Cesse tudo que as Musas novas cantam, que um valor antigo se alevanta. Calma, rapeize! Este começo provocativo, obviamente paródico, expressa mais o estado de humilhação do próprio autor destas linhas, ao reler agora essa obra-prima indiscutível que é Luz em agosto (relançada recentemente no Brasil numa bela edição da Cosacnaify), do que a intenção de humilhar quem quer que seja. Porque nesse romance, tão caudaloso quanto o Mississipi, o Pai das Águas, William Faulkner parece nos dizer que estamos, no mínimo, a três doses abaixo do seu talento, “grande demais”, conforme o espanto até de um Sherwood Anderson, aquele que o ajudara a publicar o seu primeiro romance, Paga de soldado, tão logo Faulkner dele se acercara em Nova Orleans, aí pelo ano de 1925, em busca de ensinamentos, por considerá-lo “um milharal com uma história a contar e uma língua com a qual fazê-lo”.
Ao ler as primeiras páginas daquele candidato a seu discípulo, Anderson anteviu a nascente de um rio largo, profundo, deslumbrante, perturbador, a ser contemplado num misto de exaltação e ultraje, pois sua grandeza chega a dar raiva. Valha-nos Deus! Ainda bem que nós, pobres mortais, já não precisamos abatê-lo às garrafadas. Ele mesmo se encarregou disso, dizendo: “Entre o uísque e nada, escolho o uísque”. O que era uma blague do memorável final de seu Palmeiras selvagens: “Entre a dor e o nada, escolho a dor”.
Tal escolha o levaria a não ver a luz de agosto de 1962. Entrou em trevas totais em 6 de julho daquele ano, à distância de dois meses e dezenove dias para chegar aos 65, que completaria em 25 de setembro. Quem sabe a parodiar-se: “É o uísque, e não a dor, que faz você recordar-se de centenas de ruas selvagens e ermas”.
Não, não foi aí que ele virou um monstro-sagrado. Nem no dia 10 de dezembro de 1950, quando a Academia Sueca lhe entregou o Prêmio Nobel, correspondente ao ano anterior. Muito antes da guerra de 1939, e antes mesmo de conquistar o pleno reconhecimento nos Estados Unidos, Faulkner adquirira uma sólida reputação na Europa, sobretudo na França, onde Jean-Paul Sartre se tornara o seu intérprete e propagandista, considerando-o, ao lado de John Dos Passos, o escritor mais importante e mais original já surgido no século 20. Albert Camus e André Malraux viriam a fazer coro com Sartre. E quando Luz em agosto foi publicado na Suécia, em 1944, todos os jornais locais babaram nas gravatas. Saudaram-no como a revelação de uma arte nova, visceral, ao mesmo tempo primitiva e requintada, e que abria largas perspectivas sobre a condição humana, e na qual se sentia o fim de uma civilização condenada. A do arruinado Sul dos Estados Unidos, que se amargurava pelo fracasso na Guerra da Secessão, incapaz de expiar o seu passado escravista. A decadência levava-o à frustração, e daí à escuridão do fanatismo patriótico e religioso, da intolerância racial, da violência insana, o que o impedia de ver uma luz no fundo de sua alma.
É nesse cenário que se movem os personagens de Luz em agosto, “todos em busca de seu lugar num mundo que reservou para eles apenas um destino trágico”, como escreveu o nosso Marçal Aquino, na apresentação desta nova tradução brasileira, de Celso Mauro Paciornik. E diga-se: sem desmerecer a anterior, de Berenice Xavier (publicada em 1948 pela Editora Globo e, em 1983, pela Nova Fronteira), esta de agora é um tour-de-force admirável. Nela, Paciornik consegue captar o cipoal retórico de Faulkner, em sua prosa polifônica com períodos longos, maneiras de falar no passado e no presente, incluindo o pidgin-english dos escravos e seus descendentes, ritmo tempestuoso, obscuridades verbais, fusão de palavras etc. Mas voltemos a Marçal Aquino: “Há escritores que escrevem grandes livros. Há outros, mais raros, que instauram mundos. William Faulkner pertence a essa linhagem”.
Nem sempre o viram assim. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, o New York Herald Tribune protestou, por preferir um laureado “mais sorridente num mundo que se entristece”. E o Times, de Londres, acusou-o de escrever num “estilo de oráculo”, além de “maltratar as palavras do vocabulário com a maior sem-cerimônia”. Bullshit, deve ter pensado o sombrio Faulkner, dando uma risadinha, enquanto voava para as luzes de Paris, e de várias cidades japonesas, e de São Paulo, Brasil, onde, ao acordar de ressaca, puxou a cortina da janela do hotel e exclamou: Oh, my God, Chicago again?!
Meu Deus! Haverá leitor no mundo que deixe de exclamar isso, diante de uma página de Faulkner? Ele parece ter fundido a Bíblia às obras de Shakespeare, Dostoievski e James Joyce, para transformá-las numa originalíssima fábula americana, ao mesmo tempo tenebrosa e iluminada. Não é à-toa que se tornou um escritor para escritores. Não foram poucos os que se renderam ao poder da sua magia, o que é visível em Carson McCullers (a de Balada do café triste), William Styron (A escolha de Sofia), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llhosa, Juan Rulfo (confira no extraordinário Pedro Páramo), Milton Hatoum, o autor de Cinzas do Norte.Ah, sim: o cineasta Glauber Rocha também o incluía entre as suas influências.
Eis aí. Entre Faulkner e nada, eu também escolheria o Faulkner.