Saudação a Antônio Torres, na Abertura do Ciclo de Conferências 2015 da Academia Cearense de Letras, antes da Conferência Iracema: 150 anos sem perder o encanto, pronunciada pelo escritor, em Fortaleza, a 21 de setembro de 2015
A Academia Cearense de Letras abre seu Ciclo Anual de Conferências 2015 com a palavra de Antônio Torres, um dos mais respeitados romancistas da contemporaneidade, no Brasil e além fronteiras nacionais, pois suas obras estão traduzidas em mais de vinte línguas, publicadas em vários países, com excelente recepção e autêntico sucesso de crítica e de público leitor.
Antes de passar a voz ao conferencista, permitam-me ressaltar a relevância de começarmos o Ciclo dedicado a Iracema com a participação de Antônio Torres. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o escritor, que assumiu, em 9 de abril de 2014, a cadeira 23 da ABL, aliás, uma das mais privilegiadas da instituição – José de Alencar é o patrono, Machado de Assis, o primeiro ocupante, e, entre os ilustres escritores que vieram a seguir, encontram-se Jorge Amado e Zélia Gattai, tão caros ao leitor brasileiro! -, o romancista narra um episódio de sua infância quando leu em voz alta, em sala de aula, trechos do romance Iracema, transcritos na Seleta Escolar de sua professora. Ouçamos sua voz:
Um desses trechos inundou a sala, fez o sertão virar os verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. O efeito dessa leitura foi simplesmente fabuloso. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho. Além de não fazer a menor ideia de como era o mar, também não conhecia a jandaia e a carnaúba, nem de pluma, nem de folhagem, pois pertenciam a outras paisagens, e distantes, como a do Ceará. E ali estávamos na região do semi-árido da Bahia. Foi esse o primeiro impacto que as linhas iniciais de um romance me provocaram, instalando-se como o lugar da imaginação, e aqui reinstalando-se como o da memória.
Por essas palavras e por muitas outras referências do romancista baiano à obra de seu patrono, em conferências, discursos, entrevistas, artigos, e em sua ficção, já se evidencia a importância de sua vinda para inaugurar este Ciclo de Conferência que comemora os 150 anos de Iracema, a índia tabajara que, embora nascida “além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte”, apresenta-se, no imaginário de habitantes e visitantes de Fortaleza, como símbolo maior de nossa cidade e, há muito, deixou as páginas do livro para habitar nossas vidas, em expressões do falar cotidiano, em nomes de pessoas, lugares – cidade, praças, praias –, de entidades comerciais e culturais; e para recriar o romance em outras artes, dando vida a esculturas, telas, desenhos, ilustrações, quadrinhos, cordéis, canções, filmes, poemas, ópera …
Tenho certeza que o penetrante olhar do romancista nascido em Junco, vila situada no sertão mítico do Conselheiro e transformada em território literário por Antônio Torres, ao desviar-se dos personagens de suas terras de dentro, e dirigir-se a Iracema, habitante primitiva das terras brasílicas em processo de colonização pelos europeus, enriquecerá a bibliografia sobre o romance de Alencar, até mesmo por trazer a experiência da criação ficcional de outros habitantes primitivos, como o famoso guerreiro tupinambá Cunhambebe, que o escritor transmigra da História do Rio de Janeiro para o romance Meu querido Canibal. Assim, dentro de instantes, nosso convidado desvelará com maestria novos encantos de Iracema, o livro que mereceu de Machado, logo após sua publicação, a profética designação de obra-prima.
Inaugurando-se no gênero romance com Um cão uivando para a Lua, de 1972, o então jornalista Antônio Torres, inicia sua carreira com sucesso, sendo saudado por vários críticos com respeito e confiança em seu futuro como ficcionista. Na revista Visão, Carlos Nelson Coutinho, em artigo intitulado “Uma questão de coragem”, salienta:
Exatamente pela sua temática, pela sua recusa obstinada em aceitar as seduções “neutralistas” de um vanguardismo estéril, é que o pequeno romance Um cão uivando para a Lua, do estreante Antônio Torres, destaca-se como o mais importante lançamento literário dos últimos tempos no país. Não há dúvida de que Torres parte de sua experiência pessoal: da experiência de um jovem intelectual provinciano que vem tentar a realização humana na grande cidade, sobretudo através do jornalismo, mas que termina paulatinamente esmagado pelas engrenagens de um mundo alienado, corrupto e hipócrita.
Em carta ao autor baiano, o escritor português José Cardoso Pires afirma, então, sobre o mesmo romance: “o que me surpreendeu foi a atitude interior de contestação literária que está subjacente ao texto e que lhe dá essa dinâmica de crise polêmica que, a meu ver, é bem mais valiosa do que a descrição do conflito”.
Ao comentar seu primeiro livro, Antônio Torres revela:
O título me veio numa noite escura, em São Paulo, quando num quartinho de um hotel barato na Alameda Barão de Limeira, eu ouvia o tempo todo Miles Davis tocando sem parar My funny Valentine, uma terna canção americana, do dia dos namorados, que aquele trompetista, um gigante do jazz, transformara num lamento lancinante. Como os uivos vindos lá do fundo dos quartéis e dos manicômios, num dos quais eu havia visitado um amigo […] Foi aí que me veio uma idéia para um conto: um doido batendo papo consigo mesmo. Como parecia ser o de Miles Davis com o seu trompete. Oito meses depois tinha um romance nas mãos.
Se sua estreia fora promissora, a publicação de Essa terra, seu terceiro livro, de 1976, será consagradora. A obra, que inicia uma trilogia dedicada à sua terra natal, e que se vale de muitos dados autobiográficos, completa-se com O Cachorro e o Lobo, de 1997, e Pelo fundo da agulha, de 2006. Totonhim é o personagem que conduz o fio da trama e une os três romances, vivenciando os contrastes entre o mundo rural e o urbano em suas transformações através do tempo e atribulado pela sombria imagem de seu irmão morto.
Sobre Essa terra, famosos escritores e críticos se pronunciaram com entusiasmo. Ítalo Moricone considera que o romance “consagrou Antônio Torres como um dos mais lidos e queridos escritores brasileiros contemporâneos”; Affonso Romano de Sant´Anna salienta que “assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas secas mostrando que saíram de sua família, Essa terra tem no lastro biográfico a sua força original.”; Doris Lessing, a famosa escritora britânica nascida na Pérsia, que escreveu em vários gêneros uma vasta bibliografia, tendo recebido o Prêmio Nobel de 2007, diz, em frase concisa e precisa: “Admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.”
Em entrevista ao site da Editora Record, que publica suas obras, o escritor esclarece as relações entre personagem Totonhim e escritor Antônio Torres, alargando os limites autobiográficos do personagem:
Tentei, neste livro, fazer uma reflexão sobre este crepúsculo do mundo em que vivemos. Um mundo pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo. Entendo que por trás dos impasses do personagem Totonhim não estão apenas os meus próprios. Nem apenas da minha geração. O que me parece é que de repente nos vemos todos — jovens, adultos e velhos — numa espécie de encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro. E onde está esta saída? Eis a questão.
Antecipa-se o escritor aos imensos problemas que vivemos hoje no mundo, quando se agudiza “a busca de uma saída para o futuro” e milhares ou milhões de pessoas partem de suas terras, em dolorosa peregrinação, na esperança de serem aceitos como refugiados, usando as palavras de Lessing: “ cujo destino é mudar de lugar”, mas sem saber para onde, nem como, nem quando chegarão a este lugar.
Embora não deseje atrasar o encontro de Antônio com seus ouvintes, seria injusto não mencionar aqui outras belas obras de Antônio que, além de romances incluem livros dedicados a crianças, coletâneas de crônicas e contos: Os homens dos pés redondos, Carta ao bispo, Adeus, velho, Balada da infância perdida, Um táxi para Viena d’Áustria, O centro das nossas desatenções, O circo no Brasil, Meninos, eu conto, O Nobre Sequestrador, Minu, o gato azul, Sobre pessoas, Do Palácio do Catete à venda de Josias Cardoso…
Se é quase lugar-comum dizer que a literatura é perigosa, os livros de Antônio Torres são perigosíssimos. Em parte, porque propõem leituras que se abrem em diferentes direções, revertem conceitos estabelecidos pela história, disseminam a dúvida; em parte porque possuem tentáculos – suas atrevidas técnicas narrativas que misturam presente, passado e futuro, embaralhando o fio do tempo, multiplicam as vozes de narradores, usam a ironia contra o próprio autor e suas atrevidas técnicas narrativas que …- e prendem-se a nós e não nos soltam enquanto não terminarmos sua leitura!
Mesmo considerando que Essa Terra é para Antônio Torres o que Iracema é para Alencar e Dom Casmurro para Machado – ou seja, aquela obra redonda, a que nada se pode acrescentar ou retirar, que, mesmo se fosse única, concederia a imortalidade literária a seu autor – tenho, como leitora, especial carinho, pelo romance O Nobre Sequestrador, primeiro livro que me deu a conhecer o escritor Antônio Torres. Quando li o romance já estivera em Saint-Malo e vira de perto a estátua de René Dugay-Trouin, Capitão-de mar-e-guerra, Tenente-general, Espada de Honra do Rei, Cavaleiro da Ordem de São Luís, enfim, corsário sob as ordens de Luís XIV, a mesma estátua que narra a primeira parte do romance. Assim, ao ler as palavras que o autor põe nos lábios de seu narrador-personagem, senti-me, de repente, caminhando sobre as imponentes muralhas da cidade e, depois, me vi partindo do porto de La Rochelle, na nau Le lys, que comandava 13 naus armadas com mais de mil canhões, em direção Rio de Janeiro, e prossegui a viagem profundamente preocupada, temendo que esses canhões arrasassem a amada cidade do Rio, antes que ela recebesse a denominação de Cidade Maravilhosa!
– Bom, leitora Angela, encurte o que tem a dizer e passe a palavra a Antônio Torres, diz-me uma voz tão galhofeira quanto a de alguns narradores de Antônio e apresso-me em obedecer-me.
Entre importantes comendas e prêmios que nosso Antônio vem merecendo, destaco a condecoração pelo governo francês, em 1998, como “Chevalier des Arts et des Lettres” e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000, pelo conjunto da sua obra. Para salientar a importância da obra de Antônio Torres na Literatura Brasileira, valho-me das palavras finais de Nélida Piñon no discurso em que recebe o escritor baiano na Casa de Machado de Assis:
Nesta noite, no plenário do Petit Trianon, graças a sua obra literária, o Brasil se integra uma vez mais. O sertão e a pólis se enlaçam. Uma circunstância que nos leva a louvar o grande autor que, vindo do Junco, enalteceu o Brasil. É propício, pois, proclamar que a Academia Brasileira de Letras o acolhe com orgulho. Seja bem-vindo a esta Casa, Acadêmico Antônio Torres.
Como Arakém, pai de Iracema, dá as boas-vindas a Martim, seu hóspede, também dou as sempre boas-vindas dos cearenses ao já quase d’Essa terra, Antônio Torres e, em especial, representando o Presidente e demais colegas da Academia Cearense de Letras, expresso-lhe nossas boas-vindas à Casa de Thomaz Pompeu, hoje, enquanto sua sede, o Palácio da Luz, recebe as pinceladas finais de seu restauro, abrigada no Salão Meireles, de uma Casa amiga, o Ideal Clube, diante dos mares bravios do Ceará, tão citados pelo baiano do sertão, e ao lado da praia que Iracema cuida como guardiã.
Profa. Dra Angela Maria Rossas Mota de Gutiérrez,
Membro e Diretora Cultural da Academia Cearense de Letras e 2a Vice- residente do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico, Antropológico)