TORRES, Antônio. Esperteza saloia. In: Jornal da Tarde, 14 de outubro de 1999.
Esperteza saloia é uma expressão portuguesa, com certeza. Saloio significa camponês, ou indivíduo rústico. Mas também quer dizer finório e velhaco. Escolha o significado que você achar mais adequado ao caso aqui relatado.
É o seguinte: recentemente desembarcou no Rio de Janeiro uma autoridade de Lisboa, algo assim como chefe supremo das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Ao abrir a boca, revelou uma voz cheia de dinheiro. Anunciou aos quatro ventos um montante extraordinário de verbas para os pagodes, festejos e estrepolias variadas da efeméride. Coisa de truz. Eia, sus, cáspite! Se depender de grana, a festa vai ser de arromba. Diante do assanhamento geral à sua volta, a autoridade lisboeta achou por bem jogar um balde de água fria:
— Mas não vamos discutir a História — disse o chefe das comemorações, enfático. E acrescentou: — Isso seria perda de tempo.
Então, tá. Ao comemorar os 500 anos da sua chegada a este lado do paraíso, Portugal não quer que aproveitemos a oportunidade para contar como foi isso ou para refletirmos sobre a nossa própria história. Quer oba-oba em torno do “mundo que o português criou”, o que diz mais respeito a ele do que a nós. Parece mais uma questão interna sua, para levantar o moral lusitano, ao usar o “descobrimento” do Brasil como pretexto para evocar o seu destino e glória imperiais.
O im pressionante é que o Brasil embarcou nessa canoa furada. Ouve o português dizer que discutir a história é perda de tempo e não esboça um ai. Com exceção do historiador José Murilo de Carvalho, não vi ninguém mais levantar a voz, para lembrar que a conquista dos portugueses foi uma carnificina. Sistemática e gradual: exterminaram 1 milhão de nativos a cada século. Ou seja, aqui chegaram com o firme propósito de tomar a terra e escravizar os seus donos.
Como os silvícolas não eram afeitos ao trabalho escravo, trataram de elimina-los cruelmente, substituindo-os pelos negros arrancados da África, outro feito a manchar a História. Agora, espertamente, as autoridades de Lisboa querem esconder tudo isso. E nos enviam delegações de escritores que mais parecem novos jesuítas a serviço d’el rey, com uma cruz numa mão e uma espada na outra.
Numa hora dessas, sinto saudades do poeta português Alexandre O’Neill, um tipo avesso a lantejolas, falecido em 1986, aos 62 anos. Este tinha consciência dos fatos. Tanto que escreveu: “Portugal, meu remorso/ meu remorso de todos nós”. Já Fernando Pessoa aplacou todos os remorsos: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Os portugueses justificaram todas as atrocidades dizendo que índio não tinha alma. Mas quem foi o desalmado?