Idéias / Jornal do Brasil – 29/09/91
Recordo-o num longínquo fim de tarde, talvez em 1974 ou 75. Estávamos num bar, ao fundo de uma galeria escura, nas proximidades da Imprensa Oficial, onde até hoje se edita o Suplemento Literário Minas Gerais, criado por ele e, por muitos anos, considerado a melhor publicação do gênero, em nível nacional. Recordo a cidade: pelo seu clima agradável, só podia mesmo ser Belo Horizonte, em tempo de primavera. Doces ares de uma província já não tão provinciana: um pouco do que a cidade tinha de melhor estava à mesa. Nem todos os bons escritores mineiros haviam partido em busca de mundos mais efervescentes. Ali estavam Oswaldo França Jr., Wander Piroli, Roberto Drummond, Benito Barreto, Adão Ventura, Duílio Gomes, Geraldo Magalhães, tantos, tantos. Até o carioca Sérgio Sant’Anna, que vivia lá, podia perfeitamente ser confundido com um deles. À cabeceira, um mestre – o decano Murilo Rubião.
Recordo-o em sua ereta elegância, economia de gestos e sobriedade verbal: lembrava mais um gerente financeiro do que um homem de letras. O autor de O ex-mágico não iria retirar nenhuma mágica da manga. Inútil esperar alguma pirotecnia do contista de O Pirotécnico Zacarias. Ele era tido e havido como precursor do realismo fantástico, muito antes de os hispanos dominarem a área. Fantástico, esse Rubião? Melhor imaginá-lo um ser humano normal, que bebia o seu uísque num copo longo, falando pouco e devagar. E quando pedimos a conta, fomos informados que ela já havia sido paga pelo cavalheiro de paletó e gravata que ia se retirando como chegara: discretamente. E assim, para o visitante, mais uma lenda ia por terra – a de que todo mineiro é mão-de-vaca.
Não houve um segundo encontro. Quer dizer, não deu para lhe pagar “a próxima”, insistindo que a outra havia sido dele. Agora só na eternidade, em que a outra havia sido dele. Agora só na eternidade, em que não acreditava. Incrível. Um dia depois da sua morte chega de BH um jornal com estas suas exatas palavras: “Como abandonei a religião e sou hoje um agnóstico, a minha tendência é não aceitar a eternidade e também não acreditar na morte em vida. Então fico nesse círculo constante entre a eternidade e a vida, sem aceitar essa separação entre a vida e a morte”. Tudo bem, velho Rubião, só que não dá mais para discutir isso com você, numa segunda rodada.
Mas não foram só dois dedos de prosa e uma despesa de bar o que muitos de nós ficamos-lhe devendo. Ao inaugurar a coleção Nosso Tempo, da Editora Ática, nos anos 70, com uma tiragem inicial de 30 mil exemplares para O Pirotécnico Zacarias, que se esgotou rapidamente, ele contribuiu para uma mudança de postura editorial em relação aos escritores brasileiros. O recatado Rubião nunca fez alarde disso. Ele morreu como viveu: mineiramente.