autor baiano, o escritor português José Cardoso Pires afirma, então, sobre o mesmo romance: “o que me surpreendeu foi a atitude interior de contestação literária que está subjacente ao texto e que lhe dá essa dinâmica de crise polêmica que, a meu ver, é bem mais valiosa do que a descrição do conflito”.

Ao comentar seu primeiro livro,  Antônio Torres revela:

O título me veio numa noite escura, em São Paulo, quando num quartinho de um hotel barato na Alameda Barão de Limeira, eu ouvia o tempo todo Miles Davis tocando sem parar My funny Valentine, uma terna canção americana, do dia dos namorados, que aquele trompetista, um gigante do jazz, transformara num lamento lancinante. Como os uivos vindos lá do fundo dos quartéis e dos manicômios, num dos quais eu havia visitado um amigo […] Foi aí que me veio uma idéia para um conto: um doido batendo papo consigo mesmo. Como parecia ser o de Miles Davis com o seu trompete. Oito meses depois tinha um romance nas mãos.

Se sua estreia fora promissora, a publicação de Essa terra, seu terceiro livro, de 1976, será consagradora. A obra, que inicia uma trilogia dedicada à sua terra natal, e que se vale de muitos dados autobiográficos, completa-se com O Cachorro e o Lobo, de 1997, e Pelo fundo da agulha, de 2006. Totonhim é o personagem que conduz o fio da trama e une os três romances, vivenciando os contrastes entre o mundo rural e o urbano em suas transformações através do tempo e atribulado pela sombria imagem de seu irmão morto.

Sobre Essa terra, famosos escritores e críticos se pronunciaram com  entusiasmo. Ítalo Moricone considera que o romance “consagrou Antônio Torres como um dos mais lidos e queridos escritores brasileiros contemporâneos”; Affonso Romano de Sant´Anna salienta que “assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas secas mostrando que saíram de sua família, Essa terra tem no lastro biográfico a sua força original.”; Doris Lessing, a famosa escritora britânica nascida na Pérsia, que escreveu em vários gêneros uma vasta bibliografia, tendo recebido o Prêmio Nobel de 2007, diz, em frase concisa e precisa:  “Admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.”

Em entrevista ao site da Editora Record, que publica suas obras, o escritor esclarece as relações entre personagem Totonhim e escritor Antônio Torres, alargando  os limites autobiográficos do personagem:

Tentei, neste livro, fazer uma reflexão sobre este crepúsculo do mundo em que vivemos. Um mundo pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo. Entendo que por trás dos impasses do personagem Totonhim não estão apenas os meus próprios. Nem apenas da minha geração. O que me parece é que de repente nos vemos todos — jovens, adultos e velhos — numa espécie de encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro. E onde está esta saída? Eis a questão.

Antecipa-se o escritor aos imensos problemas que vivemos hoje no mundo, quando se agudiza “a busca de uma saída para o futuro” e milhares ou milhões de pessoas partem de suas terras, em dolorosa peregrinação, na esperança de serem aceitos como refugiados, usando as palavras de Lessing: “ cujo destino é mudar de lugar”, mas sem saber para onde, nem como, nem quando chegarão a este lugar.

Embora não deseje atrasar o encontro de Antônio com seus ouvintes, seria injusto não mencionar aqui  outras belas obras de Antônio que, além de romances incluem livros dedicados a crianças, coletâneas de crônicas e contos: Os homens dos pés redondos, Carta ao bispo, Adeus, velho, Balada da infância perdida, Um táxi para Viena d’Áustria, O centro das nossas desatenções, O circo no Brasil, Meninos, eu conto,  O Nobre Sequestrador,  Minu, o gato azul, Sobre pessoas, Do Palácio do Catete à venda de Josias Cardoso…

Se é quase lugar-comum dizer que a literatura é perigosa, os livros de Antônio Torres são perigosíssimos. Em parte, porque propõem leituras que se abrem em diferentes direções, revertem conceitos estabelecidos pela história, disseminam a dúvida;  em parte porque possuem tentáculos – suas atrevidas técnicas narrativas que misturam presente, passado e futuro, embaralhando o fio do tempo, multiplicam as vozes de narradores, usam a ironia contra o próprio autor e suas atrevidas técnicas narrativas que …-  e  prendem-se a nós e não nos soltam enquanto não terminarmos sua leitura!

Mesmo considerando que Essa Terra é para Antônio Torres o que Iracema  é para Alencar e Dom Casmurro para Machado – ou seja, aquela obra redonda, a que nada se pode acrescentar ou retirar, que, mesmo se fosse única, concederia a imortalidade literária a seu autor – tenho, como leitora, especial carinho, pelo romance O Nobre Sequestrador, primeiro livro que me deu a conhecer o escritor Antônio Torres. Quando li o romance já estivera em Saint-Malo e vira de perto a estátua de René Dugay-Trouin, Capitão-de mar-e-guerra, Tenente-general, Espada de Honra do Rei, Cavaleiro da Ordem de São Luís, enfim, corsário sob as ordens de Luís XIV, a mesma estátua que narra a primeira parte do romance. Assim, ao ler as palavras que o autor põe nos lábios de seu narrador-personagem, senti-me, de repente, caminhando sobre as imponentes muralhas da cidade e, depois, me vi partindo do porto  de La Rochelle, na nau Le lys, que comandava 13 naus armadas com mais de mil canhões, em direção Rio de Janeiro, e prossegui a viagem profundamente preocupada, temendo que esses canhões arrasassem a amada cidade do Rio, antes que ela  recebesse a denominação de Cidade Maravilhosa!

– Bom, leitora Angela, encurte o que tem a dizer e passe a palavra a Antônio Torres, diz-me uma voz tão galhofeira quanto a de alguns narradores de Antônio e apresso-me em obedecer-me.

Entre importantes comendas e prêmios que nosso Antônio vem merecendo, destaco a condecoração pelo governo francês, em 1998, como “Chevalier des Arts et des Lettres” e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000, pelo conjunto da sua obra. Para salientar a importância da obra de Antônio Torres na Literatura Brasileira, valho-me das palavras finais de Nélida Piñon no discurso em que recebe o escritor baiano na Casa de Machado de Assis:

Nesta noite, no plenário do Petit Trianon, graças a sua obra literária, o Brasil se integra uma vez mais. O sertão e a pólis se enlaçam. Uma circunstância que nos leva a louvar o grande autor que, vindo do Junco, enalteceu o Brasil. É propício, pois, proclamar que a Academia Brasileira de Letras o acolhe com orgulho.
Seja bem-vindo a esta Casa, Acadêmico Antônio Torres.

Como Arakém, pai de Iracema, dá as boas-vindas a Martim, seu hóspede, também dou as sempre boas-vindas dos cearenses ao já quase d’Essa terra, Antônio Torres e, em especial, representando o Presidente e demais colegas da Academia Cearense de Letras, expresso-lhe nossas boas-vindas à Casa de Thomaz Pompeu, hoje, enquanto sua sede, o Palácio da Luz, recebe as pinceladas finais de seu restauro, abrigada no Salão Meireles, de uma Casa amiga, o Ideal Clube, diante dos mares bravios do Ceará, tão citados pelo baiano do sertão, e ao lado da praia que Iracema cuida como guardiã.

Profa. Dra Angela Maria Rossas Mota de Gutiérrez,

Membro e Diretora Cultural da Academia Cearense de Letras e 2a Vice- residente do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico, Antropológico)

Iracema: 150 anos sem perder o encanto

Conferência proferida em Fortaleza, no Ideal Clube, no dia 21 de setembro de 2015, iniciando o ciclo “Iracema, 150 anos”, promovido pela Academia Cearense de Letras.

Antônio Torres

150 anos viviam os habitantes da terra de Iracema, no dizer do viajante que batizou este lado do Atlântico de Novo Mundo, e veio a dar o nome a um continente cujo achamento pelo homem branco significou a descoberta de um outro rosto diferente do seu, chamado de índio por aquele que entrou para a história das terras americanas como o seu descobridor.

Como sabemos todos, o genovês Cristóvão Colombo não localizou corretamente as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram, situando-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia. Daí por diante todos os povos que iam sendo encontrados passariam a ter a mesma designação, fossem eles tupis ou apaches, guaranis ou astecas, pitiguaras ou incas, caraíbas ou tabajaras… Pouco ou nada importava que tivessem constituído impérios e civilizações, como no caso dos Maias. E aqui já estivessem havia quinze ou vinte mil anos, vindos da Austrália, Tasmânia ou Nova Zelândia. Eram índios e pronto.

Portanto, não é por acaso que José de Alencar invariavelmente se refere a Iracema como indiana. Dá tudo em sinônimo de não-branco, pois a cor da pele dos que aqui estavam quando os brancos chegaram é percebida como o primeiro sinal da diferença entre uns e outros, conforme a descrição magistral de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, em sua célebre carta a El-Rey D. Manuel I, o Venturoso, datada de 1º. de maio de 1500, na qual assinala: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma…” Etc.        

Mas a Europa só iria ficar excitada com as notícias desse paraíso terrestre habitado pelo povo expulso do Gênesis a partir do relato  de um passageiro da expedição manuelina que saiu de Lisboa no dia 13 de maio de 1501, com a missão de mapear o que Cabral não havia visto, um ano antes, e que resultou nos batismos do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Cabo de São Tomé, no norte fluminense, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, e São Vicente, no litoral de São Paulo, dali seguindo até a Patagônia. O tal passageiro não era outro se não o florentino Américo Vespúcio, que em fins de 1503 ou inícios de 1504 publicou em Paris um panfleto sobre a viagem que fizera às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores; porque é coisa novíssima…”

Sim, esse Novo Mundo descrito por Vespúcio começava pelo Nordeste brasileiro. A descrição que fez dele deixou a Europa aturdida: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado. Todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos. Doença era raridade – e facilmente curável, com ervas. Os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que honestamente não podem ser nomeadas”.

Além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem. E elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana – quer dizer, dos europeus -, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais enlouquecedor. Acrescentemos as referências aos rituais antropofágicos e imaginemos o impacto que os relatos de Vespúcio causaram aos corações e mentes de um Velho Mundo povoado de dógmas, ensanguentado pelas guerras religiosas, e a padecer com a fome e as pestes.   

Exageros à parte, os seus escritos viriam a servir de fonte de informações que o conhecimento convencional ignorava, abrindo as comportas do mundo da razão para o do instinto, influindo na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século XVI. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel, Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do também já mencionado Pero Vaz de Caminha, autor do primeiro texto escrito no Brasil, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do país, além de ser uma crônica admirável sobre a terra, que lhe pareceu “bela e rica”, e a sua gente, que não fazia o menor caso de encobrir ou mostrar as suas vergonhas, e nisso tinha tanta inocência como em mostrar o rosto.

Com tanta agudeza de percepções, por que a carta de Caminha não teve a mesma repercussão dos escritos de Américo Vespúcio? Pelo sigilo imposto por D. Manuel I em relação aos seus feitos nos mares, temendo a concorrência dos espanhóis. Isso fez com que o navegante florentino se tornasse o protagonista das grandes navegações que se seguiram ao descobrimento de uma terra onde libinosíssimas cunhãs, genuínas filhas de Eva, compunham o deslumbrante cenário de uma natureza em festa permanente. Sol, sexo, mar e selva. Eta vida boa.      

“Extraordinária visão para nós é que, entre elas, nenhuma parecia que tivesse as mamas caídas”, deleitou-se Vespúcio, acrescentando: “E as que pariam nada se distinguiam das virgens na forma e contratura do ventre; pareciam iguais nas partes restantes dos corpos, o que omito de propósito, por virtude. Quando podiam juntar-se aos cristãos, impelidas pela forte libido, contaminavam e prostituíam toda pudicícia”.

A sedução da América do Américo viria a ter por símbolo uma filha nativa chamada Iracema, dita seu anagrama, como propaga hoje até o ensinante mais popular do planeta, embora nem sempre confiável, mas muito acessível e acessado, o tal de míster Google. Há controvérsias. Mesmo assim, essa outra tradução para o vocábulo que o próprio Alencar consagrou como significando lábios de mel, em guarani, encontra fundamentação num ensaio da acadêmica Beatriz Alcântara, que integra a fortuna crítica introdutória à edição comemorativa dos 140 anos de Iracema, organizada por Ângela Gutiérrez e Sânzio de Azevedo, e publicada pela editora da Universidade Federal do Ceará. Com a palavra a poeta e professora Beatriz Alcântara:

“O historiador de literatura Afrânio Peixoto, 64 anos depois do lançamento da 1ª. edição do romance, levantou a hipótese, no número 89 da revista da Academia Brasileira de Letras, de que a palavra IRACEMA pudesse ser anagrama de América. A suposição passou a ser do agrado tanto de estudiosos quanto de leigos, a ponto de hoje ser prioritariamente referida e quase ser relegada ao esquecimento a proposta de seu criador.

O compositor contemporâneo Chico Buarque de Holanda, em homenagem crítica aos brasileiros mal parados mundo afora globalizado, menciona, na música “Iracema Voou”, de 1998, uma certa Iracema do Ceará, emigrante de seu anagrama América:

Iracema voou
 Para a América
 Leva roupa de lã
 E anda lépida
 Vê um filme de quando em vez
 Não domina o idioma inglês
 Lava chão numa casa de chá
 Tem saído ao luar
 Com um mímico
 Ambiciona estudar
 Canto lírico
 Não dá mole pra polícia
 Se puder vai ficando por lá
 Tem saudade do Ceará
 Mas não muita
 Uns dias, afoita,
 Me liga a cobrar
 - É Iracema da América”. 

Nada substitui o talento, já dizia um slogan da Rede Globo.

Seja o de José de Alencar ou de Chico Buarque que, com esse deslocamento temporal entre a fantasia e o realismo, suscita outras leituras de Iracema, levando-nos a refletir sobre o lugar do índio na História. Que está longe de ser o mesmo que ele ocupa no romance de Alencar, no qual simboliza o encontro da natureza com a civilização, acentuando um nacionalismo que é fruto de condições históricas, quase imposição, nos momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidade, conforme apontou o mestre Antonio Cândido em seu livro Formação da Literatura Brasileira.

Agora, nossa lendária morena não estaria indo ao encontro dos peles-vermelhas que povoaram romances épicos como “O último dos moicanos”, de James Finimore Cooper, com quem, aliás, Alencar não aceitava ser comparado. Mas admitia: “O Brasil tem, como os Estados Unidos, e quaisquer outros povos da América, um período de conquista, em que a raça invasora destrói a raça indígena. Essa luta apresenta um caráter análogo, pela semelhança dos aborígenes. Só no Peru e México difere.

Assim, o romancista brasileiro que buscar o assunto do seu drama nesse período da invasão, não pode escapar ao ponto de contato com o escritor americano. Mas essa aproximação vem da história, é fatal, e não resulta em imitação”.

O resumo desse caráter análogo é que, de lá para cá, Iracema passou de dona da terra a desterrada, a ponto de embarcar no sonho americano dos mineiros de Governador Valadares, também como passageira de segunda ou terceira classe ao paraíso do consumo chamado Primeiro Mundo.

Duas ou três décadas antes, porém, ela foi vista na Europa como protagonista do filme “Iracema, uma transa amazônica”, de Orlando Senna e Jorge Bodansky – aqui proibido pela censura da ditadura militar -, e que conta a história de uma menina do interior que vai a Belém com a família para pagar uma promessa na festa do Sírio de Nazaré, e passa a fazer a vida num cabaré, onde conhece o caminhoneiro Tião Brasil Grande, um negociante de madeira, e com ele pega uma carona, louca de vontade de chegar a um grande centro, São Paulo ou Rio de Janeiro, como parte de uma carga que simboliza o encontro contemporâneo entre a civilização e a natureza, promovido a golpes de motosserra.

História que segue.

Depois de dias e noites de puro encantamento com a narrativa de amor e morte (com uma guerra ao fundo) da bela indígena de “olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá”, eis que o leitor que vos fala é despertado para outra imagem, a da capa do recém-lançado Amazônia Indígena, de Márcio Souza, que parece simbolizar a última fronteira do processo civilizatório que lá atrás teve Iracema como musa inspiradora.

Flagrada de smartphone na mão, agora ela é, involuntariamente ou não, uma garota-propaganda do admirável novo mundo tecnológico, aqui, agora, e para o futuro. Como se essa outra Iracema, totalmente conectada à realidade do nosso tempo, estivesse nos dizendo:

OK, vocês venceram.

“Mas cá estou eu, uma sobrevivente de um processo civilizatório que deu na destruição da raça indígena, como o próprio José de Alencar não deixou de assinalar, para hoje o amazonense Márcio Souza fazer-lhe coro, acrescentando que esse processo foi prodigioso, destrutivo, brutal: uma espantosa façanha em que grupos pequenos de aventureiros europeus dominaram povos inteiros, saquearam enormes riquezas e exterminaram culturas florescentes. A expansão ibérica é um dos grandes mistérios da história contemporânea, e o Brasil é produto desse mistério. E como era da tradição do Ocidente – continua Márcio Souza -, a história da conquista foi contada como uma crônica de maravilhas, um repositório de surpresas e um livro negro de horrores. Mas, ao contrário do fabulário medieval, essas novíssimas lonjuras tinham a singularidade de seus habitantes, sociedades que pareciam ainda no Éden e ao mesmo tempo no mais desvairado sonho sensualista”.

Antes de fechar a pasta dos recortes contemporâneos em torno de Iracema, destaquemos o seguinte: sua história é hoje facilmente encontrável em qualquer livraria, em edições as mais variadas, como pude comprovar no Rio de Janeiro. Numa era em que o imaginário global se impõe sobre o local de forma esmagadora, esse interesse por um texto desencaixado das demandas mercadológicas está longe de ser espontâneo. Seu público-alvo encontra-se na rede de ensino. E é para ela que os editores fazem todos os seus rapapés, quer dizer, suas notas de rodapés.

Mas registre-se que a adoção de clássicos da nossa literatura pelas escolas não é de agrado unânime. Um exemplo: em crônica publicada no jornal “O Globo” de 2 de setembro de 2015, um jovem escritor chamado Raphael Montes, que vem fazendo um relativo sucesso como autor de romances policiais, foi taxativo: “Colocar uma criança de 14 ou 15 anos para ler José de Alencar só faz afastá-lo dos livros. Pior ainda quando a leitura é obrigatória e cobrada na prova: os alunos ficam mais preocupados em buscar análises do que em mergulhar na história, em saborear o texto. No geral, provas assim são compostas de perguntas bobas que conseguem ser resolvidas com consultas a resumos na internet, e a leitura se torna um obstáculo inconveniente que o aluno tem que vencer para passar de ano. Depois da experiência traumatizante, será que ele vai gostar de ler? Será que vai entrar numa livraria e buscar um livro por vontade própria?”

Agora vejamos quem esse jovem autor quer ver ocupando na escola o lugar de José de Alencar, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa: Agatha Christie e J. K. Rowling, a autora de Harry Potter. Para o triunfo absoluto do mercadão global.

Imagino que outra seria a sua opinião se ele tivesse sido aluno de uma professora chamada Teresa, num povoado esquecido nos confins do tempo, numa baixada de solidão e poeira, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas. Sem livros.

Ao chegar ali para inaugurar o prédio de uma escola rural, Dona Teresa trazia na mão uma seleta de poemas, contos, crônicas e trechos de romances. Ela pôs os alunos em fila, para que lessem em voz alta a página que ia mostrando a cada um. A que me coube:

“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”…

Imaginem o efeito dessa leitura para um menino nascido num lugar onde nem rio havia, quanto mais verdes mares. Ele também nunca tinha visto uma jandaia, nem uma carnaúba, pois estava integrado à paisagem árida do sertão da Bahia, muito longe do Ceará. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho, como se tivesse descoberto um mundo nunca dantes imaginado. Foi esse o impacto que a primeira página de “Iracema” me provocou, se instalando em mim como o lugar da imaginação, e aqui reinstalando-se como o da memória.

Que não se privem os meninos de hoje do prazer estético inenarrável proporcionado pela leitura de um dos mais belos textos da língua portuguesa, na insuspeita avaliação de um crítico literário da terra de Chateaubriand, Balzac, Baudelaire, Rimbaud, Stendhal, Proust, numa inequívoca confirmação do que vaticinou Machado de Assis, há 150 anos, quando afirmou com todas as letras: “Há de viver este livro, tem as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro… que lhe chamará de obra-prima”.

Precisa dizer mais?

Representações do cotidiano escolar em textos literários*

Comecemos por um episódio extraído da página 73 do Dicionário amoroso da língua portuguesa, livro organizado pelo escritor carioca Marcelo Moutinho, juntamente com o português Jorge Reis-Sá, e publicado em 2009 pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. O episódio em questão está no capítulo dedicado à palavra Saudade, no qual ela mesma, no papel de narradora de sua própria história, evoca um professor que sofre de nostalgia do tempo em que a escola era risonha e franca, com a cantoria de hinos (Avante, camaradas, ao tremular do nosso pendão… Glória aos homens, heróis dessa terra, essa pátria querida, que é o nosso Brasil…), e a declamação de poemas de igual fervor patriótico.

Na evocação da personagem chamada Saudade, o professor pigarreia, para desembargar a sua emocionada voz, e pergunta para uma platéia imaginária:

– Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta?

Um coro de meninos responde:

Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais

Quem nunca teve saudade da escola onde se aprendia a ler… lendo em voz alta, recitando e cantando, que atire a primeira pedra! Os tempos são outros, claro. E outras são as escolas e as poesias. Do tom nostálgico do romântico Casimiro de Abreu chega-se à consciência do mundo no modernismo de Lêdo Ivo, cuja obra poética está reunida numa edição da Topbooks* de mais de mil páginas. É dele um caso exemplar de representação do cotidiano escolar num texto literário, e que, ao mesmo tempo, comprova que para a modernidade o que importa é observar a singularidade na qual o sujeito se insere num tempo e espaço determinados, reinventando as coisas, as relações humanas, enquanto busca tratar os velhos sentimentos de uma forma nova. Já o romantismo valoriza a emoção, o individualismo, o sofrimento amoroso, o passado etc. Agora, passemos a palavra ao nosso contemporâneo Lêdo Ivo:

Primeira lição

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

Neste poema, a memória do aprendizado das primeiras letras leva ao processo dialético do crescimento humano, da formação do cidadão (Um dia num muro/ Ivo soletrou/ a lição da plebe). Como se o poeta quisesse nos dizer que nunca é demais lembrar que tudo começa mesmo é na escola, onde Ivo viu a uva/ e aprendeu a ler.

2.

Essa escola, porém, demorou a entrar nas nossas vidas. O sertão onde nasci – por exemplo -, só passou a ter ensino público na década de 1940. Antes, ali havia apenas um abnegado e severo professor particular, com o qual se aprendia a assinar o nome e pronto. Ele se chamava Laudelino Mendonça, o “Pai Lau”, que hoje é nome de rua. Mas quando apareceu a professora Serafina, tudo mudou. Já no seu primeiro 7 de setembro no comando daquela escola, ela pôs os meninos em cima de um palanque para recitar Castro Alves (Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, estandarte que a luz do sol encerra, as divinas promessas da esperança), Olavo Bilac (Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!)e tantos mais. E o povo chorou. Era a chegada de um novo tempo. Agora os meninos dali iam aprender mais do que assinar os seus nomes.

Recuando a anos anteriores, chegaremos à escola do professor Padilha, no romance “São Bernardo”**, de Graciliano Ramos, cuja primeira edição é de 1937. Ela rende entrechos decisivos na história de Paulo Honório, um criminoso que, ao deixar a prisão, passa por cima de tudo e de todos, até se transformar num grande fazendeiro no estado de Alagoas, tornando-se “o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador”, nas palavras de João Luiz Lafetá. Tanto que ele constrói a escola visando um bom negócio, que agradaria ao governador e, portanto, poderia lhe render alguma vantagem. Coincidentemente, ao tomar essa decisão, Paulo Honório ouve uma conversa “elogiando umas pernas e uns peitos”. Pergunta: “De quem são as pernas?” Então fica sabendo que são de Madalena, uma professora, bonita, loura, que está entre os vinte e os trinta anos. A partir desse momento Paulo Honório começa a pensar em se casar.

Páginas adiante, ele conhecerá dona Glória, tia de Madalena, que lhe diz sentir pena da sobrinha “encafuar-se num buraco”, pois havia feito um curso brilhante.

– Faz pena – concorda Paulo Honório. E acrescenta: – Isso de ensinar bê-a-bá é tolice. Perdoe a indiscrição, quanto ganha sua sobrinha ensinando bê-a-bá?

Dona Glória baixou a voz para confessar que as professoras de primeira entrância tinham apenas cento e oitenta mil-réis.

– Quanto?

– Cento e oitenta mil-réis.

Ele se espanta e diz que “faz até raiva ver uma pessoa de certa ordem sujeitar-se a semelhante miséria”, e se gaba de ter empregados que nunca estudaram e são mais bem pagos. E pergunta por que dona Glória não aconselha a sobrinha a procurar outra profissão. E pior: recomenda um meio de as duas, tia e sobrinha, ganhar dinheiro a rodo: criando galinhas.

O duro realismo desse diálogo nos faz lembrar que quem o escreveu tinha conhecimento de causa. Como sabemos, Graciliano Ramos foi presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios, em 1927, na qual se elegeria prefeito, em 1928, e onde, em 1932, fundou uma escola na sacristia da Igreja Matriz. E para completar, ele foi nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário, em 1939, ou seja, já depois da publicação do “São Bernardo”. Quanto à sua criatura, estava mesmo era fazendo rodeios para chegar à Madalena, secretamente desejando tê-la como moradora da sua fazenda, não como professora, mas como esposa. E assim Madalena entra para a história como uma personagem nuclear de um drama rural brasileiro de alguma maneira comparável ao da Desdêmona de “Othelo”, a célebre peça teatral de William Shakespeare.

A diferença de sensibilidades, para não dizer de estatura intelectual, moral e etc, levaria Paulo Honório e Madalena a atritos que culminariam num desfecho trágico. E a escola sempre entrava no rol das desinteligências do casal, conforme podemos ler no capítulo 21 de “São Bernardo”:

“Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios […] Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de reis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leituras na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia da capa preta. Mas contive-me. Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo caso, era despesa supérflua.”

Quer dizer, Paulo Honório não achava os custos do material escolar um investimento, mas despesa. E supérflua. Qualquer semelhança com pessoas do Brasil de hoje não será mera coincidência.

3.

Agora passemos à escola de Jorge Amado:

“Para o menino grapiúna*** – arrancado da liberdade das ruas e do campo, das plantações e dos animais, dos coqueirais e dos povoados recém-surgidos – o internato no colégio dos jesuítas foi o encarceramento, a tentativa de domá-lo, de reduzi-lo, de obrigá-lo a pensar pela cabeça dos outros”.

E nos estreitos limites do internato, ele seria salvo pela lembrança do mar de Ilhéus, da praia do Pontal, das marés mansas e das tempestades, enquanto um padre chamado Luiz Gonzaga Cabral – que substituíra o professor de português -, declamava para os alunos episódios de “Os Lusíadas”, em vez de sacrificá-los com análises gramaticais, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações da epopéia lusitana.

“O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma descrição tendo o mar como tema. A classe se inspirou, toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados […] Prisioneiro no internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição”.

Como o padre levara os deveres para corrigir em sua cela, na aula seguinte ele anunciou a existência de uma autêntica vocação de escritor naquela sala de aula. E pediu que os alunos escutassem com atenção o dever que ele ia ler, afirmando que o autor daquela página (que acabara de fazer 11 anos) seria no futuro um escritor conhecido.

“Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio, ao lado dos futebolistas, dos campeões de matemática e de religião, dos que obtinham medalhas. Fui admitido numa espécie de Círculo Literário onde brilhavam alunos mais velhos. […] O padre Cabral tomou-me sob sua proteção e colocou em minhas mãos livros de sua estante. Primeiro ‘As viagens de Gulliver’, depois, clássicos portugueses, traduções de ficcionistas ingleses e franceses. Data dessa época minha paixão por Charles Dickens […] Recordo com carinho a figura do jesuíta português erudito e amável… sobretudo por me haver dado o amor aos livros, por me haver revelado o amor da criação literária, que me ajudou a suportar aqueles dois anos de internato, a fazer mais leve a minha prisão, minha primeira prisão.”

4.

As memórias de Jorge Amado nos pedem um rápido retorno à escola de Graciliano Ramos, não a que ele “construiu” em “São Bernardo”, mas a rememorada numa crônica intitulada “O Barão de Macaúbas”, do seu livro “Infância”****:

“Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas de Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. […] Deus me perdoe. Abominei Camões…”

Rubem Braga também nos legou uma memorável representação do cotidiano escolar. Em sua crônica “Aula de inglês”*****, com toques amenos que chegam a lembrar os de Machado de Assis, ele dá uma verdadeira aula… de como escrever com sagacidade e leveza. Começa com uma professora a mostrar um objeto para o aluno, perguntando: – Is this an elephant? Como o aluno demora na análise do objeto, a professora fica apreensiva. Mas quando afinal responde, negativamente, e com convicção, ela suspira, satisfeita. A aula prossegue como um teste de conhecimento vocabular na língua inglesa, marcado pelo suspense no silêncio entre pergunta e resposta. Ao final, a professora festeja a vitória do aluno tão efusivamente que o deixa perturbado, sentindo, ao mesmo tempo, vergonha e orgulho.

“Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

It’s not an ash-tray!”

5.

O estojo escolar de Cony

Está no livro “Crônicas para ler na escola”, de Carlos Heitor Cony, publicado pela Editora Objetiva, com apresentação da professora Marisa Lajolo. E vai aqui na íntegra, com autorização do autor:

Noite dessas, ciscando num desses canais a cabo, vi uns caras oferecendo maravilhas eletrônicas. Bastava telefonar, e eu receberia um notebook capaz de me ajudar a fabricar um navio, uma usina nuclear, uma estação espacial.

Minhas necessidades são mais modestas: tenho um PC mastodôntico, contemporâneo das cavernas da informática. E um notebook da mesma época que começa a me deixar na mão. Como pretendo viajar esses dias, habilitei-me a comprar aquilo que os caras anunciavam como o top do top em matéria de computador portátil.

No sábado, recebi um embrulho complicado que necessitava de um manual de instruções para ser aberto. Depois de mil operações sofisticadas para minhas limitações, retirei das entranhas de isopor o novo notebook e coloquei-o em cima da mesa. De repente, como vem acontecendo nos últimos tempos, houve um corte na memória. Tinha 5 anos e ia para o jardim de infância. E vi diante de mim o meu primeiro estojo escolar.

Era uma caixinha comprida, envernizada, com uma tampa que corria nas bordas do corpo principal. Dentro, arrumadas em divisões, havia lápis coloridos, um apontador, uma lapiseira cromada, uma régua de vinte centímetros e uma borracha para apagar meus erros.

Da caixinha vinha um cheiro gostoso, cheiro que nunca esqueci e que me tonteava de prazer. Fechei o estojo para proteger aquele cheiro, que ele ficasse ali para sempre, prometi-me economizá-lo. Com avareza, só o cheirava em momentos especiais.

Na tampa que protegia estojo e cheiro, havia estampado um ramo de rosas vermelhas que se destacavam do fundo creme. Amei aquele ramalhete – olhava aquelas rosas e achava que nada no mundo podia ser mais bonito.

O notebook que agora abro é negro, não tem nenhuma rosa na tampa. E em matéria de cheiro, é abominável. Cheira a telefone celular, a cabine de avião, ao aparelho de ultrassonografia onde outro dia uma moça veio ver como sou por dentro.

Piorei de estojo e de vida.

6.

Duas representações teatrais inesquecíveis

A primeira: “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde. Escrita quando o autor tinha apenas 22 anos, esta peça fez um extraordinário sucesso no Brasil na década de 1970, e foi encenada em mais de 30 países. Trata-se de um monólogo em que a metáfora do poder se encarna em Dona Margarida, professora primária que diz ser uma segunda mãe para os alunos, e só querer o bem deles, mas que usa métodos autoritários, ilógicos, neuróticos e violentos. À medida que a aula avança, os alunos-espectadores se vêm dominados pelo terror, entre o espanto e situações cômicas. Esta peça marcou profundamente a carreira teatral de Marília Pêra, que nela, segundo a crítica da época, revelou qualidades de atleta, acrobata, palhaço, mulher atraentíssima, monstro, e atriz completa, que coloriu o longo discurso da professora Margarida com surpreendentes mudanças de tom, tempo e intenção.

Segunda: “A aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza. Ano: 1981.

O título foi, obviamente, inspirado em “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Trata-se de um texto teatral que nasce das recordações de um senhor sobre a sua infância, ao visitar a sua velha escola, quando revive o seu passado escolar. Articulada em quadros independentes, nos quais decorre um longo período de tempo, a peça oferece a cada integrante da classe de aulas o aprofundamento de suas relações consigo mesmo e com o mundo.

São oito personagens/alunos que se alternam com alguns professores, envolvendo um retrospecto às vezes nostálgico, às vezes cômico ou crítico, quando associa as deformações provocadas pelo regime militar ao ambiente das escolas.

Pela sua alta comunicabilidade, “A aurora da minha vida” foi um dos maiores sucessos teatrais da década de 1980, “despertando no espectador a lembrança de fatos muito vistos e vividos, e acumulando impressões, conclusões, associações de idéias que remetem à ternura das coisas familiares”, de acordo com a revista “IstoÉ” de 6 de julho de 1981. Arquétipos, os personagens revelam tipos comuns nas salas de aula de todos os tempos, e os condicionamentos que justificam as suas condutas. E as platéias, que vivem em outros padrões, mesmo se comovendo ao relembrar vivências passadas, não deixam de confrontar, criticamente, o mundo velho com o novo.

E assim concluímos: nem todas as representações da escola risonha e franca são só nostálgicas. Há também as que se manifestam risonhas e críticas.


*Ivo, Lêdo. Poesia completa. RJ: Editora Topbooks/ Braskem, 2004.

**Ramos, Graciliano. São Bernardo: RJ, Editora Record. 1985, 44ª. ed.

***Amado, Jorge. O menino grapiúna: RJ, Editora Record. 2004, 22ª. ed.

****Ramos, Graciliano. Infância. RJ: Editora Record, S/d.

*****Braga, Rubem. 200 crônicas escolhidas: RJ, 2004, 22ª. edição.

Cronologia (e estórias) do Rio de Janeiro

Texto de introdução às oficinas literárias Ritmos do Rio em Prosa e Verso, realizadas na Casa do Saber em janeiro e fevereiro de 2010

Em tempos imemoriais, o Rio de Janeiro foi um arquipélago, tendo os seus morros como ilhas. No decorrer das eras, esses morros, pela erosão natural, forneceram entulho às águas circundantes, começando então, lentamente, e por volta de cada um deles, a formação de uma planície de várzeas, charcos, pântanos e mangais. Entre quatro das antigas ilhas, que se tornaram os morros do Castelo, de Santo Antônio, de São Bento e da Conceição, formou-se a planície correspondente ao atual centro da cidade.

Também lentamente constituiu-se um litoral recortado de enseadas, boqueirões e sacos, entre algumas elevações costeiras e litoral fronteiro a algumas ilhas como Villegaignon, Fiscal e das Cobras. Foi o litoral da época do descobrimento.

A evolução urbana levou o Rio a perder vários morros, por arrasamento, como o do Castelo e o de Santo Antônio. Até a ilha de Villegaignon perdeu suas pequenas elevações. Com a construção da cidade Universitária desapareceu a colina do Fundão.

Quando aqui chegaram, os portugueses e os franceses encontraram os morros cercados por terrenos pantanosos, lagos e mangais. E também encontraram um velho povo do qual nunca se soube a real procedência. Esse povo era oriundo do grande tronco tupi-guarani e se chamava tupinambá, que pode significar “filho da Terra”. Habitava o litoral brasileiro desde a embocadura do Amazonas até o Rio da Prata. Estabeleceu-se no Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, em substituição a outras tribos, muitos séculos depois que os primeiros povos indígenas começaram a descer em ondas o continente americano, através do Estreito de Bering, ou, noutra hipótese, que indivíduos vindos da Austrália, Tasmânia e Nova Zelândia povoaram a América do Sul, a partir da Terra do Fogo, onde penetraram margeando as geleiras da Antártica, as ilhas Shetland e o Cabo Horn.

Até os europeus chegarem, os nativos não sabiam que eram chamados de índios. Tal denominação, que abrangia todos os silvícolas do continente americano, deveu-se ao equívoco de Cristóvão Colombo, que, ao pôr os pés na América, pensou haver chegado à Índia, a ambicionada terra do ouro.

Datas

12 de outubro de 1492: Cristóvão Colombo, comandante de uma esquadra espanhola, chega à ilha de San Salvador, nas Bahamas. E com isso a data passa a significar, oficialmente, o Descobrimento da América, embora desde o ano 1000 expedições de vikings tenham alcançado as terras americanas, à procura de novas áreas pesqueiras. Tudo começou, na verdade, com o islandês Erik Thorvaldsson, chamado de “Erik, o Vermelho”, que em 985 aportou na Groenlândia, onde implantou várias colônias. E da Groenlândia partiram as expedições à América propriamente dita. Pesquisas recentes permitiram localizar vestígios de suas vilas na ponta norte da Terra Nova, ao redor da baía de Pistolet. Como essas expedições não chegaram ao conhecimento da Europa na Idade Média, coube a Cristóvão Colombo a glória eterna do descobrimento do Novo Mundo, ao qual ele retornou em 1498 e 1504, delineando o contorno do Caribe.

Em junho de 1494, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo em duas partes: as terras que fossem descobertas a oeste desse meridiano pertenciam à Espanha, e as terras a leste, a Portugal. Os dois países queriam mesmo era encontrar o caminho marítimo para as Índias, que os portugueses tentavam achar contornando a África. Acharam o Brasil (por acaso, diz a lenda), nas costas da Bahia, num lugar que batizaram de Porto Seguro. Passou-se isto no dia 22 de abril de 1500.

No dia 10 de maio de 1501, partia de Lisboa uma expedição a serviço de el-rey D. Manuel I, o Venturoso, com a missão de descobrir as extensões das terras descobertas por Pedro Álvares Cabral. A frota, na qual navegava o florentino Américo Vespúcio, era de três caravelas, sob o comando de Gonçalo Coelho, que atingiu a costa brasileira em 16 de agosto daquele ano, o dia de São Roque, nome com que batizou o cabo onde fez sua primeira aterragem, no Rio Grande do Norte. Navegando na direção do Sul, Gonçalo Coelho continuaria a dar aos acidentes geográficos em que aportava, ao longo do percurso, o nome do santo do dia: Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco (28 de agosto); Rio São Francisco (4 de outubro); Baía de Todos os Santos (1º. de novembro); Serra de São Tomé, atual Cabo de São Tomé, no litoral norte fluminense (21 de dezembro). E, depois… 1º. de janeiro de 1502. O dia do Rio. E a exceção à regra dos nomes com que Gonçalo Coelho vinha batizando os seus achados. E por ele haver confundido a boca de entrada da baía de Guanabara (que significa braço de mar) com a foz de um grande rio. Ou simplesmente porque rio era, então, qualquer porção de água. Aliás, os nomes primitivos da Guanabara – que os portugueses ignoraram – a definiam como rio. Ei-los:

Rio de Reféns
Rio de Arrefens
Rio de Oriferis
Rio de Rama
Rio de Iaceo

Na verdade, os portugueses não viram no Rio nada que fosse digno das atenções para os interesses lusitanos. Nenhum sinal de que sob o seu solo escondiam-se minas de ouro. Ao primeiro olhar, só avistaram pimenta, papagaio e índio – e isso já estavam fartos de ver. Seguiram a viagem, que naquele mesmo mês de janeiro resultaria na descoberta da Baía de Reis, atual baía da Ilha Grande (dia 6); e, no litoral paulista, nas de São Sebastião (dia 20) e São Vicente (dia 22), dali continuando até a Patagônia. (Segundo alguns pesquisadores, o último porto tocado pela expedição de Gonçalo Coelho no litoral brasileiro foi batizado de Cananor (atual Cananéia), em 15 de fevereiro de 1502).  

Por ser um país pequeno, pobre e de população limitada, e mais preocupado com as cobiçadas riquezas da Índia, Portugal demorou a priorizar a colonização do Brasil. E assim o Rio ficou esquecido por um longo período. Só em 1515 e 1519 por aqui passam João Dias de Solis e Fernão de Magalhães. Este último ignora o nome do Rio de Janeiro e rebatiza-o como Baía de Santa Luzia, por haver aportado no dia dela, 13 de dezembro. Em 1531, Martim Afonso de Souza também deu uma olhada no Rio e foi embora, para fundar a povoação de São Vicente, no ano seguinte. Além de deixar alguns homens que se atritaram com os nativos e foram mortos, Martim Afonso de Souza marcou sua passagem por estas bandas com a construção de uma ferraria para conserto de navios, que os índios acharam muito engraçada, chamando-a de carioca = casa de branco. Mais tarde carioca seria o nome de um rio que desaguava no Flamengo e etc.

Com a morte dos homens deixados aqui por Martim Afonso de Souza, a “casa de branco” ficou abandonada.  O desinteresse dos portugueses pelo Rio de Janeiro deixou o campo aberto para os franceses, que não foram os marinheiros das primeiras viagens ao Novo Mundo, empreendidas na virada do século 15 para o 16. Chegaram atrasados ao cais de embarque para as grandes navegações, que já iam longe, a partir dos portos ibéricos. Aventureiros retardatários, ainda assim os franceses conseguiriam a proeza de roubar a cena enquanto coadjuvantes, surpreendendo os protagonistas, que já se consideravam os legítimos donos dos caminhos marítimos e das terras que haviam descoberto. Interpondo suas encruzilhadas nas trilhas dos portugueses, os franceses se desempenharam com as armas da sedução, que os levaram ao delírio. Ou aos desatinos.

A princípio sem uma predestinação à lenda heróica, os primeiros franceses que desembarcaram no Rio, presumivelmente aí pelo ano de 1503, eram anônimos comerciantes, interessados apenas nas transações comerciais e não em conquistar a terra e colonizá-la. Provavelmente já informados sobre suas riquezas em abundância, e de que era habitada por um povo que desconhecia a propriedade, o dinheiro e o comércio, trouxeram os seus navios carregados de apetrechos que passariam a valer como moeda de troca. Diplomáticos desde os seus primeiros contatos, souberam ganhar a confiança dos nativos, estabelecendo com eles as bases de um vantajoso sistema de escambos, num mundo que desconhecia o valor material de sua fauna e flora.

O negócio dos escambos consistia em permutas de mercadorias – espelhos, pentes, camisas, calções -, e utilidades da civilização européia – tesouras, anzóis, facas, enxadas, foices, pás, machados, martelos -, pelos produtos da terra, altamente comerciáveis: madeira de lei, pedras coloridas, pimenta, algodão, aves exóticas e suas vistosas plumagens.

O mercado francês iria se agitar com os carregamentos o pau-brasil (que os índios chamavam de ibirapitanga, o pau-de-tinta), tão grosso que três homens não lhe abraçariam o tronco, e que fornecia a tinta vermelha com que eles pintavam o corpo. E que iria beneficiar a indústria têxtil da França, avivando as cores dos seus tecidos, tornando-os mais alegres.

Então os seus barcos foram postos a correr, velas ao vento rumo à terra dos canibais, dos quais os franceses se faziam amigos ao chegar, temendo serem sacrificados e devorados. Nesse intenso ir-e-vir, vir-e-ir, alguns deles nem quiseram regressar, preferindo a vida tribal, com toda a sua liberdade de costumes. Nesse mundo onde, conforme a descrição de Américo Vespúcio, todos viviam como saíam do ventre materno, em desenfreada libidinagem, entregando-se perdidamente a todos os excessos amorosos que desafiavam a imaginação humana, os franceses pensaram haver descoberto um paraíso terrestre, habitado pelo povo expulso do Gênesis.

Como se isso fosse pouco, os tupinambás, que tanto os encantaram, eram festeiros. Quando não estavam em guerra, caíam na farra. Bebiam, cantavam e bailavam, inclusive (ou principalmente) em seus rituais canibalísticos, eventos realizados com uma pompa extraordinária, da qual os prisioneiros participavam alegremente, até a hora do sacrifício, a que se submetiam de cabeça erguida, como mandava a tradição.

Desde o início os franceses foram hábeis em convencer os tupinambás de que não eram seus inimigos. Tanto que mais tarde vieram a se aliar a eles nas batalhas contra os portugueses. As relações se tornaram tão amistosas que os nativos passaram a chamá-los de maïrs, por serem louros e tão palradores quanto os papagaios.Enquanto isso, os navios que retornavam à França não levavam apenas produtos de valor comercial, mas também indiozinhos para serem educados e depois se casarem com as filhas de seus transportadores. Alguns desses meninos silvícolas acabam sendo dados de presente ao rei francês, que sua vez os ofertava aos magnatas, nas festas para eles em seu palácio, quando a Coroa estava precisando de socorro financeiro. Com tanta movimentação para lá e para cá, os franceses se tornaram, cada vez mais, peritos na derrubada de árvores para encher os seus navios. Até o ano de 1560, eles tiveram trânsito livre no Rio de Janeiro. Isto porque a ocupação do país vinha sendo feita de forma lenta, em virtude da desproporção entre os seus efetivos humanos e as vastidões do território brasileiro. Havia também outras razões, notadamente de ordem econômica, não só quanto aos elevados custos dos investimentos na colonização, mas também no que dizia respeito às escolhas de regiões com melhores possibilidades de retorno, como as que se prestavam ao cultivo da cana-de-açúcar, a começar pelo Nordeste, da Bahia para cima, dali pulando para Sul – Santos e São Vicente -, a partir de onde iriam começar a exploração do planalto de Piratininga, onde foi assentada a cidade de São Paulo, sob as bênçãos dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Outra prioridade era a busca de jazidas de metais preciosos, que não sem razão pressentiram existir, mas que só foram encontradas ao final do século 17. Enfim, tais prioridades fizeram os portugueses esquecer o Rio de Janeiro por muito tempo. Os franceses os fariam mudar de idéia.

Em 1553, Tomé de Souza, primeiro governador-geral da Bahia, escreveu ao rei de Portugal aconselhando-o a enviar para a Guanabara “uma população honrada e boa, porque nesta costa não há rio em que entre os franceses senão neste, e tiram dele muita pimenta”.

Um pouco mais tarde, o padre José de Anchieta, pelo viés religioso, insurgiu-se contra a presença dos franceses no Rio de Janeiro, que haviam se afastado da religião católica, tornando-se selvagens: “Vivem

[os franceses]

conforme os índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles; pintam-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com as penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando os contrários, seguindo os ritos dos mesmos índios, e tomando novos nomes como eles, de maneira que não lhes falta mais do que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima”.

A reação de Lisboa demorou. Tanto que em 1555, o vice-almirante bretão – e cavaleiro de Malta -, Nicolau Durand de Villegaignon, pôde instalar-se sem problemas numa ilha do Rio de Janeiro, que os indígenas chamavam de Seregipe. (Hoje tem o seu nome, abriga a Escola Naval, e está colada ao aeroporto Santos Dumont). Ele chegou com dois navios e cerca de seiscentos homens, a maioria arrebanhada nas prisões de Paris e Rouen. Logo ao se instalar na ilha onde construiria uma fortaleza, Villegaignon denominou-a de Forte Coligny, em honra a seu protetor, o almirante da França Gaspar de Coligny. Sua expedição tinha um duplo propósito: encontrar um refúgio, longe da Europa, para os calvinistas, caso a intolerância religiosa os obrigasse à expatriação. Seria uma fuga dos conflitos provocados pela Reforma da Igreja, a partir do momento em que Lutero (1483-1546) nega a infabilidade do papa e funda o Protestantismo. Calvino (Jean Chauvin ou Caulvin – 1509-1564), teólogo francês residente na Suíça, cria uma doutrina que dá ênfase à supremacia das Escrituras na revelação da verdade, a onipresença de Deus, a pecaminosidade do homem, a salvação só para os eleitos e um rígido código moral. O católico Villegaignon, que depois de haver enchido a Europa e a África com o barulho de seus feitos, caíra em desgraça, converte-se ao calvinismo, buscando uma aliança com o já convertido almirante Gaspar de Coligny, comandante da marinha francesa, que deu apoio ao seu projeto de uma expedição ao Rio de Janeiro, onde poderia fundar uma França americana, com o nome de França Antártica – da qual se tornaria o vice-rei -, e com o Rio passando a se chamar Henriville, em homenagem ao rei Henrique II, que afinal era quem financiava aquela aventura.

Villegaignon, porém, misturou calvinistas e católicos em sua frota. E com ele veio o frade franciscano André Thevet, que rezou a primeira missa do Rio e aqui permaneceu por quatro meses. Sobre essa viagem, Thevet escreveu dois livros, Singularidades da França Antártica e Cosmografia Universal. Deve-se a ele a publicação em Paris, na Galeria dos Homens Ilustres -e com o título Lês vrais portraits -, da primeira estampa de um brasileiro, o morubixaba Cunhambebe, primeiro chefe supremo da Confederação dos Tamoios, fundada por Aimberê, e que, no ano de 1554, uniu várias tribos inimigas de Cabo Frio a São Vicente, e fez a terra tremer.

Thevet pintou Cunhambebe como um homem muito alto e forte, com cerca de dois metros de altura. O mais lendário guerreiro do Rio de Janeiro foi recebido com honras militares por Villegaignon (que o tratou como rei do Brasil), obrigando os  soldados a se vestirem com seus melhores trajes, e a ficarem compenetrados para não irritá-lo com risos e chacotas, nos momentos em que Cunhambebe (“sem nada a lhe cobrir as vergonhas”), caminhava agitado e falava em altos brados sobre os seus feitos, socando o peito e as pernas, e vangloriando-se de ter nas veias o sangue de mais de cinco mil inimigos, a maioria portugueses, que gostava de pegar desprevenidos em seus navios, dos quais saía com um canhão em cada ombro.

A hospitalidade de Villegaignon não era gratuita. Ele queria se preparar para enfrentar os portugueses, e precisava da orientação de Cunhambebe para a ocupação dos pontos estratégicos e construção de fortins em torno da baía de Guanabara.

De acordo com o relato do frei André Thevet, na temporada em que foi hóspede de Villegaignon o temível canibal Cunhambebe teve também seus momentos de tranquilidade e pacificação, quando procurava ouvir, compenetrado, as orações dos franceses: “Ele tinha tão grande prazer em nos ver rezando que se prostrava de joelhos e alçava as mãos aos céus, como fazíamos. E ficou tão interessado em conhecer nossas preces, que me pediu para ensinar-lhes algumas. Procurei então, com a ajuda de um escravo cristão, traduzir para a sua língua nossa oração dominical, além da saudação angelical e do sinal dos apóstolos, a fim de atrair esse grande rei e seus seguidores ao conhecimento de sua salvação e à admiração das obras de Deus”.

Também surpreendentes são as revelações daquele capuchinho quanto às ideias de Cunhambebe em relação ao sobrenatural, que Thevet transcreveu dando-lhes alguma coerência, procurando relacioná-las com as alegorias bíblicas da criação do mundo, do dilúvio e da força vingadora de Deus etc.

(Parêntesis para os fumantes, ex-fumantes e todos os que acham os que ainda fumam os seres mais desprezíveis da face da Terra: foi o bom franciscano André Thevet quem, no Rio de Janeiro, descobriu o tabaco, e o levou para a França. Mas, por um erro inexplicável, tal descoberta foi atribuída ao embaixador francês em Portugal à época, Jean de Nicot. Daí a palavra nicotina. Vem de Nicot).

Em 1557, Villegaignon escreveu a Calvino, pedindo-lhe o envio de ministros da Igreja reformada. Os reforços para a sua colônia, procedentes de Genebra e também da França, chegaram nesse mesmo ano, num navio comandado por Bois le Comte, sobrinho do vice-almirante bretão. Com essa segunda leva, desembarcaria no Rio de Janeiro um sapateiro que iria se revelar outro escritor viajante. Trata-se de Jean de Léry, autor de Viagem à terra do Brasil, contendo ataques violentos ao católico Thevet, e graves acusações à atuação de Villegaignon, que, ao juntar católicos e calvinistas em sua fortaleza, viu-se em meio a violentas discussões, numa reprodução da intolerância religiosa que vinha acontecendo na França, e da qual pensava ter fugido. Enquanto lá os conflitos recrudesciam, num crescendo que mais tarde culminaria no banho de sangue da Noite de São Bartolomeu, as querelas instauradas entre os seus comandados levaram Villegaignon a perder o controle da situação. Ele entrou em desespero. E matou três ministros calvinistas, jogando-os ao mar.

Testemunha destes episódios dramáticos, Jean de Léry chamou Villegaignon “o Caim da América”. Mas teve alguma coisa em comum com o franciscano André thevet: o olhar de espanto, quando não de condenação, para a nudez e a liberdade de costumes do “povo expulso do Gênesis”. No seu penoso regresso, quando a fome tomou conta de um navio sem víveres, em plena travessia do Atlântico, e todos os navegantes estiveram ao ponto de comerem uns aos outros, Léry iria concluir que havia mais virtudes na vida selvagem do que na civilização européia, a seu ver decepcionante, pelo excesso de luxo e frivolidades.

O que não faltou foi frustração no projeto da França Antártica. Os colonos de Villegaignon eram soldados que sonharam em desembarcar num lado do paraíso terrestre, onde seus compatriotas contrabandistas de madeira se sentiam tão à vontade, e isso por cerca de meio século. Despertaram em outro lugar, que mais parecia o inferno. Em vez da liberdade dos trópicos, do cio da terra, da natureza em festa, a férrea disciplina de Villegaignon, com toda a sua austeridade e rigor; trabalho duro no carregar de pedras e transporte de água do continente para a ilha; vida aquartelada; escravidão; cruéis punições para os intercursos carnais com as fogosas cunhãs.

Comprova o seu severo perfil, a decisão que tomou quando, em 1557, o seu sobrinho Bois le Comte chegou com os calvinistas. No meio deles vinham cindo mulheres, as primeiras brancas a pisarem o Rio de Janeiro. Preocupado com o alvoroço dos seus homens, que havia anos não viam um farfalhar de saias, apressou-se em escolher a dedo cinco felizardos os casou com as moças recém-chegadas. Os outros se revoltaram. Boa parte deles fugiu da fortaleza, em busca da vida ardente nas matas.

Villegaignon voltou à França em 1559, deixando Bois le Comte em seu lugar. Esperava voltar com reforços. Mas nunca mais se soube dele. Em 1560, o governador-geral Mem de Sá veio da Bahia, fortemente armado, para expulsar os que permaneciam no forte francês. Bois le Comte rendeu-se. E pegou o barco de volta ao Velho Mundo. Mas, outra vez, muitos de seus comandados preferiram ganhar o mato, para viver com os índios.

Conclusão: malfada para as ambições expansionistas francesas, a experiência de Villegaignon no Rio de Janeiro não foi, porém, uma viagem perdida para o reino das ideias. Tornou-se uma fonte de informações que o conhecimento convencional ignorava, abrindo as comportas do mundo da razão ao do instinto. Michel de Montaigne declarou, no seu ensaio sobre os canibais, que o havia escrito baseando-se no que ouviu de um seu criado, que estivera no Brasil com Villegaignon. O ilustre Montaigne não só confrontou as informações do seu empregado com as de alguns marinheiros e negociantes que também estiveram no Rio; ele leu os livros de Thevet e Léry, que levaram à França, cada um à sua maneira, visões descentralizadoras do mundo.

E foi ele, o controvertido oficial medalhado da marinha de Henrique II, quem fez o primeiro assentamento de europeus no Rio de Janeiro. Não chegou a fundar a cidade, que nasceria portuguesa em 1565, mas pôs-lhe um marco. Esse marco é a ilha que ficou com o seu nome. Os franceses que optaram pela vida selvagem se uniriam à Confederação dos Tamoios. Acabaram dizimados, junto com os índios confederados, pelos canhões portugueses, nas batalhas de 1565, quando, no dia 1º. de março daquele ano, Estácio de Sá fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e nas dos dias 19 e 20 de janeiro de 1567, sob o comando de Mem de Sá, que a conquistou definitivamente.

O general Mem de Sá transferiu a cidade – na verdade uma vila assentada no sopé do Pão de Açúcar – para o morro do Castelo, justificando assim a sua decisão:

“Escolhi um sítio que parecia mais conveniente para edificar nele a Cidade de São Sebastião o qual sítio era de um grande mato espesso cheio de muitas árvores grossas em que se levou assaz de trabalho em as cortar e a limpar o dito sítio e edificar uma cidade grande, cercada de muros por cima, com muitos baluartes e fortes cheios de artilharia. E fiz a igreja dos padres de Jesus, onde agora residem, telhada e bem concertada, e a sé de três naves, também telhada e bem concertada, fiz a casa da câmara sobradada, telhada e grande, a cadeia, as casas dos armazéns e para a fazenda de sua alteza sobradadas e telhadas e com varandas, dei ordem e favor com que fizessem muitas casas, telhadas e sobradadas…”

Quer dizer, instalada no ponto mais estratégico para o controle da entrada na baía de Guanabara, e cuja vista era simplesmente deslumbrante, a cidade começou como uma fortaleza medieval.

Anotações do livro “Era uma vez o Morro do Castelo”, de José Antônio Nonato e Núbia Melhem Santos:

“O forte de São Sebastião era considerado o castelo da cidade, motivo por que o Morro de São Januário ou do Descanso passou a se chamar Castelo”.
Aníbal Barreto

“Monte do Descanso, posteriormente conhecido por várias denominações, entre outras, da Sé, do Alto de São Sebastião, Baluarte da Sé, São Januário, Sé, Conselho, Colégio e Sé Velha – e finalmente do Castelo”.
Noronha Santos

 “As fronteiras do morro, onde moravam 600 pessoas – os fundadores que vieram com Estácio e Mem de Sá, jesuítas, índios catequizados, franceses e poucas mulheres – restringiam-se aos 184 mil metros quadrados da colina, situada na região delimitada hoje pelas ruas São José, Santa Luzia, México e Largo da Misericórdia”.
                                                                                              Sérgio Garcia

“Melhor de descer que de subir”. Assim Machado de Assis resume o questionamento do morro do ponto de vista urbano. Antes mesmo do final do século 16, quando a população da cidade ultrapassava os três mil habitantes, a população passou a procurar as partes planas e alagadiças, para a expansão da cidade pela várzea. Imaginemos o quanto de ciclópico teve esta obra, pelas dificuldades materiais da época, para o desaterro de barreiras e aterros de pântanos. Os moradores que passaram a se instalar teimosamente na planície legaram uma cidade de ruas sinuosas, estreitas – para se protegerem do calor -, mal calçadas, sujas.

“É que o Rio de Janeiro não foi edificado segundo o estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas. Ela sofreu, como todas as cidades espontâneas, o influxo do local em que se edificou”.
Lima Barreto

Em seu livro “Memórias da Rua do Ouvidor”, Joaquim Manuel de Macedo anotou:

“Primeiramente levantaram à beira do mar casas e choupanas com uma só linha, formando o que alguns anos mais tarde recebeu o nome de Rua da Misericórdia; em seguida foram adiantando suas rudes construções pela Praia de Nossa Senhora do Ó, que a mudar de denominação se foi chamando Lugar do Ferreiro da Polé, Praça do Carmo, Terreiro do Paço, Largo do Paço, e enfim Praça de D. Pedro II . [Hoje Praça Quinze, em homenagem ao dia do golpe militar que destituiu D. Pedro II, proclamando a República, 15 de novembro de 1889]. Da praia de Nossa Senhora do Ó (onde logo depois de 1567 um devoto erguera pequena capela com essa santa invocação), as casas e palhoças continuaram a levantar-se mais ou menos separadas umas das outras e ainda à beira do mar, e também em uma só linha, que muito em breve formaram a primitiva Rua Direita, que é desde 1870 a Rua Primeiro de Março. [Referência ao final da Guerra do Paraguai].

Tudo foi obra de 1568 a 1572, e não admira, porque as primeiras casas eram de construção muito ligeira e evidentemente provisória.

Mas em ano que ocorreu entre o de 1568 e o de 1572 alguns colonos abriram à pouca distância do começo da rua que se denominou Direita, uma entrada em ângulo reto com ela, e cada qual foi improvisando grosseiro ubi para si e para a sua família aos lados dessa aberta feita sobre areias e por entre mesquinha vegetação denunciadora de antigo domínio do mar.

E, curiosa, interessante, notável, notabilíssima ideia ou inspiração daqueles colonos portugueses tão bisonhos e tão sem malícia!… como aquela aberta ainda não era rua, e eles precisavam designá-la por algum nome,chamaram-na Desvio do Mar. Desvio!

Eis o berço da bonita, vaidosa e pimpona Rua do Ouvidor! […]

O Desvio teve por primeiros moradores gente pobre, no trabalho, na ativa; peões que exerciam misteres, operários, e um cirurgião que era barbeiro dos nobres.

Mas no ano de 1590 e sem intervenção nem audiência da Câmara Municipal, o Desvio do Mar por acordo geral dos colonos subiu ao grau honorífico de rua urbana com o nome de Aleixo Manoel […] nome masculino, feio, ingrato, peão sem raiz de fidalguia, nem carta de nobreza.

[…]

Aleixo Manoel, colono português, era cirurgião e também barbeiro, mas barbeiro só de fidalgos; morava no monte de S. Januário perto do colégio dos padres jesuítas; como porém poucos doentes tivesse, e ainda menos fidalgos a barbear, lembrou-se um dia de procurar fortuna, explorando a guerra.

Neste ponto minha tradição se aproveita de uma lúgubre página da história.

Como os índios Tamoios, irreconciliáveis e odientos inimigos dos portugueses, hostilizassem a estes constantemente, atacando e destruindo seus estabelecimentos rurais na capitania de s. Vicente, e ainda mais na do Rio de Janeiro, para nesta capitania levarem a ferro e fogo o extermínio a esta tribo funesta e indomável.

Aleixo Manoel alistou-se voluntário na coluna expedicionária fluminense, que foi comandada por Cristóvão de Barros.

A história guarda a lembrança da justificada, mas horrorosa, guerra: o incêndio devorou dezenas de aldeias de índios, e destes mais de dez mil foram mortos, mas de sete mil prisioneiros e reduzidos à escravidão, e os Tamoios que puderam escapar meteram-se pela floresta, emigrando para bem longe e para sempre.

Mas o que a história não diz, e a minha tradição informa, é que a tremenda expedição rendeu a Aleixo Manoel dois escravos tamoios, a quem ele generoso e a custo salvara da medonha hecatombe de uma horda apanhada de surpresa em sua aldeia, nas proximidades de Cabo Frio.

Os dois escravos eram um índio quase sexagenário e uma índia, sua neta, de três anos de idade; – um homem já a envelhecer, e uma menina a criar; mas para conseguir salvá-los da morte, Aleixo Manoel os tomou à sua conta”.

Joaquim Manuel de Macedo nos dá conta do final feliz dessa história, quando a menina, que se chamava Inês, aos 17 anos escapa de ser raptada por fidalgos libertinos e se casa com o seu senhor, que então se torna nome de uma rua, até o ano de 1659, quando perdeu a honraria para o Padre Homem da Costa, que também de glória efêmera, pois daria lugar à homenagem, e dessa vez permanente, a um seu morador mais ilustre, o juiz-ouvidor Francisco Berquó da Silveira. Nas palavras de Joaquim Manuel de Macedo, a Rua do Ouvidor foi a mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica de todas as ruas do Rio de Janeiro.

E Luiz Edmundo: “Foram os franceses do tempo do senhor Pedro I, saiba-se, com as suas lojas de novidades, as suas costureiras, os seus cabeleireiros e umas instalações completamente novas para nós, feitas à moda de Paris, que criaram a elegância de certas casas de comércio da Rua do Ouvidor. Quando eles aqui chegaram, o varejo local, atrasado e mofino, criou-lhes embaraços de toda ordem, moveu-lhes uma guerra tremenda; guerra de inveja, de ciúme e de má vontade”. Mas segundo Luiz Edmundo, o povo lhes dava preferência. As lojas da Rua do Ouvidor tinham nomes assim: Notre Dame de Paris, Tour Eiffel, Carnaval de Venise, Palais Royal, L’Opera.  Comparada por um escritor francês à parisiense Rue Vivienne, pela Rua do Ouvidor desfilou todo mundo que era notícia: Ataulfo de Paiva, “engomado e risonho, uma dedada de pó de arroz na ponta do nariz.” João do Rio, “ainda não bafejado pela glória, mas já gorduchote, num veston cor-de-flor-de-alecrim, mamando um charuto de 22 centímetros. As senhoras nela desfilavam de saias compridas. “Não há pintura de olhos, de lábios, nem de rosto. As mulheres cariocas são figuras de marfim ou cera, visões maceradas, evadidas de um cemitério. Quando passam em bando lembram uma procissão de cadáveres. Diz-se pelas igrejas que é pecado pintar o rosto, que Nossa Senhora não se pintava”. E por aí vai o corrosivo Luiz Edmundo.

Uma pausa para dois dedos da prosa amena de… João do Rio!

“Era às seis da tarde, defronte do mar. Já o sol morrera e os espaços eram pálidos e azuis. As linhas da cidade se adoçavam na claridade de opala da tarde maravilhosa. Ao longe, a bruma envolvia as fortalezas, escalava os céus, cortava o horizonte numa longa barra cor de malva e, emergindo dessa agonia de cores, mais negros ou mais vagos, os montes, o Pão de Açúcar, São Bento, o Castelo apareciam num tranquilo esplendor”.

Por falar no Castelo:

“Numerosos, acarretando prejuízos m  ateriais e fazendo vítimas, foram os desmoronamentos de se deram nesse morro, a partir de 1756, podendo-se registrar dentre os maiores, os de 1759, 1811, 1833, 1845, 1858, 1860, 1872 e 1896. As célebres águas do monte, em 1811, causaram muitas vítimas, com o desabamento de casa do morro e das ruas adjacentes […]
Noronha Santos

No começo do século 20, o morro do Castelo começou a ser derrubado, em função de um urbanismo inspirado na remodelação de Paris pelo barão Haussmann. Foi posto abaixo definitivamente nos anos de 1920 e 1921, para servir de aterro do mar na área em que se construiria o aeroporto Santos Dumont. Mas voltemos no tempo.

O tempo do ouro

O ouro que os portugueses procuravam no Brasil desde 1500 foi finalmente achado em 1695, nas Minas Gerais, causando o maior alvoroço nos dois lados do Atlântico. Portugal entrou na corrida, aumentando o movimento dos barcos e incrementando o tráfico de escravos para os garimpos. No começo, levava três meses para o ouro chegar ao porto do Rio, percorrendo um longo caminho, em lombo de burro, que ia das minas a Guaratinguetá, em São Paulo, e de lá para Paraty, onde a carga era embarcada em navios que completavam o percurso, sujeitos aos ataques dos saqueadores, sempre a postos também na baía da Ilha Grande e Angra dos Reis.

Em 1698, Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias, o caçador de esmeraldas, teve a ideia de abrir uma estrada que ligasse a região mineradora ao Rio, para reduzir o tempo do tempo do transporte do ouro a quinze dias. Aprovado pelo rei de Portugal, o caminho novo foi concluído em 18 meses. E o Rio passou a ser a rota do escoamento dos metais preciosos, suplantando a Bahia e algumas vilas de São Paulo como centro de distribuição de mercadorias e de pessoas (escravos, principalmente) para as minas, tornando-se a mais florescente colônia portuguesa, chamada de A Praça do Rei, cuja administração era paga a peso de ouro. E foi então que o Rio passou a viver uma era de cobiça, fogo, tensão e terror.

Em 1710 aconteceu a invasão francesa comandada por Jean-François Duclerc, que chegou com cinco navios e mil homens. Atacado a pedradas e azeite quente por estudantes e donas de casa na Rua São José, acabou preso e confinado numa casa da Rua da Quitanda, onde foi assassinado por quatro encapuzados.

Uma segunda invasão dos franceses em busca do ouro dos portugueses aconteceria em 1711, quando o general René Duguay-Trouin, comandando uma esquadra de 18 navios, com cerca de 6 mil homens, 700 canhões e 10 morteiros, fez o primeiro sequestro do Rio, o da própria cidade, que tomou de refém por 50 dias, enquanto aguardava o pagamento do resgate para devolvê-la a seus habitantes. Foi o episódio mais dramático de toda a era colonial lusitana.

O tempo dos vice-reis

  A efervescência da corrida ao ouro fez a população do Rio crescer, chegando aos 50 mil habitantes em 1763, o ano da transferência da capital do país da Bahia para cá. Era o início a um novo tempo: o dos vice-reis.  Foram eles: 1. Conde da Cunha. 2. Conde de Azambuja. 3. Dom Luís d’Almeida Portugal, Marquês do Lavradio. 4. Luis de Vasconcelos e Souza. 5. Conde de Resende. 6. D. Fernando Portugal. 7. Conde dos Arcos, de governo rápido, que se destacou pelos preparativos da recepção à corte de D. João VI, em 1808. Os mais celebrados, porém, foram o Marquês do Lavradio, o primeiro a pensar em alargar as ruas e Luis de Vasconcelos, que se deslumbrou com o quadro maravilhoso da natureza, a lhe oferecer um painel de sonho, mas se horrorizou com “a mancha brutal na paisagem radiosa”, no dizer de outro Luis, o Edmundo. As casas eram feias. As ruas, sujas. As águas, fétidas. O conjunto exasperava. Para piorar, Luis Vasconcelos constatou que os portugueses não tinham vindo para fazer um país, mas para se enriquecerem rapidamente, nem que para isso fosse preciso arrasar a terra.

A situação deplorável do Rio não o levou a tapar o nariz e dar-lhe as costas, como fizeram quase todos os outros, que imploravam ao rei suas transferências de cidade. Pôs-se a andar, com planos de embelezamento do espaço urbano, abertura de avenidas e saneamento de suas condições insalubres. Jovem, galante, dinâmico e humanitário, Luis de Vasconcelos condoeu-se com a sorte dos escravos, que eram castigados pelos seus senhores com exagerado rigor, e proibiu a aplicação da justiça a domicílio, passando-a à alçada do Estado. Suas andanças o levaram à pestilenta Lagoa do Boqueirão da Ajuda, que mandou aterrar, para a construção do Passeio Público. O aterro foi confiado ao Mestre Valentim (Valentim da Fonseca e Silva), que arborizou toda a área, fez um jardim, no qual colocou pavilhões fechados, com murais e muitas obras de arte, entre elas a Fonte dos Amores.

Luis de Vasconcelos foi sucedido pelo Conde de Resende, que ficou com fama de mau, por ter mandado matar Tiradentes (em 21 de abril de 1792), por ordens do rei, contra as quais ele nada podia fazer.

O tempo dos vice-reis durou de 1763 a 1808.

1808!

Uma história que vem sendo recontada à exaustão, desde 2008. E não sem motivo.

“O desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro, aos 8 de março de 1808, foi mais do que uma cerimônia oficial: foi uma festa popular. Os habitantes da capital brasileira corresponderam bizarramente às ordens do vice-rei conde dos Arcos e saudaram o príncipe-regente, não simplesmente como o estipulavam os editais, respeitosa e carinhosamente, mas com a mais tocante efusão. Dom João pôde facilmente divisar a satisfação, a reverência e o amor que animavam os seus súditos transatlânticos nos semblantes daqueles que em aglomeração compacta se alinhavam desde a rampa do cais até a sé, que então era a igreja do Rosário […] Não era para o Brasil menos fundados os motivos de júbilo…”

Oliveira Lima (D. João VI no Brasil, 3ª. edição, Editora Topbooks, 1996).

A história do país passaria a ser contada assim: antes e depois desse dia.

E tudo (ou quase tudo) aconteceu no Rio:

1815 – D. João VI eleva o Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves.

1816 – Vinda da Missão Artística Francesa, de tanta influência na arquitetura da cidade.

1818 – Passados dois anos da morte de D. Maria I, a Rainha Louca, D. João VI é aclamado rei.

1820 – Ele inaugura a Praça do Comércio – onde hoje é a Casa França Brasil -, que deu origem à Associação Comercial do Rio de Janeiro.

1821 – Portugal exige sua volta, sob pena de perder o trono. D. João VI retorna a Lisboa, deixando seu filho Pedro como príncipe regente.

1822 – Independência (cujo grito, porém, foi dado por D. Pedro I em São Paulo, às margens do Ipiranga, no dia 7 de setembro; mas sua aclamação como Imperador do Brasil aconteceu no Rio de Janeiro, em 12 de outubro daquele ano).

1831 – no dia 7 de abril, D. Pedro I abdica do trono a favor de seu filho Pedro II, então com apenas 5 anos, e volta a Portugal (de onde saíra aos 9 anos), como duque de Bragança.

1888 – Abolição da Escravatura, pela princesa bisneta de D. João VI.

1889 – Proclamação da República.  

No século 20, a cidade seria submetida a uma série de transformações, nesta ordem:

1. 1903-1906 – Abertura da Avenida Central que, em 1912, com a morte do Barão do Rio Branco, passou a ter o nome dele. Extensão: 1.800m. Largura: 33m. Desapropriações: mais de 600 prédios.

“No processo de construção da Avenida Central, por não ter havido um plano geral de conjunto, houve como consequência a crise habitacional, em parte resolvida precariamente com o adensamento das favelas. As construções proletárias da ocasião nem de longe correspondiam às necessidades da população crescente da cidade e dos desalojados”.
Donato Mello Júnior

2. 1920-1922 – Derrubada do Castelo, para os aterros que se espraiaram do cais do Calabouço à Praça Paris. E a fazer parte de um dos planos mais equivocados da cidade – que resultou na Esplanada do Castelo – a contrariar o seu próprio propósito: remodelação, extensão e embelezamento.

3. 1940 – Avenida Presidente Vargas. Extensão: quatro km. Mais de 600 casas foram abaixo. E com elas a Praça Onze, além de um corte no Campo de Santana e a perda da igreja de São Pedro dos Clérigos. E mais: a igreja da Candelária ficava de costas para a avenida. Tentaram por todos os meios invertê-la. Não conseguiram. Os poderes do Papa foram mais fortes do que os do presidente Vargas.

4. Derrubada do morro de Santo Antônio, em função do plano urbanístico para a realização do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, em 1955. A catedral da Avenida Chile foi construída como parte da negociação para a derrubada daquele morro.

Disso tudo, ficou uma arquitetura que não apresenta uma harmonia do ponto de vista estético, mas que oferece uma visão abrangente da história do Rio de Janeiro, situando as três principais fases dos poderes que a marcaram. Assim: Poder colonial – Paço Imperial. Do Império – Campo de Santana. Republicano: Cinelândia.

Com a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, a cidade tornou-se estado – o estado da Guanabara, que em 15 de março de 1985 deixou de existir, com o Rio voltando a ser capital. Estadual.

Próximos capítulos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, quando esta cidade voltará a ser capital de outro império – o midiático.  

Luzes verdes, sonhos dourados

Conferência proferida na Uneb – Universidade do Estado da Bahia, na cidade de Alagoinhas (campus 02), em 17.12.09

Ou: quando as marcas culturais da cidade de Alagoinhas eram sinalizadas pelos letreiros luminosos nas fachadas das lojas na Praça J. J. Seabra – a das árvores podadas artisticamente em forma de pássaros -, seguindo pela Rua Coronel Anísio Cardoso, cujo movimento intensificava-se à noite com a chegada na Estação da Leste de um trem chamado Marta Rocha, que trazia os passageiros mais elegantes e os jornais da capital, e depois das sessões do Cine Azi, onde toda uma geração aprendeu a beijar, a dizer “Ai lóvi iu”, e a andar como se tivesse acabado de apear do cavalo do cow-boy. E a ficar horas diante de um espelho, caprichando num pimpão igual ao do Elvis Presley – com a untuosa ajuda da brilhantina Glostora -, cantando “Don’t leave me now”, como no filme “O prisioneiro do amor”, e…

Era uma vez um menino que nunca tinha visto uma cidade tão iluminada.

Ele estava de passagem, com os pais. Vinham de longe e mais longe iriam, para pagar uma promessa a Nossa Senhora das Candeias. Pernoitariam ali mesmo, na Anísio Cardoso, e no Alagoinhas Hotel, do seu hospitaleiro tio Zica. “Que luzes bonitas!”, exclamou o menino. “E são verdes!” Sua mãe, dona Durvalice, o repreendeu: “Não se admire demais do que está vendo, não. Para não dizerem que você é um tabaréu”.

Mas era. Daí o seu deslumbramento. Naquele anoitecer, a cidade iluminava-se diante dos seus olhos como num conto de fadas. Ou como na “viagem inventada no feliz” de um outro menino, o do conto “As margens da alegria”, de João Guimarães Rosa, que só iria ler muito mais adiante, na idade adulta, com o encantamento de quem se reencontra com a criança que havia sido um dia.

As luzes davam uma aura de sonho à cidade onde seus tios José, o Zica, e Antônio se tornaram prósperos hoteleiros, na era dos caixeiros-viajantes. O hotel do segundo tio se chamava Brasil. E ficava a poucos passos do outro. Num 2 de fevereiro, dia da festa de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, então um distrito de Inhambupe e hoje a cidade de Sátiro Dias, eles reapareceram na terra em que haviam nascido. Chegaram num automóvel empoeirado, vestidos de terno branco e acompanhados por suas elegantíssimas esposas chamadas Nerina e Nair. Imagine o alvoroço do lugar com a repentina chegada daqueles dois filhos pródigos. Não seria exagero compará-lo ao provocado por um prefeito de Nova York de origem italiana, chamado La Guardia, no dia em que visitou a sua aldeia natal, na Sicília. “Eu carreguei você no meu ombro”, diziam-lhe emocionadas senhoras, que de bom grado voltariam a carregá-lo, mas num andor, se seus braços ainda o permitissem. Foi mais ou menos assim o que aconteceu no regresso dos ilustres filhos do Junco. Até o pai deles (chamava-se Adelino), que tanto relutara em permitir que fossem embora, ainda jovenzinhos, agora, no papel do mais abençoado dos patriarcas, desmanchava-se em mesuras em meio ao entra-e-sai na sala de visitas de sua senhorial “casa da rua”, cuja porta e janelas só se abriam nos dias de missa e santas missões. Era como se agora ele acabasse de ser ungido a um novo poder: o de pai de dois filhos bem sucedidos num mundo infinitamente mais civilizado. E esse mundo tinha um nome que a partir daquele dia passaria a ser pronunciado de boca cheia: Alagoinhas! A nova Meca daqueles sertanejos, situada a 15 léguas de distância, na linha divisória entre o sertão e o recôncavo. Tão perto, quão longe. A estrada ainda era de terra, sujeita aos atoleiros, e veículos motorizados naquelas bandas eram raridades.

Voltemos ao retorno vitorioso aos seus pagos daqueles endomingados cavalheiros, que assim fariam o outrora austero senhor que agora os recepcionava, desmanchando-se em sorrisos, esquecer a consumição do dia em que aqueles seus dois filhos tentaram escapar do domínio patriarcal, o que seria descoberto um pouco antes do romper da aurora, quando os chamou – “Zica, Tonho, acordem para rezar a ladainha” -, e não houve resposta. Então pulou da cama e pôs toda a sua numerosa prole em ação, na busca dos desaparecidos, em terreiros e quintais, casa de farinha, curral, paiol, pastos. E nada. Por fim só restou a todos admitir que eles haviam fugido. O desapontamento diante de uma situação que parecia irremediável não impediu aquele pai de raciocinar com rapidez. Mais que depressa mandou chamar o seu vaqueiro Alvino, que imediatamente dispararia a galope pelas sete léguas da estrada que levava à cidade de Inhambupe, até encontrar as duas rezes desgarradas, laçá-las e trazê-las de volta ao rebanho. Cumprida com destreza, a missão do vaqueiro impediu os dois fugitivos de pegarem o atalho para um lugar chamado Serraria, destino, afinal, que seria adiado, até o dia em que o pai desta história finalmente se rendesse, ainda que de coração partido, aos constantes apelos para deixá-los ir embora, e que Deus os levasse, antes que o Diabo os carregasse.

Portanto, não precisaram fugir uma segunda vez. Nesta, partiram com o consentimento de um pai vencido pelo cansaço ou que afinal sucumbira à incontrolável determinação daqueles dois filhos de romperem os laços que os prendiam à sua autoridade. Com o passar do tempo, o Junco os esquecera. Pouco ou nada se sabia deles: onde estavam, o que faziam, como viviam. E agora eles davam os ares de suas graças, com seus modos civilizados, cada qual todo alinhado, bem falante, e belamente acompanhado. Embora também originárias de um remoto lugar chamado Serraria, onde o destino os levara a conhecê-las, as duas beldades pareciam modelos saídos de um figurino. E, além de bonitas, eram alegres, simpáticas, e muito educadas. Bem nascidas, estudaram na capital do estado, e só pela boa educação que haviam recebido poder-se-ia imaginar o cabedal que agregavam. A assinatura do pai delas, por exemplo, era um aval irrecusável em qualquer agência bancária de Alagoinhas, cidade cuja influência comercial se estendia por vários municípios da região. Logo, viagem “inventada no feliz” mesmo foi a dos intrépidos Zica e Tonho. Parecia até que assim fora escrito nas estrelas que iluminaram as suas noites de sonho no Junco: que um dia eles iriam chegar a Alagoinhas, onde seriam muito felizes. Não iria faltar quem lhes seguisse os rastros, a começar pelos seus próprios irmãos Edgar, Manoelito (o Louro), Dinalva, Marieta, Zizi…

Em 1954, o menino do começo desta história acabaria sendo levado pelos seus tios Zica e Nerina, para estudar no ginásio do professor Carlos Cunha, uma bela construção com um amplo e bem arborizado pátio interno, dotado de áreas para a prática de esportes e para a realização de festas, como a da laranja, uma das mais concorridas da cidade. As salas de aula tinham janelas que se escancaravam para um paraíso ecológico. Todos os caminhos do Ginásio de Alagoinhas passavam por laranjais, cujas cercas eram um convite a um pulo, ainda que isso pudesse significar três dias de suspensão, além da obrigatoriedade de se escrever quinhentas vezes uma mesma frase, em forma exaustiva de compromisso de que o invasor de sítios alheios jamais voltaria a cometer tal delito.

Além do olho de lince de um vigia (o senhor Teonílio), e das diligências dos bedéis (senhor Emiliano, dona Maria e dona Deográcia, a pontualíssima batedora do sino para a entrada e saída das salas), das ordens unidas e aulas de educação física, o ginásio do professor Carlos Cunha impunha ainda os rigores das longas caminhadas no trajeto de casa até ele, para quem não vivia nas suas circunvizinhanças, ou seja, ali pelas proximidades do hospital Dantas Bião, depois do qual uma singela estradinha de areia estendia-se até a Lagoa do Frade. Aqui, vale o registro de que em Alagoinhas, na década de 1950, não havia nenhuma linha urbana de ônibus; contava-se nos dedos o número de automóveis; só uns poucos felizardos possuíam bicicleta; e menos ainda os que invejavelmente desfilavam montados numa lambreta, depois que tal veículo motorizado virou sonho de consumo dos rapazes que se imaginavam na pele de John Herbert no filme “Alegria de viver”. Ou seria na de James Dean, em “Juventude transviada”?

Mas inveja mesmo, de fulminar a rapaziada, quem provocava era o ginasiano Valdemar Paraguassú, ao eletrizar o salão do Clube Social, quando a orquestra Os Turunas, comandada pelo clarinetista Benigno, atacava de rock and roll, e ele, com seu balanço inimitável, mais parecia um personagem do filme Rock around the clock, causando espanto a uma cidade que ainda se movia a passos de bolero (dois pra lá, dois pra cá). Aliás, naqueles anos também de rumba, chá-cha-chá, samba-canção, valsa, baião etc., Alagoinhas fazia bonito nos salões também ao ritmo da Filarmônica da Euterpe, principalmente no carnaval e na micareta. Folia foi o que nunca faltou aqui.

Não se deduza que tudo nesta cidade se resumia aos bailes e ao roubo de laranjas nas horas vagas. Havia ainda o alvoroço no Parque à saída das meninas do Santíssimo Sacramento – que mistérios escondiam as mimosas alunas do colégio das freiras? -, um piano ao cair da tarde na Rádio Emissora, a voz inigualável do locutor F. R. Dias, Glenn Miller tocando “Moonligth serenade” no Serviço de Alto-Falantes, nas noites de luar, o jornal do doutor Walter Robatto e o da LBV (Legião da Boa Vontade), dirigido por um funcionário do Banco do Brasil, o senhor Lima, o Rotary e o Lyons Clube, o Tiro de Guerra 110 (“Escola, sentido”!), os maçons, os espíritas, as missas no convento dos capuchinhos e na igreja de Santo Antônio, as procissões, as festas juninas. Um dia as moças da cidade passaram a se postar às janelas, inebriadas ante o desfile das caminhonetes carregadas de possíveis bons partidos, identificados pelos capacetes com a logomarca da Petrobras na frente, quase tão emblemática quanto o dístico “Ordem e progresso” da bandeira nacional. E ficariam ainda mais assanhadas quando geólogos canadenses ocuparam a mais bela casa da Praça Ruy Barbosa. Encarregados de detectar a existência de petróleo por aqui, todo fim de tarde eles podiam ser vistos bebendo gim na Sorveteria Chic, enquanto apreciavam o movimento da Rua Coronel Anísio Cardoso. À noite iam ao cinema, pois, para eles, não havia muito mais a fazer. Mas tinha de acontecer. Um dia voltariam para o Canadá, levando as garotas mais cobiçadas do Parque.

Conquanto, como admite agora o alagoinhense Valdemar Paraguassú, a vida cultural de Alagoinhas fosse limitada, esta cidade parecia uma metrópole para quem vinha de um lugar sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, e que aqui, além de tudo isso, iria encontrar livros e livros às mãos cheias: na estante do grêmio do ginásio, nas bibliotecas da Prefeitura e do IBGE, nas casas do professor Carloman Carlos Borges e do doutor juiz (e poeta) Eurico Alves Boaventura, além dos que podia adquirir na Livraria São Jorge, do saudoso Teófilo Maciel. Sem esquecer os romances que sua tia Nerina recebia pelo correio, a crônica de Rachel de Queirós e os Arquivos Implacáveis de João Condé na revista O Cruzeiro, que seu tio Zica levava para casa toda semana. Portanto, na culturalmente limitada Alagoinhas daquele tempo era possível encontrar-se estímulos para a leitura e a criação literária. No ginásio, o jornal mural criado por Kerdoval Macedo oferecia espaço para a publicação de pequenos textos, enquanto que outros mais longos vinham à luz nas páginas do bravo “Avante”, cuja redação era composta por Josival Fagundes, Aristóteles Freitas Costa, José Carlos Fiscina, e o locutor que vos escreve, que nele publicaria os seus primeiros rabiscos em prosa e poesia. E do jornalzinho do ginásio chegaria às páginas mais públicas do “Alagoinhas Jornal”, que saía uma vez por mês e era vendido na banca da Praça J. J. Seabra, e também por assinatura.

E era no jornal do cirurgião-dentista Walter Robatto que morava o perigo. Uma diatribe publicada ali contra o aumento da mensalidade do ginásio por pouco não custou a expulsão do articulista, que vinha a ser o mesmo que agora conta como foi. Por causa de uma expressão maliciosa, “a casa grande do professor Carlos Cunha”, o autor da brincadeira foi chamado às falas. Mal contendo sua indignação, no seu habitual tom de voz manso, educado, o dono do ginásio perguntou:

– O senhor sabe o que significa isto, não sabe?

– Seu ginásio é uma casa comprida, portanto grande. Foi isso o que eu quis dizer – respondeu-lhe o aluno emparedado.

– Sabe o que significa a palavra rapace? – continuou o professor Carlos Cunha, sempre em sereníssimo tom de voz. – O que o senhor está me dizendo é a mesma coisa que eu tivesse escrito a seu respeito chamando-o de rapace, que significa rapinante, e depois alegasse que o que queria mesmo era chamá-lo de rapaz. Logo, ao usar o título do livro de Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”, para definir o meu ginásio, o senhor estava me chamando de senhor de engenho escravocrata.

Ele esticou o braço e puxou uma gaveta, da qual retirou a ficha do pálido aluno à sua frente, que em sua defesa insistia no argumento da equivalência casa grande – grande casa, o que não iria colar, jamais.

– Só não vou lhe expulsar porque suas notas são boas. Mesmo assim, o senhor fica suspenso por três dias. E também exijo uma retratação, no mesmo jornal.

Ufa! Que lição para o escriba-aprendiz. Imagine o desastre que seria uma expulsão daquele ginásio, já que não havia outro na cidade. Olhando por esse ângulo, a pena reduzida a uma suspensão de três dias não era o fim do mundo. E era até menos vergonhosa do que ter de se retratar publicamente. Significava uma pausa para refletir sobre as margens da alegria de escrever. “Le parole sono pietre”, diria seu colega e amigo ítalo-alagoinhense José Carlos Fiscina, o seresteiro que gostava de cantar “Mamma son tanto felice”, para embalar os sonhos das meninas internadas no colégio das freiras. Uma opinião por escrito tinha muito mais riscos do que escrever as cartas dos apaixonados analfabetos da sua terra, como havia feito no seu tempo de escola rural, quando era recompensado com deliciosos direitos autorais, pagos em guloseimas, nos dias de feira, e não com punições, pensava aquele que acabava de perder sua inocência em relação à liberdade de expressão.

O curioso era que poderia ter sido expulso do ginásio por fazer uso de uma expressão aprendida nele (mas empregada contra ele, na abalizada avaliação do seu proprietário), e ao próprio aluno significando isto um aprendizado do manejo com as palavras. Um exercício de escrita, enfim, entre tantos para os quais professores daquele mesmíssimo ginásio não lhe poupavam incentivos. E isto desde o exame de admissão, quando a bela Claudionora – que ficava ainda mais encantadora quando cantava Angelitos negros nas solenidades realizadas no Salão Nobre -, cravou uma belíssima nota dez na prova de redação de um certo aluno egresso da Escola Rural de Sátiro Dias, e que assim iria à forra da tal de matemática, da qual passaria raspando, com uma salvadora, para não dizer misericordiosa, nota mínima! Uma goleada de 10 a 5 das letras sobre os números. Como se aquele exame de admissão ao Ginásio de Alagoinhas já lhe pudesse servir também de teste vocacional.

Quatro tipos inesquecíveis e um destino

1. Primeiro, recordo a figura de um sujeito esquisitão que apareceu em Alagoinhas num dia qualquer, trajado como quem ia a uma missa solene. Com toda probabilidade, o estranho transeunte havia desembarcado na Estação da Leste, ou seja, da Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro. Devia até ter chegado no “Marta Rocha”, o trem que ganhara esse nome, na boca do povo, por ser o mais bonito de todos que circulavam de Salvador para Alagoinhas e vice-versa. Seja lá qual tenha sido o meio de transporte que o trouxera, sua presença só iria ser notada no momento em que ele atravessou a Praça J. J. Seabra em uma hora de pouco movimento, sem cumprimentar ninguém nem ser cumprimentado.

Seria aquele estranho personagem um caixeiro-viajante? – perguntavam-se os hoteleiros, cada qual ansiando, secretamente, por merecer a primazia da hospedagem. Não demorou muito para todos o perderem de vista, ao dobrar uma esquina. Mais tarde se saberia que ele tinha vindo do Rio, de mala e cuia, para passar a morar aqui, junto a seus familiares, originários de Sergipe.

Isso dava asas às confabulações: por que o distinto cavalheiro trocava a efervescência da capital federal pela vida pacata de uma cidade do interior baiano? Coisa boa não devia ter aprontado no Rio de Janeiro. Vai ver era um comunista, em busca de refúgio num lugar em que a polícia nem sonhasse onde ficava.

Mas não. Naquele ano de 1957, em plena era JK, respirava-se os bons ares da liberdade política. Tivesse ou não um passado nebuloso, o homem misterioso que, ao chegar, provocava interrogações, tinha em seu destino um emprego no único ginásio da cidade. Era um professor de Geografia, que surpreenderia os seus alunos pela intimidade com que falava de serras como a do Mar, da Mantiqueira, dos Órgãos, e do Pico da Bandeira. Aos poucos, revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Cada vez mais surpreendente, esse professor! Não fiquei lhe devendo apenas a descoberta de rios, lagos, mares, continentes, capitais e países do mundo. Nem lhe sou grato apenas pelo seu esforço para que eu não fosse derrubado, numa prova final, por equações e figuras geométricas. Mais que tudo, devo-lhe a descoberta da moderna prosa brasileira, no que ele se empenhou com um prazer inenarrável, fora das salas de aula, além de me haver introduzido à arte da oratória, quando me ajudou a escrever um discurso. Foi ele quem me fez ler Jorge Amado, ao me emprestar o “Mar morto”, que devorei numa noite, arrebatado por aquela história da vida e do amor no mar, cujo texto parecia uma versão contemporânea da poesia de Castro Alves, o que até então eu queria ser, quando crescesse – até porque o nosso mais querido poeta era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres. Depois, fui apresentado aos “Capitães de areia”, e, na sequência, a “Angústia”, de Graciliano Ramos, e aí já me vi no centro de um poderoso ciclo das nossas letras, o dos romancistas nordestinos da década de 1930, os que efetivamente puseram em prática o ideário da Semana de Arte Moderna, capitaneada pelos paulistas Mário e Oswald de Andrade em 1922, e que propugnava um rompimento literário brasileiro da norma lusitana.

Em resumo, o sujeito esquisitão procedente do Rio de Janeiro chegara a Alagoinhas cheio de novidades. Seu nome: Carloman Carlos Borges. Trata-se de um homem de letras que se tornou psicanalista, e que hoje vive em São Gonçalo dos Campos. E o melhor desta história: com mais de meio século de magistério, o doutor Carloman Carlos Borges continua lecionando Matemática na Universidade Estadual de Feira de Santana, certamente com o mesmo prazer com que, numa noite estrelada de Alagoinhas, em pleno impacto da viagem sideral do Sputnik, olhou para o céu, e, em plena Praça J. J. Seabra deu uma aula sobre a importância das viagens espaciais. Que seja infinita a memória de Alagoinhas daquele mestre extra-classe de múltiplas disciplinas, no ano de 1957.

2. Meu segundo tipo inesquecível de Alagoinhas foi o professor Artur. Ou, por extenso, Artur Pereira Oliveira (obrigado, Valdemar Paraguassú, por ainda se lembrar do sobrenome dele, como do veterinário Hernani Martinelli, que ensinava Inglês; da sua mulher, Diva Martinelli, a professora de Francês; do professor Mário Rocha, que chamávamos de Sputnik, por seu andar frenético, agitando os braços, cuja lembrança puxa outra: a do irmão dele, João Rocha, que seria assassinado pela ditadura militar, ao regressar de Cuba; do professor de Latim, o ex-padre Luís “Pancinha”; e do quanto a beleza da professora Claudionora deixava a mocidade louca).

Agora, memorável mesmo era a sensibilidade literária do professor Artur. Um dia ele passou um dever de casa: fazer uma redação sobre Alagoinhas. Um aluno deu asas à imaginação e, num arroubo juvenil, achando-se abençoado pelas musas, e sentindo nos dedos o borbulhar do gênio, escreveu um longo poema, no qual fazia um roteiro sentimental de ruas, praças, bairros, igrejas, fauna, flora, enfim, tudo o que os seus olhos viam na cidade. E o entregou rigorosamente no prazo. Mas como o professor recolheu todos os trabalhos para lê-los em casa, a espera da avaliação o fez penar em torturante ansiedade. Felizmente na aula seguinte não aconteceu o que ele temia: ter que ler o seu poema em voz alta e morrer de vergonha. O professor Artur distribuiu notas e elogios para todos, dizendo-se, porém, surpreso com o aluno que fez o seu dever de casa em versos. E o próprio professor os leu. Imagine a dimensão do estímulo literário que aquele seu gesto simbolizava.

E não ficou nisso. Recordo agora o dia em que ele entrou na sala com o jornal “A Tarde” debaixo do braço. E foi logo anunciando que o assunto da sua aula seria uma crônica publicada no dia anterior, por considerá-la condizente com a sua disciplina, e também de interesse público. Título: “O menino de Alagoinhas”. E leu-a, com a voz embargada, visivelmente emocionado.

Tratava-se da história de um menino que tivera suas pernas mutiladas por um trem, enquanto caminhava pelos trilhos da estação do São Francisco para a da Leste. Traumatizada com o acidente, a cidade se dividira entre os que achavam que para o acidentado teria sido preferível a morte ao sofrimento de sobreviver sem as duas pernas; e os que viam nesse sentimento, por mais piedoso que pudesse parecer, uma crueldade tão chocante quanto a trágica mutilação sofrida pelo menino. A tormentosa discussão acabara repercutindo numa das colunas mais lidas do jornal “A Tarde”, graças à carta de um atônito leitor de Alagoinhas ao seu titular, um célebre cronista chamado Adroaldo Ribeiro Costa (tio do hoje exímio contista Aramis Ribeiro Costa), rogando-lhe que escrevesse uma crônica que trouxesse alguma luz ao conflito das opiniões. A carta impressionara o cronista, a ponto de ceder o seu espaço para ela, na íntegra, sem tirar nem por uma única vírgula. Adicionara-lhe apenas uma linha de introdução, explicando que a recebera de um menino de Alagoinhas, e que fazia dela a sua crônica daquele dia, pois falava por si mesma e dispensava comentários. Para a glória do professor Artur, o menino cronista por um dia no mais lido jornal do estado era seu aluno.

Recordo-o ainda a chamar o tal aluno para uma conversa particular, depois da aula, quando então lhe recomendou que seguisse o caminho da prosa e não o da poesia. Foi como se naquele instante o professor Artur Pereira Oliveira estivesse selando um destino.

3. Agora uma sombra amiga passeia com minha alma de confidências por escuras ruas do passado, não para esquecer a longa noite do tempo, ou para aflorar no meu caminho a sinfonia do seu tormento, mas para evocar o poeta que chegou a esta cidade em 1959 e aqui viveu até 1964, o ano do golpe militar, quando foi preso e torturado brutalmente com chutes e pontapés nas areias do Cachorro Magro, em inominável desrespeito à sua figura humana e à dignidade da sua magistratura de meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas.  Nascido em Feira de Santana em 1909, o doutor Eurico Alves Boaventura estava com 50 anos quando aqui chegou, depois de ter vivido em Salvador, e em Capivari (hoje Macajuba), Tucano, Riachão de Jacuípe, Poções e Canavieiras, de onde fora transferido para cá, o que viria a significar algo de novo à vida cultural da cidade, ainda que nenhum de nós – e mesmo nenhum que tenha privado de sua intimidade nos saraus literários que ele promovia – tivesse a real dimensão da sua estatura de “figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, como hoje atesta o consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Sua filha Maria Eugênia Boaventura, que mora em São Paulo (onde é professora da Unicamp, a Universidade de Campinas), ainda se lembra das tertúlias realizadas na biblioteca que ficava na sala de visitas da casa em que aqui viveu parte da sua infância, à Rua Carlos Gomes, 63, assim como de algumas pessoas que as frequentavam: a professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado José Giése da Cruz (primo do autor destas linhas, que naquele ano morava com ele, sua mãe, dona Alzira, e a irmã dele, Gesilda). Maria Eugênia se lembra ainda que o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai também marcava presença naqueles encontros literários; que o doutor Eurico foi o fundador do Lyons Clube de Alagoinhas, tendo sido o seu presidente; e que ele lecionou no ginásio, onde introduziu uma disciplina abrangendo uma ampla pauta de conhecimentos.

Quem teve o privilégio de conviver com ele não mais leria poesia da mesma maneira de antes. Por trás daquele juiz de província escondia-se um intelectual de vanguarda, que estabeleceu um diálogo poético com Manuel Bandeira, “um arquiteto de novas paisagens verbais”, como bem o define hoje o professor da UEFS Rubens Alves Pereira, e se correspondeu com Jorge de Lima, de cuja obra se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”. Pois no dizer do próprio Eurico, ele e este ícone da poesia modernista se tornaram bons camaradas. Quanto à sua correspondência com o autor de “Pasárgada”, ocorreu com uma troca de poemas. Ao escrever, aí pelo ano de 1930, a “Elegia para Manuel Bandeira”, em que o convidava a dar um pulo a Feira de Santana para “comer pirão de leite com carne assada de volta do curral” e “sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda”, ele recebeu de Bandeira a seguinte resposta:

Escusa

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o gás carbono das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores da madrugada.

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

Em Alagoinhas, o doutor Eurico nos levaria a deixar o romantismo e o parnasianismo de lado por uns tempos, para ler Manuel Bandeira e os poetas que ele traduziu – como o espanhol Federico Garcia Lorca e os franceses Paul Eluard e Charles Baudelaire -, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira, Cassiano Ricardo, e o baiano Godofredo Filho. E assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio…

 Ao sair da prisão, o doutor Eurico foi transferido para Vitória da Conquista, e de lá para Salvador, onde se aposentou e veio a falecer, em 1974, não deixando um único livro publicado, o que pode servir de explicação para o silêncio em torno da sua importância literária, que só começou a ser quebrado a partir de 1989, com a publicação pela Ufba do seu alentado ensaio Fidalgos e vaqueiros, obra iniciada em 1952 e concluída em 1963, e que trata da saga dos que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, e que levaria à civilização do pastoreio. Em 1990, a professora Maria Eugênia reuniria sua produção poética num volume publicado pela Empresa Gráfica da Bahia. Ainda no final dessa década (1999), sairia o livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri – Godet (hoje diretora do departamento de Português da Universidade de Rennes, França),em edição da EGB apoiada pela Secretaria da Cultura e Turismo e a Fundação Cultural do Estado. Na sequencia das iniciativas para tirá-lo das sombras, destaca-se ainda o colóquio História, poesia, sertão, realizado na UEFS nos dias 29, 30 e 31 de julho de 2009, em homenagem ao centenário de nascimento do poeta feirense que teve um capítulo da sua trajetória escrito em Alagoinhas. Mesmo assim sua obra “continua restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata o arquiteto, artista plástico e também poeta Juraci Dórea. E aqui fica este pequeno tributo ao meritíssimo juiz-poeta que nesta cidade tornaria mais dourados os sonhos de uma juventude que ele ajudaria a crer-se promissora.  

4. Ao apagar das luzes de 1959, estava este escrevinhador sentado num banco da Praça J.J. Seabra, pensando na vida, sem saber o que fazer dela, quando, de repente, num passe de mágica, eis que chega e se abanca ali ao lado ninguém menos do que o seu anjo da guarda, que não precisou se apresentar, por ser um ente conhecido: um notório comunista chamado Mário Alves, que, como sempre, portava um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado do Rio de Janeiro para ser distribuído em Alagoinhas. Mas calma! Aquele comunista não espetava padres nem comia criancinhas, conforme os párocos apregoavam em seus sermões dominicais. Longe de ser um herege sanguinário – cruz credo! -, Mário Alves era uma figura de utilidade pública reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Antes de puxar conversa com o jovem pensador ao seu lado, ele acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou, acompanhando com o olhar a trajetória da fumaça, para, enfim, começar a falar.

Depois de dizer que havia lido uns artiguinhos que aquele rapaz vinha escrevendo para o Alagoinhas Jornal, perguntou-lhe se tinha algum plano para o futuro. “Escrever”, respondeu-lhe o jovem pensador, como se nem tivesse pensado no que estava dizendo. Ao que o outro emendou: “Quer ser jornalista?” Ora, se queria! E como! Então ali, naquela tarde, e num banco da Praça J. J. Seabra, o destino lhe sorriu. No dia seguinte, antes das 9 horas da manhã, o magnânimo Mário Alves lá estava à porta da Estação da Leste, à espera do rapaz que na tarde anterior parecia não saber o que fazer de si mesmo. E com dois bilhetes para o Marta Rocha, que luxo! Como se isso fosse pouco, o borracheiro, que vivia todo sujo de graxa, vestia-se de um impecável terno branco. Ao chegar à capital, dirigiu-se a um escritório na Rua Chile, onde perguntou a uma recepcionista se o doutor João Falcão estava. Antes que ela terminasse a frase “E quem deseja falar com ele?”, veio uma voz lá de dentro simplificando tudo:

– É você, Mário?

Sim, era ele mesmo. Mário Alves, o comunista de Alagoinhas, amigo do capitalista João da Costa Falcão, proprietário de uma imobiliária, de um banco e de um jornal diário que ambicionava fazer uma revolução na imprensa baiana, e que o abraçaria calorosamente, perguntando-lhe que bons ventos o traziam.

– Vim lhe pedir para botar este menino no seu jornal.

E o todo poderoso doutor João da Costa Falcão:

– Você quer mesmo ser jornalista, meu jovem?

O jovem em questão jamais iria esquecer o tom afável da voz daquele que tinha a chave da porta da frente de um mundo que sempre sonhara em entrar, e cujos umbrais ele estaria ultrapassando dali a poucos minutos, ao dobrar uma esquina e subir as escadas para a redação do Jornal da Bahia, na companhia de seu próprio dono, e sob a proteção de um anjo da guarda, que retornaria logo para Alagoinhas, assim que seu protegido fosse confiado às boas mãos do redator-chefe Ariovaldo Matos – um escritor! -, que aceitou de bom grado o pedido do seu patrão:

– Ari, arranje aí um lugar para este menino!

Com o assentimento do redator-chefe, o dono do jornal e seu amigo Mário se foram.  E o rapaz, que até o dia anterior se sentia sem destino sobre a Terra, agora encontrava uma vereda que o levaria a outros caminhos do mundo, até retornar aqui, para contar como tudo começou.

Obrigado, Alagoinhas. Muitíssimo obrigado.

Anotações sobre a crônica

Texto de introdução às oficinas de crônica, realizadas na Casa do Saber do Rio de Janeiro em
2/10 e 9/10/09

Sua origem é antiqüíssima.

Vem de Cronos, deus da mitologia grega cujo nome significa “o Tempo”.

Daí que nos seus primórdios a crônica era uma narração de fatos históricos em ordem cronológica. Começou a desvincular-se da História com o avanço do jornal como veículo de informação e entretenimento. No seu livro Crônico – Uma aventura diária, o jornalista gaúcho Luís Peazê registra que foi o semanário inglês The Tattler (O Fofoqueiro ou O Tagarela), fundado em 1709 pelosescritores ingleses Joseph Addison e Richard Steele, o introdutor da crônica na imprensa, por publicar somente textos curtos, em artigos literários e políticos com reflexões morais. O sucesso foi tão estrondoso que os dois autores lançaram novos semanários congêneres na Inglaterra, enquanto outros países europeus aderiam à novidade. Cem anos após o lançamento do The Tattler, o Journal des Débats, de Paris, iniciaria a publicação da crônica diária em sua primeira página, abaixo de uma linha que a destacava das notícias. Peazê acrescenta que foi nesse jornal que Foucault publicou as primeiras impressões sobre a teoria que ficou conhecida como o Pêndulo de Foucault. Ele prendeu um pêndulo de 67 metros na cúpula do Panthéon, com um peso de 28 quilos, para comprovar o movimento diurno da Terra, ou seja, de que era isso que fazia o mundo girar. A crônica francesa estendeu-se além de suas fronteiras quando Emile Girardin fundou o popular La presse. E outros vieram na sua esteira. Também na Áustria e na Itália os jornais atraíram os melhores escritores para suas páginas. Então crônica e jornalismo passaram a ser indissociáveis, através dos tempos. 

No Brasil, foi implantada definitivamente na imprensa carioca a partir do ano de 1850, já voltada para a descrição maliciosa da vida mundana e os fatos políticos do Rio de Janeiro. A partir da segunda metade do século 20, chegaria a se tornar o mais jornalístico dos gêneros literários e o mais literário dos gêneros jornalísticos, passando a parecer uma invenção brasileira. Mas naveguemos de volta ao seu remoto passado.

Na Idade Média era escrita em latim e dizia respeito à historiografia. E chegou ao apogeu na era dos Descobrimentos, como registro e informação das novas terras e de sua gente nelas encontradas, de que são bons exemplos as cartas de Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Américo Vespúcio. E também os relatos do alemão Hans Staden, dos franceses André Thevet e Jean de Léry, estes, os primeiros viajantes a descreverem a região onde hoje fica o estado do Rio de Janeiro como o paraíso terrestre habitado pelo povo expulso do Gênesis, além de relatarem as aventuras e desventuras dos europeus nessas paragens, no século 16, ou seja, ao tempo dos canibais tupinambás.

Tais descrições fizeram a Europa delirar. Como se estivesse lendo os contos mais fantásticos do mundo, desde O livro das maravilhas, de Marco Pólo.

A mais antiga crônica escrita em língua portuguesa data de 1429. Trata-se de um resumo histórico dos reis de Portugal até D. Dinis. E é exatamente nessa língua que iria se expressar um dos mais admiráveis cronistas de todos os tempos. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis, o que deu à crônica um perene status literário, pelas suas notas amenas, bem humoradas, com os toques de ironia que lhe eram tão peculiares. Basta ler dele O nascimento da crônica. Ou ouvi-la em CD, na voz de Othon Bastos.

As crônicas do Novo Mundo

No ano de 1557 era publicado na Alemanha um relato que instantaneamente causou um grande estardalhaço. Título: Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez. Logo, o autor fazia na capa do livro um resumo da obra, assombrosa, para os padrões da época. Foi mesmo um assombro, comparável ao que Hans Staden presenciou ao ver o grande guerreiro Cunhambebe comandar uma batalha dos tupinambás contra os tupiniquins, concluindo que caíra nas mãos de um gênio militar. E o chamou de “chefe supremo”. Foi sua salvação. Naquele ano de 1554, o mais temido, o mais respeitado, o mais odiado dos morubixabas andava com a vaidade à flor da pele, por ter sido escolhido unanimemente para chefiar a Confederação dos Tamoios, que uniu várias tribos amigas e inimigas num só exército, de Cabo Frio a São Vicente. Por que Confederação dos Tamoios? Porque significava a união dos mais velhos da terra (tamoio quer dizer isso), que viria a dar combates sem tréguas aos invasores dos territórios indígenas, que amarelavam quando o grito de guerra de Cunhambebe fazia a terra tremer: PERÓS! Maneira de ele dizer: Ferozes. Era o que achava dos portugueses, que também chamava de traiçoeiros e covardes. Vingava-se esfregando as mãos diante de um pedaço de português pronto para ser degustado, de preferência um braço e os dedos das mãos.

Quando foi apanhado, Hans Staden lutava com os tupiniquins, aliados dos portugueses, portanto, inimigos dos tupinambás e de todos os confederados. Cunhambebe pensou que ele fosse português, o que o condenava à execução. O alemão insistia em dizer que era francês, pois sabia que os franceses eram aliados de Cunhambebe, contra os portugueses. Tenha sido pelo exercício da dúvida, ou pela lisonja, o certo é que Hans Staden escapou de ser devorado, sendo dado de presente a um cacique de uma aldeia amiga, o que não significou o fim do seu apavoramento. Ele rezava o tempo todo. Conforme narrou em seu livro, Deus ouvia suas preces e o socorria, detendo tempestades, que tanto amedrontavam os índios. Por suas graças recebidas dos céus, ia tendo o seu sacrifício protelado, ele imaginava. Acabou escapando de ser o protagonista de um ritual antropofágico, para contar a história. O episódio de seu embarque num navio francês, envolvendo artimanha, diplomacia e sangue-frio, é simplesmente eletrizante.

Mesmo sendo considerada fantasiosa demais, essa história provocou pesadelos nos seus leitores, que se viam digeridos por seres demoníacos, a lhes chuparem os ossos até os tutanos. Nas peripécias de Hans Staden não faltavam ação, suspense, perigo, exotismo, azares, golpes da sorte e… milagres! Foi, portanto, com essa infalível receita de best-seller que surgiu numa pequena cidade chamada Marpurgo a primeira edição do primeiro livro sobre o Brasil, país cuja existência, conforme se lia no próprio título, os alemães desconheciam, ainda que a cobiça por novos mundos já tivesse tomado conta da Europa, sob a capa da sedução da aventura nos mares (“nunca dantes navegados”), que levavam às riquezas desconhecidas em ilhas e terras distantes. Tal avidez havia se intensificado já nos inícios das grandes navegações, a partir de uma carta do navegante florentino Américo Vespúcio, publicado em Paris como um folheto, em fins de 1503 ou inícios de 1504. Nessa carta, endereçada ao financista de Florença Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici, seu patrão e amigo, a quem chamava de “magnífico”, Vespúcio relatava a viagem que fizera em 1501-1502 às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores: porque é coisa novíssima para todos que ouviram [falar] delas…”  Fechemos as aspas para lembrar que ele estava a reportar-se à expedição lusitana às costas brasileiras no ano seguinte à de Pedro Álvares Cabral, numa longa jornada comandada por Gonçalo Coelho, que resultou no batismo do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos e São Vicente, dali seguindo até a Patagônia.

O Novo Mundo descrito por Américo Vespúcio dava asas à imaginação do velho continente: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua total liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado; todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos; doença era raridade – e facilmente curável, com ervas; vivia-se 150 anos, caso não se morresse antes nas guerras tribais; os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que honestamente não podem ser nomeadas”;  além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem; e elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais excitante. Acrescentemos a isso as referências aos rituais canibalísticos e imaginemos o impacto causado aos corações e mentes do Velho Mundo.

Lida avidamente, a carta de Vespúcio contabilizou em pouco tempo 25 edições em latim, italiano, alemão, holandês e tcheco. Esse sucesso retumbante foi esquentado por uma edição em Veneza, quando apareceu na capa, pela primeira vez, o título Novus Mundus. A sua repercussão se tornou mais espetacular ainda quando um editor de Augsburgo, em uma cartada genial, inseriu ilustrações que deram mais interesse ainda pelo documento. E depois vieram outras cartas, algumas tidas como falsas, o que pouco importava. Àquela altura Américo Vespúcio já tinha se tornado a figura mais lendária dos Descobrimentos. 

Para além do alcance popular, os seus relatos viriam a ter influência na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século 16. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel – e também por Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta a el-rey dom Manuel, datada de 1º. de maio de 1500, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do Brasil, e também como uma crônica cheia de observações fabulosas sobre a terra, que lhe pareceu bela e rica, e seus habitantes, que os descreveu como se os pintasse: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar as vergonhas; e nisto têm tanta inocência quanto em mostrar o rosto”, Caminha escreveu, de Porto Seguro, Bahia. Com tanta agudeza de percepções, por que sua carta, e a de Cristóvão Colombo, não repercutiram tanto quanto a de Américo Vespúcio?

No caso de Colombo, presumivelmente por ele não haver localizado de forma correta as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram. Situou-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia, chamando os seus habitantes de índios, designação que se tornaria comum a todos os povos do continente. Mesmo tendo garantido haver entre eles homens que nasciam providos de rabo, como os macacos, a carta de Colombo não produziu uma fascinação comparável às aventuras de Marco Pólo, no século 13, nem às do seu contemporâneo Américo Vespúcio.

Quanto à carta de Caminha, passou em branco. Nem sequer foi aberta por D. Manuel I, que a largou sobre um móvel, onde não despertou a curiosidade de ninguém, durante muito tempo. Deveu-se isto à política de sigilo de Portugal, em decorrência de sua rivalidade com a Espanha, que vigiava todos os seus projetos marítimos através de um bem montado serviço de espionagem. Mas, pelo visto, Américo Vespúcio não se via obrigado a silenciar sobre suas idas e vindas pelos caminhos marítimos dos portugueses, os quais seguira menos a mando de D. Manuel I e mais a convite de um banqueiro seu compatriota chamado Bartolomeu Marchionni, que vivia em Lisboa. Personalista, sedento de fama, nada o deteria em sua busca de notoriedade. Tanto que passou por cima de Colombo, Cabral, Caminha e Gonçalo Coelho – de quem era comandado e ao qual jamais fez a menor referência –, e acabou patenteando para si próprio o que chamou de “a quarta parte do mundo”, que a partir de então, e pelos séculos afora, passaria a ser a América do Américo, apenas por ele haver escrito uma carta na qual batizou um continente, e com ela, e mais algumas outras prováveis ou improváveis, se tornou o mais lido cronista dos Descobrimentos, deixando a Europa aturdida ao ver que havia no mundo um outro rosto além do seu. Um rosto selvagem, porém belo, com uma boca que comia carne humana, para se refazer das energias despendidas nas batalhas. Pois assim vivia o velho povo do Novo Mundo: em festa ou em guerra. 

Quanto a Hans Staden, que pegou o barco quando as grandes navegações já haviam avançado em mais de 40 anos, não se destinava à lenda dos navegantes epopéicos. Era um anônimo em busca de horizontes fora do limitado Velho Mundo. Entre as aventuras transatlânticas e as desventuras de um naufrágio e da vida de prisioneiro sob a ameaça de ser devorado pelos temíveis canibais, ele sentiu na pele o que os outros escritores viajantes viram apenas de passagem. Por isso Staden fez o relato mais impressionante daquela época, que teve numerosas edições em alemão, flamengo, latim, inglês e francês. Mas só apareceria em língua portuguesa no finzinho do século 19, no quarto volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Essa volta no tempo nos levará às esquinas do Rio de Janeiro entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20. Era ali que se postavam sumidades como José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac e João do Rio, para observar a alma encantadora de suas ruas. Depois desses, surgiria outra geração de cronistas que fariam o gênero crescer e aparecer com uma força extraordinária. Foram eles: Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachel de Queirós, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Antônio Maria, José Carlos Oliveira, Carlos Heitor Cony – este ainda em ação, admiravelmente –, que por sua vez viriam a ter os seus seguidores. Alguns nomes: Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna, Alcione Araújo.

E estes são apenas alguns dos nomes que fizeram e fazem a crônica parecer coisa nossa, com marca de origem e carimbo de autenticidade nacional.

Anotações sobre a poesia

Texto de introdução às oficinas literárias – de poesia, crônica e conto – realizadas na Casa do Saber do Rio de Janeiro, às sextas-feiras, de 18/9 a 23/10

O que é poesia? “A arte de compor ou escrever versos”, assim a definem invariavelmente todos os dicionários brasileiros da língua portuguesa. Mestre Houaiss acrescentou: “Composição em versos (livres e/ou providos de rima) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou conceitual na abordagem de idéias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc., quase sempre expressos por associações imagéticas”.

Isto diz tudo?

Parece que não, a julgar pela extensão do verbete do célebre filólogo, que prossegue: “Composição poética de pequena extensão”. Comentário: o que dizer então de “A Odisséia”, “A Ilíada” e “Os Lusíadas”, sendo este o poema que inaugurou o nosso idioma? Ou do “The waste land”, de T. S. Eliot? Logo, nem toda poesia é uma composição de pequena extensão. Há exceções monumentais, como é o caso de “A Divina Comédia”, de Dante. Longos poemas também são “Cobra Norato”, do brasileiro Raul Bopp, e “Uivo”, do beatnick Allen Grinsberg, por exemplo. Mas vamos em frente: “Arte dos versos característica de um poeta, de um povo, de uma época”. Nada a comentar. Continuemos: “Arte de excitar a alma com uma visão do mundo por meio das melhores palavras em sua melhor ordem.” Excitar a alma? Recorramos ao próprio Houaiss: “Excitar = provocar ou ter uma reação (física ou psicológica)”. No que se inclui, naturalmente, o desejo sexual, que faz a alma cantar. E passemos a outras variações sobre o mesmo tema: “Poder criativo, inspiração; o que desperta o sentimento do belo; aquilo que há de elevado ou comovente nas pessoas ou nas coisas”.

Bem, já não se fazem musas inspiradoras como antigamente. E assim a inspiração parou no tempo, envolta nas brumas do romantismo, banida da modernidade juntamente com o elevado ou comovente sentimento do belo. Hoje, negam-se poderes mágicos ao fazer poético, que em princípio requereria apenas o amalgamento destes elementos básicos: talento criador e rigor no trato com as palavras, levando-se em conta que a expressão poética tem um quê e um como, ou seja, o quê vai ser dito e a forma como se o dirá. O sortilégio que se estabelece entre conteúdo e forma pode ser entendido como o equilíbrio que deve ser buscado entre emoção e razão. E aqui já não estamos mais consultando um dicionário, mas lendo T. S. Eliot, o poeta e ensaísta que tanto influenciou a poesia do século 20: “O poema é um organismo dotado de vida própria, e é o seu significado, a sua organização de materiais utilizados, as relações existentes entre suas partes e cada uma delas e a sua estrutura global, que é necessário estudar”.

Do seu livro “A essência da poesia” destacamos também o seguinte:

“Não acredito que a tarefa do poeta seja, primordialmente e sempre, levar a efeito uma revolução da linguagem. Não seria desejável, ainda que fosse possível, viver em estado de perpétua revolução – a ânsia pela novidade contínua na dicção e na métrica é tão doentia quanto a adesão obstinada à linguagem dos nossos avós. Há épocas para exploração e épocas para o desenvolvimento do território conquistado”. Eis aí um recado para os que parecem se sentir obrigados a reinventar a poesia a cada verso que escrevem.

De anotação em anotação, retroagiremos à “Arte poética” de Aristóteles, presumivelmente escrita entre os anos de 338 a 336 antes de Cristo. Para ele, a poesia é uma imitação pela voz e distingue-se assim das artes plásticas que imitam pela forma e pela cor. A partir desta definição, Aristóteles estabelece diferentes formas poéticas, desde a dança que imita apenas pelo ritmo, até a poesia lírica, a tragédia e a comédia, que imitam pelo ritmo, pela linguagem e pela melopéia. As formas intermediárias seriam as imitações em prosa, as elegias, a poesia épica, a música vocal. E conceitua a arte poética como “uma disposição suscetível de criação acompanhada de razão verdadeira”, quer dizer, ele já estava falando da necessidade de equilíbrio entre emoção e razão. E acreditem: em seu tempo também já se discutia as características do belo. Aristóteles tendia a defender os elementos racionais mais do que os sensoriais. Logo, na arte poética o conflito razão-emoção é bem antigo. E, segundo Aristóteles, o belo reside na grandeza da ordem. Suas formas são a unidade ou coordenação – a proporção ou simetria -, a determinação ou precisão.

Na minha busca insaciável de entendimento da matéria aqui apresentada, esbarro em duas linhas do francês Michel Leiris que, na introdução ao livro de Jean-Paul Sartre sobre Charles Baudelaire, define a poesia como “veículo de uma mensagem”, e, que, portanto, é preciso “referir com clareza qual é o mais amplo conteúdo humano desta mensagem”. Bem, tal análise foi perpetrada no tempo do existencialismo, que se pretendia um novo humanismo.

Mas cesse tudo que a antiga musa canta, pois agora passaremos a palavra a Octavio Paz, o poeta e ensaísta mexicano que ocupou um singularíssimo lugar na literatura latino-americana do século 20. Destaquemos de “A consagração do instante”, terceiro capítulo do seu livro “Signos em rotação”, os seguintes ensinamentos:

1. “O que caracteriza o poema é a sua necessária dependência da palavra tanto como sua luta por transcendê-la. Esta circunstância permite uma indagação sobre sua natureza como algo único e irredutível, e, simultaneamente, considerá-lo como uma expressão social inseparável de outras manifestações históricas. O poema, ser de palavras, vai mais além das palavras e a história não esgota o sentido do poema; mas o poema não teria sentido – e nem sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta”.

2. “A poesia não se sente: diz-se. Ou melhor: a maneira própria de sentir a poesia é dizê-la. […] O poeta fala das coisas que são suas e de seu mundo, mesmo quando nos fala de outros mundos: as imagens noturnas são compostas de fragmentos das diurnas, recriadas conforme outra lei. O poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem. Essa revelação é o significado último de todo poema e quase nunca é dita de modo explícito, mas é o fundamento de todo o dizer poético”.

3. “A experiência poética não é outra coisa que a revelação da condição humana, isto é, desse transcender-se sem cessar no qual reside precisamente a sua liberdade essencial. Se a liberdade é movimento do ser, transcender-se contínuo do homem, esse movimento deverá estar referido sempre a algo. E assim é: um apontar para um valor ou uma experiência determinada. A poesia não escapa a essa lei, como manifestação da temporalidade que é. Com efeito, o característico da operação poética é o dizer, e todo dizer é dizer de algo. E que pode ser esse algo? Em primeiro lugar esse algo é histórico e datado: aquilo de que o poeta fala efetivamente, sejam os seus amores com Galatéia, o sítio de Tróia, a morte de Hamlet, o sabor do vinho numa tarde, ou a cor de uma nuvem sobre o mar. O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo”.

Um breve histórico

No princípio, a poesia tinha um caráter social. Associada aos cantos religiosos e ao entretenimento, servia para animar efemérides públicas e privadas, incluindo-se nisso as saudações a personalidades, e as loas aos grandes feitos militares, nas guerras de conquistas. Era usada também para a cura de doenças. Esse uso chegou até ao sertão baiano em que nasci. Ali, sempre que havia alguém doente, chamava-se uma rezadeira, ou benzedeira, que, pela urgência do chamado, chegava toda esbaforida. Com três galhos de arruda numa das mãos, ela os movimentava na cara do enfermo, fazendo o sinal da cruz, enquanto recitava:

Com dois te  botaram
Com três eu te tiro
Com perna de grilo
Que vem do retiro

É de metetéia
É de manenanha
Que esse menino fique bom
De hoje para amanhã!

Pouco importava se a própria rezadeira não soubesse os significados de metetéia e manenanha, palavras que sequer foram dicionarizadas pelos mestres Aurélio Buarque de Holanda e Antonio Houaiss. O importante era o poder daquele poema – e de sua fé nele, claro, assim como a do doente -, para tirar mau-olhado, o motivo de todas as doenças do mundo, ela acreditava nisso. E o comprovava mostrando os galhos de arruda que murchavam completamente, durante sua reza, por haver captado todo o mal incrustado no corpo enfermo.

Também se recorria às tradições daquele mundo para espantar o medo da noite. Ao pé do fogão, e à luz do seu fogo, enquanto as panelas fumegavam, cantavam-se as histórias que passavam, oralmente, de geração a geração. Refiro-me às da literatura de cordel, assim definida por um de seus autores mais populares, o Rodolfo Coelho Cavalcante:

Cordel quer  dizer barbante
Ou senão mesmo cordão,
Mas cordel-literatura
É a real expressão
Como fonte de cultura
Ou melhor, poesia pura,
Dos poetas do sertão

A expressão cordel vem da forma como os folhetos dessa literatura eram pendurados nas feiras, para serem vendidos. Pelos sertões adentro, o povo os chamava de ABC e de “rimance”, por se tratar de narrativas rimadas.

De origem ibérica, rica em fabulação, a literatura de cordel é até hoje muito popular no Nordeste brasileiro e até mesmo em certos núcleos urbanos do Sudeste, em função dos fluxos migratórios. E produziu clássicos como “A história do pavão misterioso”, “A chegada de Lampião ao inferno” e “Proezas de João Grilo”. Este se tornaria a matriz do grande sucesso de Ariano Suassuna, “O auto da compadecida”:

João Grilo  foi um cristão
Que nasceu antes do dia
Criou-se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois das horas
Pelas artes que fazia

O já citado Rodolfo Coelho Cavalcante explica à perfeição o fazer poético cordelista e o seu alcance:

De tudo que  acontecia
No país ia escrevendo
Padre Cícero, Lampião,
Ia o povo todo lendo.
Criou hábito no povo
De ler um folheto novo
Para a notícia ir sabendo.

E ele nos ensina mais:

O chamado  trovador
Ou poeta popular
Era semi-analfabeto
Porém sabia rimar,
Seus folhetos escrevia
E os sertanejos os liam
Por ser o seu linguajar.

Não foram poucos os poetas eruditos que buscaram inspiração nessa fonte popular. Um exemplo disso é o poema “Cantadores do Nordeste”, de Manuel Bandeira, que está em seu livro “Estrela da Tarde”. E João Cabral de Melo Neto não poucas vezes se utilizou da estrutura, métrica e ritmo do cordel. Basta lembrar o seu famoso auto de Natal “Morte e vida Severina”:

O meu nome é  Severino
Não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
Que é santo de romaria,
Deram então de me chamar
Severino de Maria;
Como há muitos Severinos
Com mães chamadas Maria
Fiquei sendo o da Maria
Do finado Zacarias.

E por aí vai.

E se temos por aqui os nossos heróis populares – João Grilo, Lampião, Antônio Conselheiro, Cancão de Fogo, Lucas da Feira – o bandoleiro negro de Feira de Santana, um lendário justiceiro que roubava dos ricos para dar aos pobres, espécie de versão baiana de Robin Hood, e etc., pois a galeria desses personagens é imensa -, o México tem La Cucaracha, cantada em todo o mundo, e a Argentina o Martim Fierro, que se tornou símbolo da valentia platina, cuja lenda levou Jorge Luís Borges a escrever um conto magistral, chamado “O fim”, que releio sempre, com um renovado encanto.  

Por fim, mas não por último, fiquemos com o poeta português Alexandre O’Neill, o que dizia:

Folha de terra  ou papel,
Tudo é viver, escrever.

Anotações sobre o conto

Introdução ao gênero na oficina literária realizada na Casa do Saber do Rio de Janeiro, em 16.10.2009

Expressão de mitos humanos universais, suas origens remontam aos casos da cultura oral, envolvendo fatos verídicos ou lendários, reproduzidos com fantasia, pois, como todos nós sabemos, quem conta um conto acrescenta um ponto.

Os elementos básicos do seu conteúdo são a imaginação, a fabulação, a lenda e o anedótico. Pela brevidade da narração, o conto requer densidade, contenção de linguagem e sagacidade. Credita-se ao Egito a produção dos contos mais antigos do mundo, que foram reunidos numa antologia por Maspéro, no ano de 1889. Autores árabes produziram as histórias de As mil e uma noites, que atravessaram os tempos. Na Idade Média, e adentrando a Renascença, surgiu a linha da sátira e do realismo, de que são exemplos o Decameron de Boccaccio, os Contos de Canterbury, de Chaucer, seguidos pelos de La Fontaine. Os contos fantásticos apareceram na época do Romantismo francês, com Nodier, e alemão (irmãos Grimm e Hoffman). Em meados do século 19, o conto voltou ao realismo, com Daudet, Guy de Maupassant, Dickens, Mark Twain. Entre os mais memoráveis contistas do mundo ocidental estão Edgar Allan Poe, Alexandre Puchkin, Anton Tchecov, e o nosso Machado de Assis, unanimemente aclamado como o maior contista da língua portuguesa. É outro consenso também que o conto encontrou o seu modelo clássico em Poe, Maupassant, Machado de Assis e Tchekhov.

Um conto pode ter meia página ou quantas forem necessárias para o autor contar sua história.

As regras clássicas do conto pressupõem começo, meio e fim. No começo, o contista cria um quadro no qual o personagem está inserido. Seus primeiros movimentos vão revelar o seu conflito-básico.

No meio, será apresentada a sua reação a esse conflito e o que ele fará para solucioná-lo.

O fim é a resolução do conflito. Ou, como diria Júlio Cortazar, no fim o conto tem que vencer o leitor por nocaute. É dele também esta outra lição: “O conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. Se não detiver na hora certa, vai tudo para os diabos”.

Em seu livro Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story o contista baiano Hélio Pólvora nos ensina que “o conto clássico, tal como estruturado pelos seus fundadores Gogol e Poe, e desenvolvido por Maupassant, tinha como principais elementos de composição: a) o plot, que é, de acordo com a poética de Aristóteles, o acontecimento central ou os fatos que conduzem a tal acontecimento, ou, melhor ainda, a consequência dos seus desdobramentos no destino da personagem maior e, quando existem, das personagens de apoio; b) o ponto de vista, que, com seus traços negativos e/ou positivos, é a soma das reações da personagem ao seu problema, vistas e julgadas também pelo leitor; c) o cenário, os diálogos, ou o monólogo, os prolongamentos da ação, os conflitos, a abertura e o final”.

Nesse seu livro, indispensável a quem se interessa pelos segredos do gênero, Hélio Pólvora esclarece: “O conto maupassantiano […] caracteriza-se por um desfecho em geral inusitado, de efeito perdurável na sensibilidade do leitor”. O que não deixa de ser o clássico final epifânico, ou simplesmente surpreendente, a ponto de nos nocautear inapelavelmente, tal como queria Júlio Cortazar.

A partir do primeiro pós-guerra, ou seja, da década de 1920, o conto se tornaria uma forte expressão norte-americana, graças a autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner, William Sorayan, Carson McCullers, Truman Capote e etc. Na América hispânica teria um trato singular nas boas mãos dos argentinos Jorge Luis Borges e Júlio Cortazar, do mexicano Juan Rulfo, do colombiano Gabriel Garcia Márquez e por aí vai. No Brasil, surgem tantos e tão poderosos contistas que quase que dá para encher uma lista telefônica. Citemos apenas alguns nomes básicos: Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, M<urilo Rubião, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, Wander Piroli, Roberto Drummond, Ivan Ângelo, Moacyr Scliar, Domingos Pellegrini Júnior, Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu… E há ainda os novos e novíssimos que dariam outra lista imensa. Os que ainda não estão nas vitrines, podem ser vistos nos blogs, que hoje se multiplicam mais do que no milagre dos peixes.

Indicação de leituras:

1. Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story, de Hélio Pólvora: Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/Itabuna, Ba (www.uesc.br/ e-mail: editus@uesc.br), 2000.

2. Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga: LPM, Porto Alegre, 2009.

3. Os cem melhores contos brasileiros do século XX, antologia organizada por Italo Moriconi: Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2000.