Do livro “Sobre Pessoas”, Editora Leitura, BH, 2007
Era uma noite de breu sem luar, envolta no melhor nevoeiro paulistano, sem a menor possibilidade de estrelas. A única coisa a fazer era ficar em casa, ouvindo os uivos lancinantes de um trompete.
Miles Davis na vitrola, sem parar. Como em outras noites, outras circunstâncias, outras cidades – Lisboa ou Paris, Porto ou Milão, Bruxelas ou Rio de Janeiro, Londres ou Salvador da Bahia. O tempo todo, a mesma música: My funny Valentine. Sim, uma velha e terna e melosa canção americana. Isso, claro, antes de Miles Davis tocá-la, reinventá-la, como se invertesse a letra original, “não, você não me faz sorrir”, como se resolvesse suas dores mais fundas, para enlouquecer o mundo – para fazer a noite doer.
Pesada noite do pesadíssimo ano de 1970. Imaginou aquela música num filme, abafando os gritos dos torturados. São Paulo também pesava. Foi aí que ele disse:
– Preste atenção no tempo que ele segura a nota. Que fôlego! É impressionante.
E ela:
– Parece um cão uivando para a Lua.
Ele:
– Ou um boi berrando para o Sol.
– Mas é de noite – ela insistiu. – Só poder ser um cão uivando para a Lua.
Podia ser tudo isso, ou nada disso, ou até, talvez, uma jam session a um luar inexistente. E era apenas uma fase Miles Davis, o que foi capaz de entrar em todas e sair de todas, indo muito além do arco-íris, num planeta chamado Jazz. Não importava o que tocava. Mas o que ele estava tocando. No seu trompete, Michael Jackson parecia um compositor sinfônico.
Miles Davis! Todos os trompetes havidos e a haver. Ouvi-lo é ficar com a impressão de que ele reinventou um instrumento – e, de uma certa maneira, o próprio jazz –, e que a história do trompete passou a ser contada assim: antes e depois dele.
Ao morrer, aos 65 anos, o angustiado Miles Davis deixa a fama de um músico incomum, sempre à frente do seu tempo, mas antipático e arrogante, a ponto de tocar de costas para o público. “Toco de frente para os músicos”, ele chegou a se defender.
Sua história e importância estão em um livro, vídeos, nas páginas de jornais e revistas de todo o mundo. Então, para que mais estas linhas? Para dizer que foi uma pena ele não ter tido paciência de esperar pela jam session de adeus ao século XX, que vai chegando ao fim como um uivo de surdina.
06.10.1991