Do palácio do Catete à venda de Josias Cardoso

Crônica publicada pela Editora Íbis Libris, para a Primavera dos Livros, realizada no Museu da República/ Palácio do Catete, de 29 de novembro a 2 de dezembro de 2007, e da qual Antônio Torres foi o patrono

24 de agosto de 1954.

Estávamos muito longe do Palácio do Catete, onde um tiro fizera o país tremer. Mas não foi pela distância que não o ouvimos. Foi por vivermos numa casa de roça, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas.

Nesse dia, como sempre, o pai acordou com o canto dos galos e dos passarinhos. E fez o que o seu dever mandava: chamou os filhos, um a um, em ordem decrescente, do mais velho ao caçula. Puxou a ladainha, atento às vozes que o acompanhariam, no ritual de todo o amanhecer:

Kyrie eleison.
Christie eleison.

Mesmo sem entendê-las, achávamos bonitas as palavras que recitávamos solenemente, em alvíssaras a mais um dia que desejávamos abençoado por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua Santa Mãe e todos os santos do céu, amém. Depois, aos meninos maiores caberia pular das camas e se arrumar para a escola, que ficava na rua – como o povoado era chamado –, dali a uma boa caminhada.

E lá fomos nós ao reencontro da turma, com o coração em festa. A escola significava também isto: convívio. E bate bola na hora do recreio. Oba!

Naquele dia, porém, iríamos bater era com a cara na porta. O prédio escolar encontrava-se fechado. Coisa boa não podia ser. Felizmente a professora não demorou a aparecer, desfazendo nossos temores em relação a ela, que avisou: as aulas estavam suspensas durante oito dias, em respeito ao falecimento do presidente da República.

– Todo o Brasil está de luto – ela explicou.

E mais não disse, mantendo a informação em seus devidos limites. Como boa cristã, senhora ajuizada, e tudo o mais que se exige de uma educadora, ela não iria alardear para crianças a causa mortis do primeiro mandatário da nação. Nem mesmo de forma eufemística:

– Cometeu o tresloucado gesto…

Ali, qualquer menino ou menina com um mínimo de entendimento sabia o quanto um suicida podia perturbar o sono dos vivos. Opróbrio post-mortem, ao corpo daquele que atentava contra a própria vida era negado o direito de ser levado à igreja, significando isto a condenação pública da sua alma às trevas sepulcrais, sem pouso ou sossego, enquanto lhe restasse tempo de vida a cumprir na Terra.

Não era em tais crenças que eu estava pensando naquela manhã, enquanto procurava uma aglomeração de adultos, para assuntar os acontecimentos, a me perguntar como, assim de repente, a professora fora informada da morte do presidente e do luto nacional, a ser respeitado até naquelas brenhas esquecidas nos confins do tempo, a quase dois mil quilômetros de distância da capital federal, e aonde o correio só chegava de oito em oito dias, no lombo de um burro. Tudo seria esclarecido na venda de Josias Cardoso. Ali, entre o cheiro de pão de milho recém-saído do forno, creolina e cachaça, o ambiente era de velório. De pé, ao balcão, ou sentados em engradados, caixotes e tamboretes, os bêbados de sempre se transformavam nos seres mais tristonhos do mundo. Num extraordinário ato de contrição, ouviam, mudos, um rádio movido a bateria de caminhão noticiar bombasticamente que Getúlio Vargas havia se matado com um tiro no peito, disparado de um Colt calibre 32, de acabamento niquelado, e em cuja coronha reluziam placas de madrepérola. E se condoíam até as lágrimas com as últimas palavras de Vargas, em sua carta-testamento, que se tornaria célebre:

Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

A venda ia se enchendo. Era como se, de uma hora para a outra, todo aquele lugar fosse incondicionalmente getulista. Mas não. Difícil era encontrar uma só casa de roça que não tivesse o cartazete com a foto de Cristiano Machado ao lado de um boi. Naquele mundo de pequenos proprietários rurais houve uma identificação maior com o candidato à presidência pelo PSD (o Partido Social Democrático) nas eleições de 1950, do que com o gaúcho que cativava as massas de trabalhadores urbanos. Agora os sentimentos eram outros. A trágica morte de Getúlio Vargas os fazia oscilar entre a perplexidade e as interrogações. Estaria a mão da grande perdedora em tal pleito, a UDN (União Democrática Nacional), por trás do dedo que apertou o gatilho? Atento à desolação reinante, concentro-me na voz do rádio:

– “… esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém”.

Com essas palavras, que ali deixavam todos tocados, Vargas se rendia como um herói. Sua morte, porém, deixava apreensões no ar:

– É agora que o comunismo vai tomar conta do Brasil.

Comunismo?

Eu ainda não sabia o que era isso. E, com certeza, nem o homem na venda de Josias Cardoso, que tanto o temia.

Saudade. Uma palavra para melhor se conhecer os poetas

Genuinamente lusitana, portanto, intraduzível – ou de difícil tradução. E definida, um tanto abstratamente, como a presença da ausência. Musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo, dos excelsos vates (Punge-me agora trágica saudade…)e cancioneiros populares (Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor), aos mais comuns dos mortais (Saudade de você), ela é, antes de qualquer coisa, uma palavra-chave para um começo de conversa que tem tudo para ir longe.

 Sua definição, origem e história ainda instigam estudiosos da língua portuguesa. Entendida como um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas, significando isto privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado que se deseja reviver, ela traz na sua essência alegria e martírio, tristeza e beleza, riso e lágrima.

Tais ambigüidades ainda seduzem os lexicógrafos contemporâneos, como se pode constatar no verbete que lhe dedicou o educador paulista Paulo Nathanael Pereira de Souza no livro 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, organizado pelo prof. Arnaldo Niskier, e publicado em 2008 em edição nipo-brasileira, dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa para o nosso país. Diante da esfinge que poderia devorá-lo, tornando-o um saudosista, ele se interroga: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”.

Certo, mestre – pieguices à parte. Pois de Camões (o que escreveu: Se de saudade morrerei, ou não, os meus olhos dirão), a Vinícius de Morais, que a cantou belamente no Samba em prelúdio, que compôs com Baden Powell (Ai, que saudades, que vontade de rever nossas vidas…), e isso, imagine, anos depois do seu grande sucesso, Chega de saudade (daquela vez em dupla com Tom Jobim),nem todos foram capazes de tratá-la com o mesmo engenho e arte. O que não falta nos dois lados de Atlântico é o uso e abuso da coitada da saudade em poesia barata, ou no mínimo de gosto duvidoso, e bota aurora da vida e infância querida nisso.  

Nesse sentido, o exemplo clássico é um livro publicado em 1836, e que entrou para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Autor: Gonçalves de Magalhães. Foi ele o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza – ai, meus sais! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.

Passos mais adiante, a saudade viria a ser mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras da nação, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Estamos falando do autor de Ainda uma vez mais, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do seu país: Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá – precisa continuar?

Outra exceção à regra foi o pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, ao comprometer-se com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda pouco lias”. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudade.

Esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal

Alexandre O’Neill/ Um adeus português

Mas como, onde, quando e por que surgiu tal palavra, tão usada e abusada em prosa e verso? Até o autor destas linhas já a maltratou um bocado, como se pode ler no capítulo que lhe dedicou no recém-publicado Dicionário amoroso da língua portuguesa,organizado pelo carioca Marcelo Moutinho e o portuense (ou tripeiro, como se diz em Portugal) Jorge Reis-Sá. Voltemos, porém, ao que interessa aqui:

Filha legítima da última flor do Lácio, portanto tendo o latim no seu DNA, a saudade descende de Solitas e Solis, quer dizer, de uma família chamada Solidão. E por ser vista, por séculos, seculorum, amém, como uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, presume-se que ela remonta à era das grandes navegações, quando a língua portuguesa atravessou os mares na voz dos intrépidos navegantes que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à Foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487 e deram com os seus costados no Brasil (oficialmente) em 1500. Quem partia levava saudades, choradas pelos que ficavam. E assim sendo, a palavra conquistou o seu lugar de pertencimento no coração dos marinheiros e dos que em terra aguardavam o retorno deles, antes mesmo de o português se consolidar como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento foi a publicação de Os Lusíadas, em 1572, como sabemos todos um livro monumental escrito por um soldado chamado Luís de Camões, que se meteu em guerras na Índia durante quinze anos, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. Pronto. Saudade e mar português, tudo a ver, conforme a síntese dessas navegações feita por Fernando Pessoa: Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor.

Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, século após século? De quem poderia ser, senão de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas? Este, sim, passou além da dor, salgando o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou.

Agora, com a palavra os cantores brasileiros. Luiz Gonzaga, o rei do baião: “Ai quem me dera voltar, pros braços do meu xodó/ saudade assim faz doer/ amarga que nem jiló”. Adoniran Barbosa (nas vozes dos Demônios da Garoa): “Saudosa maloca/ maloca querida…” Ataulfo Alves: saudades da Amélia, que era a mulher de verdade, da professorinha, que lhe ensinou o bêabá. Tom Jobim e a saudade do Rio de Janeiro, no Samba do avião. Um sanfoneiro rasgando as Saudades de Matão num arrasta-pé do interior. Ellis Regina cantando Saudades do Brasil.  Dorival Caymmi: “Ai se eu escutasse o que mamãe dizia”. Saudades da Bahia.

Uma luz na escuridão das almas americanas

Cesse tudo que as Musas novas cantam, que um valor antigo se alevanta. Calma, rapeize! Este começo provocativo, obviamente paródico, expressa mais o estado de humilhação do próprio autor destas linhas, ao reler agora essa obra-prima indiscutível que é Luz em agosto (relançada recentemente no Brasil numa bela edição da Cosacnaify), do que a intenção de humilhar quem quer que seja. Porque nesse romance, tão caudaloso quanto o Mississipi, o Pai das Águas, William Faulkner parece nos dizer que estamos, no mínimo, a três doses abaixo do seu talento, “grande demais”, conforme o espanto até de um Sherwood Anderson, aquele que o ajudara a publicar o seu primeiro romance, Paga de soldado, tão logo Faulkner dele se acercara em Nova Orleans, aí pelo ano de 1925, em busca de ensinamentos, por considerá-lo “um milharal com uma história a contar e uma língua com a qual fazê-lo”.

Ao ler as primeiras páginas daquele candidato a seu discípulo, Anderson anteviu a nascente de um rio largo, profundo, deslumbrante, perturbador, a ser contemplado num misto de exaltação e ultraje, pois sua grandeza chega a dar raiva. Valha-nos Deus! Ainda bem que nós, pobres mortais, já não precisamos abatê-lo às garrafadas. Ele mesmo se encarregou disso, dizendo: “Entre o uísque e nada, escolho o uísque”. O que era uma blague do memorável final de seu Palmeiras selvagens: “Entre a dor e o nada, escolho a dor”.

Tal escolha o levaria a não ver a luz de agosto de 1962. Entrou em trevas totais em 6 de julho daquele ano, à distância de dois meses e dezenove dias para chegar aos 65, que completaria em 25 de setembro. Quem sabe a parodiar-se: “É o uísque, e não a dor, que faz você recordar-se de centenas de ruas selvagens e ermas”.

Não, não foi aí que ele virou um monstro-sagrado. Nem no dia 10 de dezembro de 1950, quando a Academia Sueca lhe entregou o Prêmio Nobel, correspondente ao ano anterior. Muito antes da guerra de 1939, e antes mesmo de conquistar o pleno reconhecimento nos Estados Unidos, Faulkner adquirira uma sólida reputação na Europa, sobretudo na França, onde Jean-Paul Sartre se tornara o seu intérprete e propagandista, considerando-o, ao lado de John Dos Passos, o escritor mais importante e mais original já surgido no século 20. Albert Camus e André Malraux viriam a fazer coro com Sartre. E quando Luz em agosto foi publicado na Suécia, em 1944, todos os jornais locais babaram nas gravatas. Saudaram-no como a revelação de uma arte nova, visceral, ao mesmo tempo primitiva e requintada, e que abria largas perspectivas sobre a condição humana, e na qual se sentia o fim de uma civilização condenada. A do arruinado Sul dos Estados Unidos, que se amargurava pelo fracasso na Guerra da Secessão, incapaz de expiar o seu passado escravista. A decadência levava-o à frustração, e daí à escuridão do fanatismo patriótico e religioso, da intolerância racial, da violência insana, o que o impedia de ver uma luz no fundo de sua alma.

É nesse cenário que se movem os personagens de Luz em agosto, “todos em busca de seu lugar num mundo que reservou para eles apenas um destino trágico”, como escreveu o nosso Marçal Aquino, na apresentação desta nova tradução brasileira, de Celso Mauro Paciornik. E diga-se: sem desmerecer a anterior, de Berenice Xavier (publicada em 1948 pela Editora Globo e, em 1983, pela Nova Fronteira), esta de agora é um tour-de-force admirável. Nela, Paciornik consegue captar o cipoal retórico de Faulkner, em sua prosa polifônica com períodos longos, maneiras de falar no passado e no presente, incluindo o pidgin-english dos escravos e seus descendentes, ritmo tempestuoso, obscuridades verbais, fusão de palavras etc. Mas voltemos a Marçal Aquino: “Há escritores que escrevem grandes livros. Há outros, mais raros, que instauram mundos. William Faulkner pertence a essa linhagem”.

Nem sempre o viram assim. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, o New York Herald Tribune protestou, por preferir um laureado “mais sorridente num mundo que se entristece”. E o Times, de Londres, acusou-o de escrever num “estilo de oráculo”, além de “maltratar as palavras do vocabulário com a maior sem-cerimônia”. Bullshit, deve ter pensado o sombrio Faulkner, dando uma risadinha, enquanto voava para as luzes de Paris, e de várias cidades japonesas, e de São Paulo, Brasil, onde, ao acordar de ressaca, puxou a cortina da janela do hotel e exclamou: Oh, my God, Chicago again?!

Meu Deus! Haverá leitor no mundo que deixe de exclamar isso, diante de uma página de Faulkner? Ele parece ter fundido a Bíblia às obras de Shakespeare, Dostoievski e James Joyce, para transformá-las numa originalíssima fábula americana, ao mesmo tempo tenebrosa e iluminada. Não é à-toa que se tornou um escritor para escritores. Não foram poucos os que se renderam ao poder da sua magia, o que é visível em Carson McCullers (a de Balada do café triste), William Styron (A escolha de Sofia), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llhosa, Juan Rulfo (confira no extraordinário Pedro Páramo), Milton Hatoum, o autor de Cinzas do Norte.Ah, sim: o cineasta Glauber Rocha também o incluía entre as suas influências.

Eis aí. Entre Faulkner e nada, eu também escolheria o Faulkner.

Saudade

Do livro Dicionário amoroso da língua portuguesa. Organização: Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá/ Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2009

Esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Alexandre O’Neill

Para isso fomos feitos.
Por isso temos longos braços para os adeuses.
Vinicius de Moraes

Eis o meu inescapável destino: ser ambígua por natureza. Trago no coração alegria e martírio, de que decorre uma tristeza que rima com beleza, a enovelar um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas. Em outras palavras: privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado, que se deseja reviver. Saudade assim até que não é ruim, eu tiro isso por mim, cantava o saudoso Luiz Gonzaga, o rei do baião, numa música popular que também dizia que saudade faz doer, amarga que nem  jiló. Pode me chamar de uma faca de dois legumes, que corta na alma, ui!

Modéstias à parte, sou uma palavra para muita prosa e verso, ponteio de viola, conversa mole, papo perfunctório (perdão, leitores), devaneio, pieguice, riso e lágrima. E é aí que mora o perigo. O de ser a musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo: Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor… Daí um célebre vate dantanho haver me definido como a presença da ausência. Outro, de gosto mais duvidoso, cravou-me um espinho cheirando a flor. E tome metáfora enternecedora servida em frasco de xarope e frases lapidares como as tumbas: Punge-me agora trágica saudade…

(Com a palavra um professor, saudoso das aulas de civismo, que incluíam a cantoria de hinos patrióticos e a declamação de poemas tão inolvidáveis quanto os boleros que ele gostava de dançar).

O professor pigarreia, para desembargar a sua emocionada voz. E ensina: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, se não um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”. Os meninos: “Ai que saudades que eu tenho, da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais”. Vossos aplausos, por favor.

Ora dizem que sou intraduzível. Ora, que estou entre as dez palavras da língua portuguesa de mais difícil tradução. Ambiguidade é isso aí: altamente valorizada para consumo interno, não possuo valor de troca no mercadão universal das Letras. Tirando-se nuestros hermanos de habla hispânica, que têm lá a saudosinha Soledad, os demais tradutores devem me achar uma encrenca, uma pedra na língua deles. Mas quer saber mesmo? Meto-me em sapatos altos, vaidosíssima, toda vez que ouço essa história de que sou uma autêntica filha da última flor do Lácio, significando isto que tenho o latim no meu DNA. Descendo de Solitas e Sólus, quer dizer, de uma família chamada Solidão. É preciso dizer mais?

Mas digo: vindo há muito do tempo, não posso afirmar com exatidão em que dia, hora, mês e ano nasci, e se foi já no século VII, quando surgiu um conjunto dialetal galego-português no noroeste da Península Ibérica, ou mais tarde, quando os portugueses investiram contra os árabes, para a reconquista de suas terras dominadas por eles, e com isso o idioma alastrou-se pelo sul, lá pelas bandas dos Algarves, separando-se do galego e tornando-se o veículo de expressão de um novo reino; ou se foi quando o português se consolidou como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento viria a acontecer com a publicação de Os Lusíadas, em 1572. Antes disso ele, o português, já havia feito muita travessia pelos mares, na voz dos intrépidos marinheiros que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e deram com seus costados no Brasil em 1500. Eu fiquei em terra e me fiz ao mar ao mesmo tempo, a recitar: Cantando [me] espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar o engenho e a arte. Em terra, com os olhos cansados de olhar para o além, cantava La barca, um bolero que ainda ia ser inventado, séculos adiante, enquanto outra parte de mim seguia as pegadas em Ceuta do soldado Luís de Camões, e nos quinze anos mais em que ele se meteu em guerras na Índia, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. No regresso, pegou o mote Se me levam águas, nos olhos as levo, e disso saiu um poema que começa assim: Se de saudade morrerei ou não, meus olhos dirão… E nessas suas linhas, que podem me servir se não de certidão de nascimento, mas de batismo, ele via no espelho das águas a minha condição ambígua: Todas são salgadas, porém as choradas, doces me parecem. Enfim, se eram do mar, da saudade seriam. Navegar era preciso.

Eu nasci para marinheiro,
Mas pus os óculos e fiquei em terra.
Alexandre O’Neill

A esta altura parece claro que minha biografia começa mesmo é no tempo das grandes navegações. Quanta aventura, tanta desventura, conquistas e espantos, cobiça e sonhos. Feliz o tempo que passou, passou. Tempo tão cheio de recordações… Bota saudade nisso.

Ó  mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

(Lágrimas de Portugal? Cá entre nós, isso não parece lavrado numa tabacaria da zona portuária, por um bardo alambicado que queria se passar por outra pessoa? E pessoa cujo estro iria deixar a posteridade a babar nas gravatas?).

Mas sim, assim me vêem, por séculos, seculorum, amém. Uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, e a acenar para o navio que lá vai à linha do horizonte, já a adentrar a fronteira da nostalgia. E, enquanto o mundo gira e a lusitana roda, Portugal volta a cantar um dos maiores sucessos de sua música ligeira: Ó tempo, volta pra trás. Quem anda em busca do tempo perdido está sentindo o que? Sodade, mô bem, sodade.

Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa

Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E de quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, dia após dia, ano após ano, século após século? De quem poderia ser se não de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas?! Este, sim, salgou o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou, ao passar além da dor.

Eis-me aí: passar além da dor. Agora, sim, dá saudade da pessoa que escreveu isto, e não aqueles bafios marinhos lacrimosos e filosofantes, tudo vale a pena se a alma não é pequena, valei-me minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Haverá santa que me salve da poesia barata, a que deveras afaga e consola, e da qual nem aquela venerável pessoa ficou imune? Mas vamos combinar: uma coisa é o saudosismo individual, para consumo privado, sem perturbações da ordem pública; outra é o coletivo, que vem em cruzadas assustadoras em busca do futuro do passado, heil! Ideologicamente, porém, não favoreço apenas as margens direitas do mundo. Estou em todos os lados, todas as torcidas, correntes de pensamento, credos etc., onde quer que haja um coração que a seu modo sente saudade de tempos mais felizes – eis aí porque atualmente estou arrebentando nas bolsas dos sentimentos, nas quais a minha cotação atinge índices nunca dantes imaginados.

Recentemente encontrei num romance brasileiro um personagem a dizer para o retrato oval do seu finado avô – um fervoroso fiel à igreja católica, apostólica, romana -, que só sentia saudade de duas coisas: o tempo dos boleros e o tempo dos comunistas, embora não soubesse exatamente por que; talvez houvesse mais sonhos naquele tempo, ele acabou por concluir, ao final de seu solilóquio. Pode-se deduzir que uma saudade como essa é conseqüência dos estilhaços projetados pela queda do Muro de Berlim, acontecida em anos recentes do passado. Mas veja: um mapa mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta. Quem escreveu isso foi Oscar Wilde. E ele morreu no ano de 1900. Eu vim de longe e para longe vou, porque o ser humano está sempre sentindo falta de alguma coisa que acha que já teve melhor.

O teu perfume predileto exala
No piano saudoso, à tua espera.
Castro Alves

Presumivelmente cheguei ao Brasil acompanhando o movimento utópico dos barcos. Aqui me espraiei. Tanto mar, tanto chão, quanta selva. Então me desdobrei em duplo sentimento: oceânico e telúrico. Juntando os dois em um, dá a solidão de um país grande. No ano de 1836 tive a subida honra de ser homenageada em um livro que entraria para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Chamemos isso de um desconvite à leitura. Autor: Gonçalves de Magalhães. Era o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza, ufa! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.

Passos mais adiante, eu viria a me sentir muito mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras do povo brasileiro, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Pelo menos dois de seus poemas puxam a brasa para a minha sardinha: Ainda uma vez, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do Brasil: Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Com essa estrofe fica a sugestão de mote para o seguinte capítulo: Do quanto a saudade esteve, está e sempre estará no coração dos exilados. Mestrandos e doutorandos, mãos às teses.

Sim, sim, também tive alguma influência na lírica do pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometida com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade, escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda há pouco lias. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudades.

No Brasil se diz: “Triste é não ter de que sentir saudade”. E mais: “Saudade não tem idade”. Aqui me mimam, fazem-me cafunés, carregam-me nos colos, ora como vó coruja, ora como mãe gentil, ou mana do peito, ou filha querida, amada amante. E até me puseram no andor das 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, espécie de breve dicionário afetivo japonês-português, publicado em 2008 dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa. Não deu para entender nos caracteres nipônicos que palavra corresponde à saudade, mas o certo é que ganhei um verbete amoroso, assinado por Paulo Nathanael Pereira de Souza, um educador paulista já premiado pela Academia Brasileira de Letras. Arigatô.

Aqui tenho data: 30 de janeiro. É o Dia Nacional da Saudade. Por que 30 de janeiro? Naveguei (nada a ver com uma volta às minhas origens, pois, pois) na Internet e não encontrei nenhuma pista. Escolheram uma data e pronto, estamos conversados. Homenagem é igual a cavalo dado: não se olha os dentes. Além do mais, em vez de continuar a pesquisa em outras vias, liguei-me catatonicamente a um programa dedicado ao assunto, na televisão. Um repórter saiu às ruas para saber de que as pessoas mais sentem saudades. Um nordestino que mora no Rio disse que de sua terra natal. Um carioca mostrou-se saudoso do tempo em que sua cidade vivia em paz, sem a violência atual. Outros, de um passado mais glorioso no futebol brasileiro. La nave vá. Ontem os heróis eram os dos mares. Hoje, os dos gramados.

Por fim, mas não por último, registre-se que há brasileiros que passam por mim fingindo que não me conhecem. Para estes, saudade e melancolia são sentimentos retrógrados, reacionários, bregas. Múmias paralisantes. Melhor devolvê-las a Portugal – de onde nunca deveriam ter saído -, aos cuidados da alma imortal de Fernando Pessoa, aquele que em vida carregou nos dedos três anéis irreversíveis: a tristeza, a desgraça, a solidão.

Chega de saudade, decretou a dupla Vinícius de Moraes-Tom Jobim, ao compor a música tida e havida como o marco da Bossa Nova. Mas olha que coisa mais linda, mais cheia de graça: saudades do tempo de Tom e Vinicius. Cordiais saudações.

Balada para o centenário de Dona Rachel

Como no tempo do Serviço de Alto Falantes a Voz do Sertão, quando alguém, com muito amor e carinho, dedicava uma bela página do cancioneiro popular – Tu és/ divina e graciosa… – à moça de azul e branco a passar na calçada da igreja, o autor destas linhas já escolheu a trilha sonora para as comemorações do centenário da inesquecível Dona Rachel, no dia 17 de novembro deste ano de 2010: uma terna balada em louvor à sweet comic Valentine/ you make me smile, ora na interpretação melosa de Frank Sinatra, ora na lancinante versão instrumental do trompetista MilesDavis. E assim o locutor que vos escreve contemplará dois aspectos memoráveis da vida e obra da homenageada. A veia cômica e a força dramática.

Na ficção, ela pintou, com cores fortes, cenários inclementes, quadros sociais deploráveis, trágicos destinos humanos. E isto, a bem dizer, desde menina, quando, antes de completar 20 anos, estreou nas letras nacionais com um pequeno romance que causou um grande assombro. Tanto que até hoje basta citarmos O quinze para se saber de qual Rachel estamos falando. Aquela que nos legou reflexões como esta:

“A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado”.

Na intimidade, porém, ela era funny, sim,muito engraçada.

Veja-se, por exemplo, o que o escritor Carlos Heitor Cony conta em sua bem humorada crônica Da arte de falar mal, ao recordar-se de “uma amiga famosa, romancista histórica, que me quis tornar imortal como ela”, e que, adoentada, sem poder sair de casa, pediu-lhe, por intermédio de uma sobrinha e secretária, que fosse buscar o voto. “É evidente que fui, pois muito queria vê-la” – escreve Cony, acrescentando:

“Ela me recebeu nordestinamente afável. Sentada em sua cadeira de palhinha, com ares de senhora-de-engenho, esticou-me o envelope branco:

– Toma. Aqui estão os meus votos. Agora não falemos em literatura. Vamos falar mal de todo mundo!”

E eis como Cony conclui esse episódio:

“Saí tarde da sua casa. Não deixamos pedra sobre pedra […] Só falamos mal dos ausentes, que era o restante da humanidade, pois em sua sala só havia o visitado e o visitante”.

A primeira vez que me vi em frente dela foi num jantar da cearense Madalena Sá, moradora do Leblon, para a cronista Elsie Lessa, que vivia em Cascaes, Portugal, e estava de passagem pelo Rio. A partir de então, passei a invejar a famosa Dona Rachel, por sempre dizer o que lhe dava na telha, sem se preocupar com o que os outros pensassem disso. O que deve lhe ter sido profilático, se considerarmos a sua longevidade, que em muito ultrapassou a média da expectativa de vida geral. Ela beirou os 93 anos, quase sempre em forma, atilada, de língua afiada. Recordo-a ao telefone, quando retornei a ligação de um tradutor francês, seu hóspede, e que não se encontrava, naquele momento. Dona Rachel aproveitou para esticar conversa, informando que o moço havia saído com a namorada, também francesa, com quem iria se casar em breve, ela informava, com surpresa, pois não punha a mão no fogo quanto à masculinidade do seu visitante. Comentava isso de maneira divertida, mas que hoje seria considerada politicamente incorreta.

Ela não perdoava nem os seus mais respeitáveis confrades. Comentando um encontro em Lisboa com um célebre poeta, que lá estava para receber o Prêmio Camões, detonou: “Ele ficou tão bêbado que não teve pernas para ir à cerimônia. O prêmio acabou sendo recebido pelo nosso embaixador”.

Uma vez, em Fortaleza, ela foi entrevistada por Pedro Bial, no palco de um auditório lotado. Pergunta vai, resposta vem, seu entrevistador comentou o desagrado dos paulistas com o trecho de suas memórias sobre Mário de Andrade.

– Ora! – ela exclamou. – Todo mundo em nosso meio sabia o que Mário de Andrade era, e que ele próprio não negava. Agora, só porque eu escrevi aquilo, dizendo que ele era… – e aí ela pronunciou com todas as letras a palavra chula, fazendo a platéia cair na gargalhada, sem sequer esperar a conclusão da sua frase… – São Paulo quer me linchar?

Em síntese: escrevendo, ela era densa, intensa, dramática. Falando, podia ser hilária, por sua arte ao falar mal. Talvez assim ela quisesse as comemorações de seu centenário: com todos os presentes desancando os ausentes, e dando umas boas risadas.

Blues para Cortázar

Do livro “Sobre Pessoas”, Editora Leitura, BH, 2007

Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.

Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.

O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.

O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que esta tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.

Tudo isto vem a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em tradução de Eric Nepomuceno. Trata- se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.

Por essas e outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.

Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.

Uivo em surdina

Do livro “Sobre Pessoas”, Editora Leitura, BH, 2007

Era uma noite de breu sem luar, envolta no melhor nevoeiro paulistano, sem a menor possibilidade de estrelas. A única coisa a fazer era ficar em casa, ouvindo os uivos lancinantes de um trompete.

Miles Davis na vitrola, sem parar. Como em outras noites, outras circunstâncias, outras cidades – Lisboa ou Paris, Porto ou Milão, Bruxelas ou Rio de Janeiro, Londres ou Salvador da Bahia. O tempo todo, a mesma música: My funny Valentine. Sim, uma velha e terna e melosa canção americana. Isso, claro, antes de Miles Davis tocá-la, reinventá-la, como se invertesse a letra original, “não, você não me faz sorrir”, como se resolvesse suas dores mais fundas, para enlouquecer o mundo – para fazer a noite doer.

Pesada noite do pesadíssimo ano de 1970. Imaginou aquela música num filme, abafando os gritos dos torturados. São Paulo também pesava. Foi aí que ele disse:

– Preste atenção no tempo que ele segura a nota. Que fôlego! É impressionante.

E ela:

– Parece um cão uivando para a Lua.

Ele:

– Ou um boi berrando para o Sol.

– Mas é de noite – ela insistiu. – Só poder ser um cão uivando para a Lua.

Podia ser tudo isso, ou nada disso, ou até, talvez, uma jam session a um luar inexistente. E era apenas uma fase Miles Davis, o que foi capaz de entrar em todas e sair de todas, indo muito além do arco-íris, num planeta chamado Jazz. Não importava o que tocava. Mas o que ele estava tocando. No seu trompete, Michael Jackson parecia um compositor sinfônico.

Miles Davis! Todos os trompetes havidos e a haver. Ouvi-lo é ficar com a impressão de que ele reinventou um instrumento – e, de uma certa maneira, o próprio jazz –, e que a história do trompete passou a ser contada assim: antes e depois dele.

Ao morrer, aos 65 anos, o angustiado Miles Davis deixa a fama de um músico incomum, sempre à frente do seu tempo, mas antipático e arrogante, a ponto de tocar de costas para o público. “Toco de frente para os músicos”, ele chegou a se defender.

Sua história e importância estão em um livro, vídeos, nas páginas de jornais e revistas de todo o mundo. Então, para que mais estas linhas? Para dizer que foi uma pena ele não ter tido paciência de esperar pela jam session de adeus ao século XX, que vai chegando ao fim como um uivo de surdina.

06.10.1991

Esperteza Saloia

TORRES, Antônio. Esperteza saloia. In: Jornal da Tarde, 14 de outubro de 1999.

Esperteza saloia é uma expressão portuguesa, com certeza. Saloio significa camponês, ou indivíduo rústico. Mas também quer dizer finório e velhaco. Escolha o significado que você achar mais adequado ao caso aqui relatado.

É o seguinte: recentemente desembarcou no Rio de Janeiro uma autoridade de Lisboa, algo assim como chefe supremo das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Ao abrir a boca, revelou uma voz cheia de dinheiro. Anunciou aos quatro ventos um montante extraordinário de verbas para os pagodes, festejos e estrepolias variadas da efeméride. Coisa de truz. Eia, sus, cáspite! Se depender de grana, a festa vai ser de arromba. Diante do assanhamento geral à sua volta, a autoridade lisboeta achou por bem jogar um balde de água fria:

— Mas não vamos discutir a História — disse o chefe das comemorações, enfático. E acrescentou: — Isso seria perda de tempo.

Então, tá. Ao comemorar os 500 anos da sua chegada a este lado do paraíso, Portugal não quer que aproveitemos a oportunidade para contar como foi isso ou para refletirmos sobre a nossa própria história. Quer oba-oba em torno do “mundo que o português criou”, o que diz mais respeito a ele do que a nós. Parece mais uma questão interna sua, para levantar o moral lusitano, ao usar o “descobrimento” do Brasil como pretexto para evocar o seu destino e glória imperiais.

O im pressionante é que o Brasil embarcou nessa canoa furada. Ouve o português dizer que discutir a história é perda de tempo e não esboça um ai. Com exceção do historiador José Murilo de Carvalho, não vi ninguém mais levantar a voz, para lembrar que a conquista dos portugueses foi uma carnificina. Sistemática e gradual: exterminaram 1 milhão de nativos a cada século. Ou seja, aqui chegaram com o firme propósito de tomar a terra e escravizar os seus donos.

Como os silvícolas não eram afeitos ao trabalho escravo, trataram de elimina-los cruelmente, substituindo-os pelos negros arrancados da África, outro feito a manchar a História. Agora, espertamente, as autoridades de Lisboa querem esconder tudo isso. E nos enviam delegações de escritores que mais parecem novos jesuítas a serviço d’el rey, com uma cruz numa mão e uma espada na outra.

Numa hora dessas, sinto saudades do poeta português Alexandre O’Neill, um tipo avesso a lantejolas, falecido em 1986, aos 62 anos. Este tinha consciência dos fatos. Tanto que escreveu: “Portugal, meu remorso/ meu remorso de todos nós”. Já Fernando Pessoa aplacou todos os remorsos: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

Os portugueses justificaram todas as atrocidades dizendo que índio não tinha alma. Mas quem foi o desalmado?

Lisboa rima com Pessoa

“Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem disfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”. É assim que Fernando Pessoa começa o guia da cidade que ele chamava de seu lar, e onde se sentia fincado no chão, “senão como uma raiz pelo menos como um poste”. Intitulado O que o turista deve ver, esse guia permaneceu desconhecido durante décadas, até ser encontrado, em 1987, dentro de uma arca com mais de 27 mil documentos pessoanos, que estavam sendo pesquisados em função das comemorações do centenário do poeta, no ano seguinte. O achado foi “um grande e inesperado prazer”, escreveu a professora Teresa Rita Lopes no prefácio ao guia, afinal publicado em 1992, e que, ela esclarece, não é curiosidade avulsa, mera resposta a uma ocasional solicitação, pois fazia parte de um vasto plano de Pessoa. Por volta de 1919, ele decidira escrever, com fervor patriótico, contra o que classificava de “descategorização europeia” e “descategorização civilizacional” – de Portugal, pois, pois.

Portanto, vejamos a velha cidade, cheia de encanto e beleza, através do olhar amoroso de quem se dizia “transeunte de corpo e alma destas ruas baixas que vão dar no Tejo”. Mas antes de seguirmos seus passos de flâneur pela Baixa, a planície na qual desemboca a Avenida da Liberdade, e se assenta o centro de Lisboa, com seus históricos logradouros (Restauradores, Rossio, Chiado, as ruas do Ouro e da Prata, a Praça do Comércio), parando aqui e ali para ver o tempo passar às mesas de cafés lendários como os do Cais do Sodré, o Nicola, A Brasileira, o Martinho da Arcada (onde Pessoa fazia ponto); ou de nos aventurarmos pelo clássico roteiro que inclui o Castelo de São Jorge, passando pela Catedral, de construção parcialmente românica, e subindo a Rua da Saudade, onde morou outro grande poeta, pós-Pessoa, chamado Alexandre O’Neill, sem esquecermos o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu de Arte Antiga, e os de Artes Decorativas, Arqueologia e de Etnografia, da Marinha, dos coches, da Fundação Gulbenkian, das casas antigas, parte delas decoradas de azulejos – pois antes de tudo isso façamos um breve passeio pela já longa história da cidade.

No princípio Lisboa era de origem fenícia. Chamava-se Olissipo, e desenvolveu-se graças à atividade comercial. Ocupada pelos mouros em 716 d.C, foi reconquistada em 1147. Tornou-se capital de Portugal no século XIII. Viveu seu apogeu a partir da era das grandes navegações, na virada do século XV para o XVI, e que resultaram em descobertas de terras e gentes em praticamente todos os continentes, quando a língua portuguesa se firmou como veículo de expressão de um novo reino, a se espraiar por mares nunca dantes navegados na voz de intrépidos marinheiros, que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e descobriram o Brasil em 1500. As aventuras marítimas portuguesas tiveram o seu coroamento com a publicação, em 1575, do monumental Os Lusíadas, de Luís de Camões, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu – como soldado em Ceuta e pelos quinze anos de guerras na Índia.

Mas, enquanto o mundo girava e a Lusitana rodava, colhendo os louros de suas conquistas, Lisboa era parcialmente destruída no devastador terremoto de 1755. Reconstruída e embelezada pelo Marquês de Pombal, viria, num preito de gratidão, a dar-lhe o nome a uma das suas praças mais importantes, surgida naquela reconstrução.  

Na virada da História, em tempos modernos, Lisboa iria se postar à beira do cais, com um olhar esfíngico e fatal, a fitar o futuro do passado, como se esperasse avistar os navios que desapareceram na fronteira da nostalgia, ou divisar através da cerração um vulto baço, que volta. Ícone do Modernismo lisboeta, e reconhecido como poeta emblemático da literatura universal, Fernando Pessoa fez-se por vezes o intérprete dos sentimentos passadistas lusitanos, a evocar suas lendas heróicas, em poemas de louvor a navegantes e conquistadores como Vasco da Gama e Dom Sebastião, o rei desaparecido em África na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O rei falhado, que deixou um império na saudade, tornou-se o símbolo de um passado que não volta, por mais desejado que seja o seu retorno. Foram-se as navegações, ficaram as recordações: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram sem casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”). Neste, que é talvez o mais lembrado de seus poemas, Pessoa se pergunta: “Valeu a pena?” E responde, como a consolar-se: “Tudo vale a pena/ Se alma não é pequena”.

Na hora de mostrar a cidade aos turistas, o tom da sua conversa é outro: “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”.

Chegando de navio – continua ele -, o espanto do turista começa na entrada da barra. Depois de passar o farol do Bugio, na embocadura do rio Tejo, lhe aparece a Torre de Belém, “como exemplar magnífico da arquitetura militar do século XVI, em estilo romano-gótico-mourisco”.  Aqui, o passageiro que ora vos escreve retém a respiração, para exclamar, à maneira de um Fellini: “Amarcord!” Foi ao cair de uma ensolarada tarde de junho, quando o barco avançou – era italiano e se chamava Augustus – e o rio tornou-se mais estreito, para logo alargar de novo, formando um dos mais largos portos naturais do mundo, tendo à esquerda de quem chega “as massas de casas que se agrupam vivamente como cachos sobre as colinas”. À bordo, um redator publicitário brasileiro que, extasiado diante do casario senhorial coberto de telhas, e a admirar-se no espelho das águas, pensou, de estalo, no título de um anúncio: “Se está vendo mais do que um monte de casas velhas, você a merece”.

Ao desembarcar, com o guia de Pessoa em punho, o turista daria uma olhada na Rocha de Conde de Óbidos, à esquerda do cais, e seguiria pela Rua 24 de Julho, passando pelo Jardim de Vasco da Gama, e, logo a seguir, o Jardim da Praça de Dom Luís, onde está a estátua de bronze do Marquês de Sá da Bandeira, “um dos heróicos chefes das lutas liberais”. O itinerário continuará pela Rua do Arsenal, passará pela Câmara Municipal, “um dos mais belos edifícios da cidade”, e se estenderá até Sintra, via Benfica, Amadora e Queluz, porque “os subúrbios, por si mesmos, são dignos de serem vistos. Também eles estão cheios de belezas – não só naturais, mas também históricas, pois um grande número dos edifícios que lá se veem são evocativos do passado”.

Hoje, o poeta teria que recorrer aos seus célebres heterônimos para guiar os turistas que chegam pelas diversas portas de entrada da cidade, como o movimentado aeroporto da Portela do Sacavém – muito além de uma nova região que passa pela Praça de Londres, e pelas Avenidas dos Estados Unidos e de Roma -, assim como os que preferem os civilizadíssimos transportes ferroviários e os rodoviários. Aliás, as auto-estradas do país chegam a parecer que foram construídas para produções hollyhoodianas, em tempos de “categorização europeia” geral, ó pá!

E mesmo que essa “categorização civilizacional” o fizesse, agora, se sentir um “Fantasma a errar em salas de recordações”, com certeza ele haveria de se rejubilar, ao ler estas palavras da professora Teresa Rita Lopes: “Talvez só hoje Lisboa se tenha tornado o lar de Pessoa. De tal forma que é impossível percorrer certos sítios, certas ruas, sem sentir ao nosso lado os seus passos esvoaçantes”.

O Discreto Rubião

Idéias / Jornal do Brasil – 29/09/91

Recordo-o num longínquo fim de tarde, talvez em 1974 ou 75. Estávamos num bar, ao fundo de uma galeria escura, nas proximidades da Imprensa Oficial, onde até hoje se edita o Suplemento Literário Minas Gerais, criado por ele e, por muitos anos, considerado a melhor publicação do gênero, em nível nacional. Recordo a cidade: pelo seu clima agradável, só podia mesmo ser Belo Horizonte, em tempo de primavera. Doces ares de uma província já não tão provinciana: um pouco do que a cidade tinha de melhor estava à mesa. Nem todos os bons escritores mineiros haviam partido em busca de mundos mais efervescentes. Ali estavam Oswaldo França Jr., Wander Piroli, Roberto Drummond, Benito Barreto, Adão Ventura, Duílio Gomes, Geraldo Magalhães, tantos, tantos. Até o carioca Sérgio Sant’Anna, que vivia lá, podia perfeitamente ser confundido com um deles. À cabeceira, um mestre – o decano Murilo Rubião.

Recordo-o em sua ereta elegância, economia de gestos e sobriedade verbal: lembrava mais um gerente financeiro do que um homem de letras. O autor de O ex-mágico não iria retirar nenhuma mágica da manga. Inútil esperar alguma pirotecnia do contista de O Pirotécnico Zacarias. Ele era tido e havido como precursor do realismo fantástico, muito antes de os hispanos dominarem a área. Fantástico, esse Rubião? Melhor imaginá-lo um ser humano normal, que bebia o seu uísque num copo longo, falando pouco e devagar. E quando pedimos a conta, fomos informados que ela já havia sido paga pelo cavalheiro de paletó e gravata que ia se retirando como chegara: discretamente. E assim, para o visitante, mais uma lenda ia por terra – a de que todo mineiro é mão-de-vaca.

Não houve um segundo encontro. Quer dizer, não deu para lhe pagar “a próxima”, insistindo que a outra havia sido dele. Agora só na eternidade, em que a outra havia sido dele. Agora só na eternidade, em que não acreditava. Incrível. Um dia depois da sua morte  chega de BH um jornal com estas suas exatas palavras: “Como abandonei a religião e sou hoje um agnóstico, a minha tendência é não aceitar a eternidade e também não acreditar na morte em vida. Então fico nesse círculo constante entre a eternidade e a vida, sem aceitar essa separação entre a vida e a morte”. Tudo bem, velho Rubião, só que não dá mais para discutir isso com você, numa segunda rodada.

Mas não foram só dois dedos de prosa e uma despesa de bar o que muitos de nós ficamos-lhe devendo. Ao inaugurar a coleção Nosso Tempo, da Editora Ática, nos anos 70, com uma tiragem inicial de 30 mil exemplares para O Pirotécnico Zacarias, que se esgotou rapidamente, ele contribuiu para uma mudança de postura editorial em relação aos escritores brasileiros. O recatado Rubião nunca fez alarde disso. Ele morreu como viveu: mineiramente.