Genuinamente lusitana, portanto, intraduzível – ou de difícil tradução. E definida, um tanto abstratamente, como a presença da ausência. Musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo, dos excelsos vates (Punge-me agora trágica saudade…)e cancioneiros populares (Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor), aos mais comuns dos mortais (Saudade de você), ela é, antes de qualquer coisa, uma palavra-chave para um começo de conversa que tem tudo para ir longe.
Sua definição, origem e história ainda instigam estudiosos da língua portuguesa. Entendida como um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas, significando isto privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado que se deseja reviver, ela traz na sua essência alegria e martírio, tristeza e beleza, riso e lágrima.
Tais ambigüidades ainda seduzem os lexicógrafos contemporâneos, como se pode constatar no verbete que lhe dedicou o educador paulista Paulo Nathanael Pereira de Souza no livro 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, organizado pelo prof. Arnaldo Niskier, e publicado em 2008 em edição nipo-brasileira, dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa para o nosso país. Diante da esfinge que poderia devorá-lo, tornando-o um saudosista, ele se interroga: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”.
Certo, mestre – pieguices à parte. Pois de Camões (o que escreveu: Se de saudade morrerei, ou não, os meus olhos dirão), a Vinícius de Morais, que a cantou belamente no Samba em prelúdio, que compôs com Baden Powell (Ai, que saudades, que vontade de rever nossas vidas…), e isso, imagine, anos depois do seu grande sucesso, Chega de saudade (daquela vez em dupla com Tom Jobim),nem todos foram capazes de tratá-la com o mesmo engenho e arte. O que não falta nos dois lados de Atlântico é o uso e abuso da coitada da saudade em poesia barata, ou no mínimo de gosto duvidoso, e bota aurora da vida e infância querida nisso.
Nesse sentido, o exemplo clássico é um livro publicado em 1836, e que entrou para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Autor: Gonçalves de Magalhães. Foi ele o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza – ai, meus sais! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.
Passos mais adiante, a saudade viria a ser mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras da nação, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Estamos falando do autor de Ainda uma vez mais, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do seu país: Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá – precisa continuar?
Outra exceção à regra foi o pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, ao comprometer-se com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda pouco lias”. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudade.
Esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal
Alexandre O’Neill/ Um adeus português
Mas como, onde, quando e por que surgiu tal palavra, tão usada e abusada em prosa e verso? Até o autor destas linhas já a maltratou um bocado, como se pode ler no capítulo que lhe dedicou no recém-publicado Dicionário amoroso da língua portuguesa,organizado pelo carioca Marcelo Moutinho e o portuense (ou tripeiro, como se diz em Portugal) Jorge Reis-Sá. Voltemos, porém, ao que interessa aqui:
Filha legítima da última flor do Lácio, portanto tendo o latim no seu DNA, a saudade descende de Solitas e Solis, quer dizer, de uma família chamada Solidão. E por ser vista, por séculos, seculorum, amém, como uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, presume-se que ela remonta à era das grandes navegações, quando a língua portuguesa atravessou os mares na voz dos intrépidos navegantes que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à Foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487 e deram com os seus costados no Brasil (oficialmente) em 1500. Quem partia levava saudades, choradas pelos que ficavam. E assim sendo, a palavra conquistou o seu lugar de pertencimento no coração dos marinheiros e dos que em terra aguardavam o retorno deles, antes mesmo de o português se consolidar como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento foi a publicação de Os Lusíadas, em 1572, como sabemos todos um livro monumental escrito por um soldado chamado Luís de Camões, que se meteu em guerras na Índia durante quinze anos, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. Pronto. Saudade e mar português, tudo a ver, conforme a síntese dessas navegações feita por Fernando Pessoa: Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor.
Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, século após século? De quem poderia ser, senão de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas? Este, sim, passou além da dor, salgando o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou.
Agora, com a palavra os cantores brasileiros. Luiz Gonzaga, o rei do baião: “Ai quem me dera voltar, pros braços do meu xodó/ saudade assim faz doer/ amarga que nem jiló”. Adoniran Barbosa (nas vozes dos Demônios da Garoa): “Saudosa maloca/ maloca querida…” Ataulfo Alves: saudades da Amélia, que era a mulher de verdade, da professorinha, que lhe ensinou o bêabá. Tom Jobim e a saudade do Rio de Janeiro, no Samba do avião. Um sanfoneiro rasgando as Saudades de Matão num arrasta-pé do interior. Ellis Regina cantando Saudades do Brasil. Dorival Caymmi: “Ai se eu escutasse o que mamãe dizia”. Saudades da Bahia.