“Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem disfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”. É assim que Fernando Pessoa começa o guia da cidade que ele chamava de seu lar, e onde se sentia fincado no chão, “senão como uma raiz pelo menos como um poste”. Intitulado O que o turista deve ver, esse guia permaneceu desconhecido durante décadas, até ser encontrado, em 1987, dentro de uma arca com mais de 27 mil documentos pessoanos, que estavam sendo pesquisados em função das comemorações do centenário do poeta, no ano seguinte. O achado foi “um grande e inesperado prazer”, escreveu a professora Teresa Rita Lopes no prefácio ao guia, afinal publicado em 1992, e que, ela esclarece, não é curiosidade avulsa, mera resposta a uma ocasional solicitação, pois fazia parte de um vasto plano de Pessoa. Por volta de 1919, ele decidira escrever, com fervor patriótico, contra o que classificava de “descategorização europeia” e “descategorização civilizacional” – de Portugal, pois, pois.
Portanto, vejamos a velha cidade, cheia de encanto e beleza, através do olhar amoroso de quem se dizia “transeunte de corpo e alma destas ruas baixas que vão dar no Tejo”. Mas antes de seguirmos seus passos de flâneur pela Baixa, a planície na qual desemboca a Avenida da Liberdade, e se assenta o centro de Lisboa, com seus históricos logradouros (Restauradores, Rossio, Chiado, as ruas do Ouro e da Prata, a Praça do Comércio), parando aqui e ali para ver o tempo passar às mesas de cafés lendários como os do Cais do Sodré, o Nicola, A Brasileira, o Martinho da Arcada (onde Pessoa fazia ponto); ou de nos aventurarmos pelo clássico roteiro que inclui o Castelo de São Jorge, passando pela Catedral, de construção parcialmente românica, e subindo a Rua da Saudade, onde morou outro grande poeta, pós-Pessoa, chamado Alexandre O’Neill, sem esquecermos o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu de Arte Antiga, e os de Artes Decorativas, Arqueologia e de Etnografia, da Marinha, dos coches, da Fundação Gulbenkian, das casas antigas, parte delas decoradas de azulejos – pois antes de tudo isso façamos um breve passeio pela já longa história da cidade.
No princípio Lisboa era de origem fenícia. Chamava-se Olissipo, e desenvolveu-se graças à atividade comercial. Ocupada pelos mouros em 716 d.C, foi reconquistada em 1147. Tornou-se capital de Portugal no século XIII. Viveu seu apogeu a partir da era das grandes navegações, na virada do século XV para o XVI, e que resultaram em descobertas de terras e gentes em praticamente todos os continentes, quando a língua portuguesa se firmou como veículo de expressão de um novo reino, a se espraiar por mares nunca dantes navegados na voz de intrépidos marinheiros, que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e descobriram o Brasil em 1500. As aventuras marítimas portuguesas tiveram o seu coroamento com a publicação, em 1575, do monumental Os Lusíadas, de Luís de Camões, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu – como soldado em Ceuta e pelos quinze anos de guerras na Índia.
Mas, enquanto o mundo girava e a Lusitana rodava, colhendo os louros de suas conquistas, Lisboa era parcialmente destruída no devastador terremoto de 1755. Reconstruída e embelezada pelo Marquês de Pombal, viria, num preito de gratidão, a dar-lhe o nome a uma das suas praças mais importantes, surgida naquela reconstrução.
Na virada da História, em tempos modernos, Lisboa iria se postar à beira do cais, com um olhar esfíngico e fatal, a fitar o futuro do passado, como se esperasse avistar os navios que desapareceram na fronteira da nostalgia, ou divisar através da cerração um vulto baço, que volta. Ícone do Modernismo lisboeta, e reconhecido como poeta emblemático da literatura universal, Fernando Pessoa fez-se por vezes o intérprete dos sentimentos passadistas lusitanos, a evocar suas lendas heróicas, em poemas de louvor a navegantes e conquistadores como Vasco da Gama e Dom Sebastião, o rei desaparecido em África na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O rei falhado, que deixou um império na saudade, tornou-se o símbolo de um passado que não volta, por mais desejado que seja o seu retorno. Foram-se as navegações, ficaram as recordações: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram sem casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”). Neste, que é talvez o mais lembrado de seus poemas, Pessoa se pergunta: “Valeu a pena?” E responde, como a consolar-se: “Tudo vale a pena/ Se alma não é pequena”.
Na hora de mostrar a cidade aos turistas, o tom da sua conversa é outro: “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”.
Chegando de navio – continua ele -, o espanto do turista começa na entrada da barra. Depois de passar o farol do Bugio, na embocadura do rio Tejo, lhe aparece a Torre de Belém, “como exemplar magnífico da arquitetura militar do século XVI, em estilo romano-gótico-mourisco”. Aqui, o passageiro que ora vos escreve retém a respiração, para exclamar, à maneira de um Fellini: “Amarcord!” Foi ao cair de uma ensolarada tarde de junho, quando o barco avançou – era italiano e se chamava Augustus – e o rio tornou-se mais estreito, para logo alargar de novo, formando um dos mais largos portos naturais do mundo, tendo à esquerda de quem chega “as massas de casas que se agrupam vivamente como cachos sobre as colinas”. À bordo, um redator publicitário brasileiro que, extasiado diante do casario senhorial coberto de telhas, e a admirar-se no espelho das águas, pensou, de estalo, no título de um anúncio: “Se está vendo mais do que um monte de casas velhas, você a merece”.
Ao desembarcar, com o guia de Pessoa em punho, o turista daria uma olhada na Rocha de Conde de Óbidos, à esquerda do cais, e seguiria pela Rua 24 de Julho, passando pelo Jardim de Vasco da Gama, e, logo a seguir, o Jardim da Praça de Dom Luís, onde está a estátua de bronze do Marquês de Sá da Bandeira, “um dos heróicos chefes das lutas liberais”. O itinerário continuará pela Rua do Arsenal, passará pela Câmara Municipal, “um dos mais belos edifícios da cidade”, e se estenderá até Sintra, via Benfica, Amadora e Queluz, porque “os subúrbios, por si mesmos, são dignos de serem vistos. Também eles estão cheios de belezas – não só naturais, mas também históricas, pois um grande número dos edifícios que lá se veem são evocativos do passado”.
Hoje, o poeta teria que recorrer aos seus célebres heterônimos para guiar os turistas que chegam pelas diversas portas de entrada da cidade, como o movimentado aeroporto da Portela do Sacavém – muito além de uma nova região que passa pela Praça de Londres, e pelas Avenidas dos Estados Unidos e de Roma -, assim como os que preferem os civilizadíssimos transportes ferroviários e os rodoviários. Aliás, as auto-estradas do país chegam a parecer que foram construídas para produções hollyhoodianas, em tempos de “categorização europeia” geral, ó pá!
E mesmo que essa “categorização civilizacional” o fizesse, agora, se sentir um “Fantasma a errar em salas de recordações”, com certeza ele haveria de se rejubilar, ao ler estas palavras da professora Teresa Rita Lopes: “Talvez só hoje Lisboa se tenha tornado o lar de Pessoa. De tal forma que é impossível percorrer certos sítios, certas ruas, sem sentir ao nosso lado os seus passos esvoaçantes”.