Conferência proferida em Fortaleza, no Ideal Clube, no dia 21 de setembro de 2015, iniciando o ciclo “Iracema, 150 anos”, promovido pela Academia Cearense de Letras.
Antônio Torres
150 anos viviam os habitantes da terra de Iracema, no dizer do viajante que batizou este lado do Atlântico de Novo Mundo, e veio a dar o nome a um continente cujo achamento pelo homem branco significou a descoberta de um outro rosto diferente do seu, chamado de índio por aquele que entrou para a história das terras americanas como o seu descobridor.
Como sabemos todos, o genovês Cristóvão Colombo não localizou corretamente as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram, situando-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia. Daí por diante todos os povos que iam sendo encontrados passariam a ter a mesma designação, fossem eles tupis ou apaches, guaranis ou astecas, pitiguaras ou incas, caraíbas ou tabajaras… Pouco ou nada importava que tivessem constituído impérios e civilizações, como no caso dos Maias. E aqui já estivessem havia quinze ou vinte mil anos, vindos da Austrália, Tasmânia ou Nova Zelândia. Eram índios e pronto.
Portanto, não é por acaso que José de Alencar invariavelmente se refere a Iracema como indiana. Dá tudo em sinônimo de não-branco, pois a cor da pele dos que aqui estavam quando os brancos chegaram é percebida como o primeiro sinal da diferença entre uns e outros, conforme a descrição magistral de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, em sua célebre carta a El-Rey D. Manuel I, o Venturoso, datada de 1º. de maio de 1500, na qual assinala: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma…” Etc.
Mas a Europa só iria ficar excitada com as notícias desse paraíso terrestre habitado pelo povo expulso do Gênesis a partir do relato de um passageiro da expedição manuelina que saiu de Lisboa no dia 13 de maio de 1501, com a missão de mapear o que Cabral não havia visto, um ano antes, e que resultou nos batismos do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Cabo de São Tomé, no norte fluminense, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, e São Vicente, no litoral de São Paulo, dali seguindo até a Patagônia. O tal passageiro não era outro se não o florentino Américo Vespúcio, que em fins de 1503 ou inícios de 1504 publicou em Paris um panfleto sobre a viagem que fizera às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores; porque é coisa novíssima…”
Sim, esse Novo Mundo descrito por Vespúcio começava pelo Nordeste brasileiro. A descrição que fez dele deixou a Europa aturdida: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado. Todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos. Doença era raridade – e facilmente curável, com ervas. Os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que honestamente não podem ser nomeadas”.
Além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem. E elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana – quer dizer, dos europeus -, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais enlouquecedor. Acrescentemos as referências aos rituais antropofágicos e imaginemos o impacto que os relatos de Vespúcio causaram aos corações e mentes de um Velho Mundo povoado de dógmas, ensanguentado pelas guerras religiosas, e a padecer com a fome e as pestes.
Exageros à parte, os seus escritos viriam a servir de fonte de informações que o conhecimento convencional ignorava, abrindo as comportas do mundo da razão para o do instinto, influindo na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século XVI. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel, Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do também já mencionado Pero Vaz de Caminha, autor do primeiro texto escrito no Brasil, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do país, além de ser uma crônica admirável sobre a terra, que lhe pareceu “bela e rica”, e a sua gente, que não fazia o menor caso de encobrir ou mostrar as suas vergonhas, e nisso tinha tanta inocência como em mostrar o rosto.
Com tanta agudeza de percepções, por que a carta de Caminha não teve a mesma repercussão dos escritos de Américo Vespúcio? Pelo sigilo imposto por D. Manuel I em relação aos seus feitos nos mares, temendo a concorrência dos espanhóis. Isso fez com que o navegante florentino se tornasse o protagonista das grandes navegações que se seguiram ao descobrimento de uma terra onde libinosíssimas cunhãs, genuínas filhas de Eva, compunham o deslumbrante cenário de uma natureza em festa permanente. Sol, sexo, mar e selva. Eta vida boa.
“Extraordinária visão para nós é que, entre elas, nenhuma parecia que tivesse as mamas caídas”, deleitou-se Vespúcio, acrescentando: “E as que pariam nada se distinguiam das virgens na forma e contratura do ventre; pareciam iguais nas partes restantes dos corpos, o que omito de propósito, por virtude. Quando podiam juntar-se aos cristãos, impelidas pela forte libido, contaminavam e prostituíam toda pudicícia”.
A sedução da América do Américo viria a ter por símbolo uma filha nativa chamada Iracema, dita seu anagrama, como propaga hoje até o ensinante mais popular do planeta, embora nem sempre confiável, mas muito acessível e acessado, o tal de míster Google. Há controvérsias. Mesmo assim, essa outra tradução para o vocábulo que o próprio Alencar consagrou como significando lábios de mel, em guarani, encontra fundamentação num ensaio da acadêmica Beatriz Alcântara, que integra a fortuna crítica introdutória à edição comemorativa dos 140 anos de Iracema, organizada por Ângela Gutiérrez e Sânzio de Azevedo, e publicada pela editora da Universidade Federal do Ceará. Com a palavra a poeta e professora Beatriz Alcântara:
“O historiador de literatura Afrânio Peixoto, 64 anos depois do lançamento da 1ª. edição do romance, levantou a hipótese, no número 89 da revista da Academia Brasileira de Letras, de que a palavra IRACEMA pudesse ser anagrama de América. A suposição passou a ser do agrado tanto de estudiosos quanto de leigos, a ponto de hoje ser prioritariamente referida e quase ser relegada ao esquecimento a proposta de seu criador.
O compositor contemporâneo Chico Buarque de Holanda, em homenagem crítica aos brasileiros mal parados mundo afora globalizado, menciona, na música “Iracema Voou”, de 1998, uma certa Iracema do Ceará, emigrante de seu anagrama América:
Iracema voou Para a América Leva roupa de lã E anda lépida Vê um filme de quando em vez Não domina o idioma inglês Lava chão numa casa de chá Tem saído ao luar Com um mímico Ambiciona estudar Canto lírico Não dá mole pra polícia Se puder vai ficando por lá Tem saudade do Ceará Mas não muita Uns dias, afoita, Me liga a cobrar - É Iracema da América”.
Nada substitui o talento, já dizia um slogan da Rede Globo.
Seja o de José de Alencar ou de Chico Buarque que, com esse deslocamento temporal entre a fantasia e o realismo, suscita outras leituras de Iracema, levando-nos a refletir sobre o lugar do índio na História. Que está longe de ser o mesmo que ele ocupa no romance de Alencar, no qual simboliza o encontro da natureza com a civilização, acentuando um nacionalismo que é fruto de condições históricas, quase imposição, nos momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidade, conforme apontou o mestre Antonio Cândido em seu livro Formação da Literatura Brasileira.
Agora, nossa lendária morena não estaria indo ao encontro dos peles-vermelhas que povoaram romances épicos como “O último dos moicanos”, de James Finimore Cooper, com quem, aliás, Alencar não aceitava ser comparado. Mas admitia: “O Brasil tem, como os Estados Unidos, e quaisquer outros povos da América, um período de conquista, em que a raça invasora destrói a raça indígena. Essa luta apresenta um caráter análogo, pela semelhança dos aborígenes. Só no Peru e México difere.
Assim, o romancista brasileiro que buscar o assunto do seu drama nesse período da invasão, não pode escapar ao ponto de contato com o escritor americano. Mas essa aproximação vem da história, é fatal, e não resulta em imitação”.
O resumo desse caráter análogo é que, de lá para cá, Iracema passou de dona da terra a desterrada, a ponto de embarcar no sonho americano dos mineiros de Governador Valadares, também como passageira de segunda ou terceira classe ao paraíso do consumo chamado Primeiro Mundo.
Duas ou três décadas antes, porém, ela foi vista na Europa como protagonista do filme “Iracema, uma transa amazônica”, de Orlando Senna e Jorge Bodansky – aqui proibido pela censura da ditadura militar -, e que conta a história de uma menina do interior que vai a Belém com a família para pagar uma promessa na festa do Sírio de Nazaré, e passa a fazer a vida num cabaré, onde conhece o caminhoneiro Tião Brasil Grande, um negociante de madeira, e com ele pega uma carona, louca de vontade de chegar a um grande centro, São Paulo ou Rio de Janeiro, como parte de uma carga que simboliza o encontro contemporâneo entre a civilização e a natureza, promovido a golpes de motosserra.
História que segue.
Depois de dias e noites de puro encantamento com a narrativa de amor e morte (com uma guerra ao fundo) da bela indígena de “olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá”, eis que o leitor que vos fala é despertado para outra imagem, a da capa do recém-lançado Amazônia Indígena, de Márcio Souza, que parece simbolizar a última fronteira do processo civilizatório que lá atrás teve Iracema como musa inspiradora.
Flagrada de smartphone na mão, agora ela é, involuntariamente ou não, uma garota-propaganda do admirável novo mundo tecnológico, aqui, agora, e para o futuro. Como se essa outra Iracema, totalmente conectada à realidade do nosso tempo, estivesse nos dizendo:
OK, vocês venceram.
“Mas cá estou eu, uma sobrevivente de um processo civilizatório que deu na destruição da raça indígena, como o próprio José de Alencar não deixou de assinalar, para hoje o amazonense Márcio Souza fazer-lhe coro, acrescentando que esse processo foi prodigioso, destrutivo, brutal: uma espantosa façanha em que grupos pequenos de aventureiros europeus dominaram povos inteiros, saquearam enormes riquezas e exterminaram culturas florescentes. A expansão ibérica é um dos grandes mistérios da história contemporânea, e o Brasil é produto desse mistério. E como era da tradição do Ocidente – continua Márcio Souza -, a história da conquista foi contada como uma crônica de maravilhas, um repositório de surpresas e um livro negro de horrores. Mas, ao contrário do fabulário medieval, essas novíssimas lonjuras tinham a singularidade de seus habitantes, sociedades que pareciam ainda no Éden e ao mesmo tempo no mais desvairado sonho sensualista”.
Antes de fechar a pasta dos recortes contemporâneos em torno de Iracema, destaquemos o seguinte: sua história é hoje facilmente encontrável em qualquer livraria, em edições as mais variadas, como pude comprovar no Rio de Janeiro. Numa era em que o imaginário global se impõe sobre o local de forma esmagadora, esse interesse por um texto desencaixado das demandas mercadológicas está longe de ser espontâneo. Seu público-alvo encontra-se na rede de ensino. E é para ela que os editores fazem todos os seus rapapés, quer dizer, suas notas de rodapés.
Mas registre-se que a adoção de clássicos da nossa literatura pelas escolas não é de agrado unânime. Um exemplo: em crônica publicada no jornal “O Globo” de 2 de setembro de 2015, um jovem escritor chamado Raphael Montes, que vem fazendo um relativo sucesso como autor de romances policiais, foi taxativo: “Colocar uma criança de 14 ou 15 anos para ler José de Alencar só faz afastá-lo dos livros. Pior ainda quando a leitura é obrigatória e cobrada na prova: os alunos ficam mais preocupados em buscar análises do que em mergulhar na história, em saborear o texto. No geral, provas assim são compostas de perguntas bobas que conseguem ser resolvidas com consultas a resumos na internet, e a leitura se torna um obstáculo inconveniente que o aluno tem que vencer para passar de ano. Depois da experiência traumatizante, será que ele vai gostar de ler? Será que vai entrar numa livraria e buscar um livro por vontade própria?”
Agora vejamos quem esse jovem autor quer ver ocupando na escola o lugar de José de Alencar, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa: Agatha Christie e J. K. Rowling, a autora de Harry Potter. Para o triunfo absoluto do mercadão global.
Imagino que outra seria a sua opinião se ele tivesse sido aluno de uma professora chamada Teresa, num povoado esquecido nos confins do tempo, numa baixada de solidão e poeira, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas. Sem livros.
Ao chegar ali para inaugurar o prédio de uma escola rural, Dona Teresa trazia na mão uma seleta de poemas, contos, crônicas e trechos de romances. Ela pôs os alunos em fila, para que lessem em voz alta a página que ia mostrando a cada um. A que me coube:
“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”…
Imaginem o efeito dessa leitura para um menino nascido num lugar onde nem rio havia, quanto mais verdes mares. Ele também nunca tinha visto uma jandaia, nem uma carnaúba, pois estava integrado à paisagem árida do sertão da Bahia, muito longe do Ceará. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho, como se tivesse descoberto um mundo nunca dantes imaginado. Foi esse o impacto que a primeira página de “Iracema” me provocou, se instalando em mim como o lugar da imaginação, e aqui reinstalando-se como o da memória.
Que não se privem os meninos de hoje do prazer estético inenarrável proporcionado pela leitura de um dos mais belos textos da língua portuguesa, na insuspeita avaliação de um crítico literário da terra de Chateaubriand, Balzac, Baudelaire, Rimbaud, Stendhal, Proust, numa inequívoca confirmação do que vaticinou Machado de Assis, há 150 anos, quando afirmou com todas as letras: “Há de viver este livro, tem as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro… que lhe chamará de obra-prima”.
Precisa dizer mais?