Luzes verdes, sonhos dourados

Conferência proferida na Uneb – Universidade do Estado da Bahia, na cidade de Alagoinhas (campus 02), em 17.12.09

Ou: quando as marcas culturais da cidade de Alagoinhas eram sinalizadas pelos letreiros luminosos nas fachadas das lojas na Praça J. J. Seabra – a das árvores podadas artisticamente em forma de pássaros -, seguindo pela Rua Coronel Anísio Cardoso, cujo movimento intensificava-se à noite com a chegada na Estação da Leste de um trem chamado Marta Rocha, que trazia os passageiros mais elegantes e os jornais da capital, e depois das sessões do Cine Azi, onde toda uma geração aprendeu a beijar, a dizer “Ai lóvi iu”, e a andar como se tivesse acabado de apear do cavalo do cow-boy. E a ficar horas diante de um espelho, caprichando num pimpão igual ao do Elvis Presley – com a untuosa ajuda da brilhantina Glostora -, cantando “Don’t leave me now”, como no filme “O prisioneiro do amor”, e…

Era uma vez um menino que nunca tinha visto uma cidade tão iluminada.

Ele estava de passagem, com os pais. Vinham de longe e mais longe iriam, para pagar uma promessa a Nossa Senhora das Candeias. Pernoitariam ali mesmo, na Anísio Cardoso, e no Alagoinhas Hotel, do seu hospitaleiro tio Zica. “Que luzes bonitas!”, exclamou o menino. “E são verdes!” Sua mãe, dona Durvalice, o repreendeu: “Não se admire demais do que está vendo, não. Para não dizerem que você é um tabaréu”.

Mas era. Daí o seu deslumbramento. Naquele anoitecer, a cidade iluminava-se diante dos seus olhos como num conto de fadas. Ou como na “viagem inventada no feliz” de um outro menino, o do conto “As margens da alegria”, de João Guimarães Rosa, que só iria ler muito mais adiante, na idade adulta, com o encantamento de quem se reencontra com a criança que havia sido um dia.

As luzes davam uma aura de sonho à cidade onde seus tios José, o Zica, e Antônio se tornaram prósperos hoteleiros, na era dos caixeiros-viajantes. O hotel do segundo tio se chamava Brasil. E ficava a poucos passos do outro. Num 2 de fevereiro, dia da festa de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, então um distrito de Inhambupe e hoje a cidade de Sátiro Dias, eles reapareceram na terra em que haviam nascido. Chegaram num automóvel empoeirado, vestidos de terno branco e acompanhados por suas elegantíssimas esposas chamadas Nerina e Nair. Imagine o alvoroço do lugar com a repentina chegada daqueles dois filhos pródigos. Não seria exagero compará-lo ao provocado por um prefeito de Nova York de origem italiana, chamado La Guardia, no dia em que visitou a sua aldeia natal, na Sicília. “Eu carreguei você no meu ombro”, diziam-lhe emocionadas senhoras, que de bom grado voltariam a carregá-lo, mas num andor, se seus braços ainda o permitissem. Foi mais ou menos assim o que aconteceu no regresso dos ilustres filhos do Junco. Até o pai deles (chamava-se Adelino), que tanto relutara em permitir que fossem embora, ainda jovenzinhos, agora, no papel do mais abençoado dos patriarcas, desmanchava-se em mesuras em meio ao entra-e-sai na sala de visitas de sua senhorial “casa da rua”, cuja porta e janelas só se abriam nos dias de missa e santas missões. Era como se agora ele acabasse de ser ungido a um novo poder: o de pai de dois filhos bem sucedidos num mundo infinitamente mais civilizado. E esse mundo tinha um nome que a partir daquele dia passaria a ser pronunciado de boca cheia: Alagoinhas! A nova Meca daqueles sertanejos, situada a 15 léguas de distância, na linha divisória entre o sertão e o recôncavo. Tão perto, quão longe. A estrada ainda era de terra, sujeita aos atoleiros, e veículos motorizados naquelas bandas eram raridades.

Voltemos ao retorno vitorioso aos seus pagos daqueles endomingados cavalheiros, que assim fariam o outrora austero senhor que agora os recepcionava, desmanchando-se em sorrisos, esquecer a consumição do dia em que aqueles seus dois filhos tentaram escapar do domínio patriarcal, o que seria descoberto um pouco antes do romper da aurora, quando os chamou – “Zica, Tonho, acordem para rezar a ladainha” -, e não houve resposta. Então pulou da cama e pôs toda a sua numerosa prole em ação, na busca dos desaparecidos, em terreiros e quintais, casa de farinha, curral, paiol, pastos. E nada. Por fim só restou a todos admitir que eles haviam fugido. O desapontamento diante de uma situação que parecia irremediável não impediu aquele pai de raciocinar com rapidez. Mais que depressa mandou chamar o seu vaqueiro Alvino, que imediatamente dispararia a galope pelas sete léguas da estrada que levava à cidade de Inhambupe, até encontrar as duas rezes desgarradas, laçá-las e trazê-las de volta ao rebanho. Cumprida com destreza, a missão do vaqueiro impediu os dois fugitivos de pegarem o atalho para um lugar chamado Serraria, destino, afinal, que seria adiado, até o dia em que o pai desta história finalmente se rendesse, ainda que de coração partido, aos constantes apelos para deixá-los ir embora, e que Deus os levasse, antes que o Diabo os carregasse.

Portanto, não precisaram fugir uma segunda vez. Nesta, partiram com o consentimento de um pai vencido pelo cansaço ou que afinal sucumbira à incontrolável determinação daqueles dois filhos de romperem os laços que os prendiam à sua autoridade. Com o passar do tempo, o Junco os esquecera. Pouco ou nada se sabia deles: onde estavam, o que faziam, como viviam. E agora eles davam os ares de suas graças, com seus modos civilizados, cada qual todo alinhado, bem falante, e belamente acompanhado. Embora também originárias de um remoto lugar chamado Serraria, onde o destino os levara a conhecê-las, as duas beldades pareciam modelos saídos de um figurino. E, além de bonitas, eram alegres, simpáticas, e muito educadas. Bem nascidas, estudaram na capital do estado, e só pela boa educação que haviam recebido poder-se-ia imaginar o cabedal que agregavam. A assinatura do pai delas, por exemplo, era um aval irrecusável em qualquer agência bancária de Alagoinhas, cidade cuja influência comercial se estendia por vários municípios da região. Logo, viagem “inventada no feliz” mesmo foi a dos intrépidos Zica e Tonho. Parecia até que assim fora escrito nas estrelas que iluminaram as suas noites de sonho no Junco: que um dia eles iriam chegar a Alagoinhas, onde seriam muito felizes. Não iria faltar quem lhes seguisse os rastros, a começar pelos seus próprios irmãos Edgar, Manoelito (o Louro), Dinalva, Marieta, Zizi…

Em 1954, o menino do começo desta história acabaria sendo levado pelos seus tios Zica e Nerina, para estudar no ginásio do professor Carlos Cunha, uma bela construção com um amplo e bem arborizado pátio interno, dotado de áreas para a prática de esportes e para a realização de festas, como a da laranja, uma das mais concorridas da cidade. As salas de aula tinham janelas que se escancaravam para um paraíso ecológico. Todos os caminhos do Ginásio de Alagoinhas passavam por laranjais, cujas cercas eram um convite a um pulo, ainda que isso pudesse significar três dias de suspensão, além da obrigatoriedade de se escrever quinhentas vezes uma mesma frase, em forma exaustiva de compromisso de que o invasor de sítios alheios jamais voltaria a cometer tal delito.

Além do olho de lince de um vigia (o senhor Teonílio), e das diligências dos bedéis (senhor Emiliano, dona Maria e dona Deográcia, a pontualíssima batedora do sino para a entrada e saída das salas), das ordens unidas e aulas de educação física, o ginásio do professor Carlos Cunha impunha ainda os rigores das longas caminhadas no trajeto de casa até ele, para quem não vivia nas suas circunvizinhanças, ou seja, ali pelas proximidades do hospital Dantas Bião, depois do qual uma singela estradinha de areia estendia-se até a Lagoa do Frade. Aqui, vale o registro de que em Alagoinhas, na década de 1950, não havia nenhuma linha urbana de ônibus; contava-se nos dedos o número de automóveis; só uns poucos felizardos possuíam bicicleta; e menos ainda os que invejavelmente desfilavam montados numa lambreta, depois que tal veículo motorizado virou sonho de consumo dos rapazes que se imaginavam na pele de John Herbert no filme “Alegria de viver”. Ou seria na de James Dean, em “Juventude transviada”?

Mas inveja mesmo, de fulminar a rapaziada, quem provocava era o ginasiano Valdemar Paraguassú, ao eletrizar o salão do Clube Social, quando a orquestra Os Turunas, comandada pelo clarinetista Benigno, atacava de rock and roll, e ele, com seu balanço inimitável, mais parecia um personagem do filme Rock around the clock, causando espanto a uma cidade que ainda se movia a passos de bolero (dois pra lá, dois pra cá). Aliás, naqueles anos também de rumba, chá-cha-chá, samba-canção, valsa, baião etc., Alagoinhas fazia bonito nos salões também ao ritmo da Filarmônica da Euterpe, principalmente no carnaval e na micareta. Folia foi o que nunca faltou aqui.

Não se deduza que tudo nesta cidade se resumia aos bailes e ao roubo de laranjas nas horas vagas. Havia ainda o alvoroço no Parque à saída das meninas do Santíssimo Sacramento – que mistérios escondiam as mimosas alunas do colégio das freiras? -, um piano ao cair da tarde na Rádio Emissora, a voz inigualável do locutor F. R. Dias, Glenn Miller tocando “Moonligth serenade” no Serviço de Alto-Falantes, nas noites de luar, o jornal do doutor Walter Robatto e o da LBV (Legião da Boa Vontade), dirigido por um funcionário do Banco do Brasil, o senhor Lima, o Rotary e o Lyons Clube, o Tiro de Guerra 110 (“Escola, sentido”!), os maçons, os espíritas, as missas no convento dos capuchinhos e na igreja de Santo Antônio, as procissões, as festas juninas. Um dia as moças da cidade passaram a se postar às janelas, inebriadas ante o desfile das caminhonetes carregadas de possíveis bons partidos, identificados pelos capacetes com a logomarca da Petrobras na frente, quase tão emblemática quanto o dístico “Ordem e progresso” da bandeira nacional. E ficariam ainda mais assanhadas quando geólogos canadenses ocuparam a mais bela casa da Praça Ruy Barbosa. Encarregados de detectar a existência de petróleo por aqui, todo fim de tarde eles podiam ser vistos bebendo gim na Sorveteria Chic, enquanto apreciavam o movimento da Rua Coronel Anísio Cardoso. À noite iam ao cinema, pois, para eles, não havia muito mais a fazer. Mas tinha de acontecer. Um dia voltariam para o Canadá, levando as garotas mais cobiçadas do Parque.

Conquanto, como admite agora o alagoinhense Valdemar Paraguassú, a vida cultural de Alagoinhas fosse limitada, esta cidade parecia uma metrópole para quem vinha de um lugar sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, e que aqui, além de tudo isso, iria encontrar livros e livros às mãos cheias: na estante do grêmio do ginásio, nas bibliotecas da Prefeitura e do IBGE, nas casas do professor Carloman Carlos Borges e do doutor juiz (e poeta) Eurico Alves Boaventura, além dos que podia adquirir na Livraria São Jorge, do saudoso Teófilo Maciel. Sem esquecer os romances que sua tia Nerina recebia pelo correio, a crônica de Rachel de Queirós e os Arquivos Implacáveis de João Condé na revista O Cruzeiro, que seu tio Zica levava para casa toda semana. Portanto, na culturalmente limitada Alagoinhas daquele tempo era possível encontrar-se estímulos para a leitura e a criação literária. No ginásio, o jornal mural criado por Kerdoval Macedo oferecia espaço para a publicação de pequenos textos, enquanto que outros mais longos vinham à luz nas páginas do bravo “Avante”, cuja redação era composta por Josival Fagundes, Aristóteles Freitas Costa, José Carlos Fiscina, e o locutor que vos escreve, que nele publicaria os seus primeiros rabiscos em prosa e poesia. E do jornalzinho do ginásio chegaria às páginas mais públicas do “Alagoinhas Jornal”, que saía uma vez por mês e era vendido na banca da Praça J. J. Seabra, e também por assinatura.

E era no jornal do cirurgião-dentista Walter Robatto que morava o perigo. Uma diatribe publicada ali contra o aumento da mensalidade do ginásio por pouco não custou a expulsão do articulista, que vinha a ser o mesmo que agora conta como foi. Por causa de uma expressão maliciosa, “a casa grande do professor Carlos Cunha”, o autor da brincadeira foi chamado às falas. Mal contendo sua indignação, no seu habitual tom de voz manso, educado, o dono do ginásio perguntou:

– O senhor sabe o que significa isto, não sabe?

– Seu ginásio é uma casa comprida, portanto grande. Foi isso o que eu quis dizer – respondeu-lhe o aluno emparedado.

– Sabe o que significa a palavra rapace? – continuou o professor Carlos Cunha, sempre em sereníssimo tom de voz. – O que o senhor está me dizendo é a mesma coisa que eu tivesse escrito a seu respeito chamando-o de rapace, que significa rapinante, e depois alegasse que o que queria mesmo era chamá-lo de rapaz. Logo, ao usar o título do livro de Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”, para definir o meu ginásio, o senhor estava me chamando de senhor de engenho escravocrata.

Ele esticou o braço e puxou uma gaveta, da qual retirou a ficha do pálido aluno à sua frente, que em sua defesa insistia no argumento da equivalência casa grande – grande casa, o que não iria colar, jamais.

– Só não vou lhe expulsar porque suas notas são boas. Mesmo assim, o senhor fica suspenso por três dias. E também exijo uma retratação, no mesmo jornal.

Ufa! Que lição para o escriba-aprendiz. Imagine o desastre que seria uma expulsão daquele ginásio, já que não havia outro na cidade. Olhando por esse ângulo, a pena reduzida a uma suspensão de três dias não era o fim do mundo. E era até menos vergonhosa do que ter de se retratar publicamente. Significava uma pausa para refletir sobre as margens da alegria de escrever. “Le parole sono pietre”, diria seu colega e amigo ítalo-alagoinhense José Carlos Fiscina, o seresteiro que gostava de cantar “Mamma son tanto felice”, para embalar os sonhos das meninas internadas no colégio das freiras. Uma opinião por escrito tinha muito mais riscos do que escrever as cartas dos apaixonados analfabetos da sua terra, como havia feito no seu tempo de escola rural, quando era recompensado com deliciosos direitos autorais, pagos em guloseimas, nos dias de feira, e não com punições, pensava aquele que acabava de perder sua inocência em relação à liberdade de expressão.

O curioso era que poderia ter sido expulso do ginásio por fazer uso de uma expressão aprendida nele (mas empregada contra ele, na abalizada avaliação do seu proprietário), e ao próprio aluno significando isto um aprendizado do manejo com as palavras. Um exercício de escrita, enfim, entre tantos para os quais professores daquele mesmíssimo ginásio não lhe poupavam incentivos. E isto desde o exame de admissão, quando a bela Claudionora – que ficava ainda mais encantadora quando cantava Angelitos negros nas solenidades realizadas no Salão Nobre -, cravou uma belíssima nota dez na prova de redação de um certo aluno egresso da Escola Rural de Sátiro Dias, e que assim iria à forra da tal de matemática, da qual passaria raspando, com uma salvadora, para não dizer misericordiosa, nota mínima! Uma goleada de 10 a 5 das letras sobre os números. Como se aquele exame de admissão ao Ginásio de Alagoinhas já lhe pudesse servir também de teste vocacional.

Quatro tipos inesquecíveis e um destino

1. Primeiro, recordo a figura de um sujeito esquisitão que apareceu em Alagoinhas num dia qualquer, trajado como quem ia a uma missa solene. Com toda probabilidade, o estranho transeunte havia desembarcado na Estação da Leste, ou seja, da Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro. Devia até ter chegado no “Marta Rocha”, o trem que ganhara esse nome, na boca do povo, por ser o mais bonito de todos que circulavam de Salvador para Alagoinhas e vice-versa. Seja lá qual tenha sido o meio de transporte que o trouxera, sua presença só iria ser notada no momento em que ele atravessou a Praça J. J. Seabra em uma hora de pouco movimento, sem cumprimentar ninguém nem ser cumprimentado.

Seria aquele estranho personagem um caixeiro-viajante? – perguntavam-se os hoteleiros, cada qual ansiando, secretamente, por merecer a primazia da hospedagem. Não demorou muito para todos o perderem de vista, ao dobrar uma esquina. Mais tarde se saberia que ele tinha vindo do Rio, de mala e cuia, para passar a morar aqui, junto a seus familiares, originários de Sergipe.

Isso dava asas às confabulações: por que o distinto cavalheiro trocava a efervescência da capital federal pela vida pacata de uma cidade do interior baiano? Coisa boa não devia ter aprontado no Rio de Janeiro. Vai ver era um comunista, em busca de refúgio num lugar em que a polícia nem sonhasse onde ficava.

Mas não. Naquele ano de 1957, em plena era JK, respirava-se os bons ares da liberdade política. Tivesse ou não um passado nebuloso, o homem misterioso que, ao chegar, provocava interrogações, tinha em seu destino um emprego no único ginásio da cidade. Era um professor de Geografia, que surpreenderia os seus alunos pela intimidade com que falava de serras como a do Mar, da Mantiqueira, dos Órgãos, e do Pico da Bandeira. Aos poucos, revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Cada vez mais surpreendente, esse professor! Não fiquei lhe devendo apenas a descoberta de rios, lagos, mares, continentes, capitais e países do mundo. Nem lhe sou grato apenas pelo seu esforço para que eu não fosse derrubado, numa prova final, por equações e figuras geométricas. Mais que tudo, devo-lhe a descoberta da moderna prosa brasileira, no que ele se empenhou com um prazer inenarrável, fora das salas de aula, além de me haver introduzido à arte da oratória, quando me ajudou a escrever um discurso. Foi ele quem me fez ler Jorge Amado, ao me emprestar o “Mar morto”, que devorei numa noite, arrebatado por aquela história da vida e do amor no mar, cujo texto parecia uma versão contemporânea da poesia de Castro Alves, o que até então eu queria ser, quando crescesse – até porque o nosso mais querido poeta era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres. Depois, fui apresentado aos “Capitães de areia”, e, na sequência, a “Angústia”, de Graciliano Ramos, e aí já me vi no centro de um poderoso ciclo das nossas letras, o dos romancistas nordestinos da década de 1930, os que efetivamente puseram em prática o ideário da Semana de Arte Moderna, capitaneada pelos paulistas Mário e Oswald de Andrade em 1922, e que propugnava um rompimento literário brasileiro da norma lusitana.

Em resumo, o sujeito esquisitão procedente do Rio de Janeiro chegara a Alagoinhas cheio de novidades. Seu nome: Carloman Carlos Borges. Trata-se de um homem de letras que se tornou psicanalista, e que hoje vive em São Gonçalo dos Campos. E o melhor desta história: com mais de meio século de magistério, o doutor Carloman Carlos Borges continua lecionando Matemática na Universidade Estadual de Feira de Santana, certamente com o mesmo prazer com que, numa noite estrelada de Alagoinhas, em pleno impacto da viagem sideral do Sputnik, olhou para o céu, e, em plena Praça J. J. Seabra deu uma aula sobre a importância das viagens espaciais. Que seja infinita a memória de Alagoinhas daquele mestre extra-classe de múltiplas disciplinas, no ano de 1957.

2. Meu segundo tipo inesquecível de Alagoinhas foi o professor Artur. Ou, por extenso, Artur Pereira Oliveira (obrigado, Valdemar Paraguassú, por ainda se lembrar do sobrenome dele, como do veterinário Hernani Martinelli, que ensinava Inglês; da sua mulher, Diva Martinelli, a professora de Francês; do professor Mário Rocha, que chamávamos de Sputnik, por seu andar frenético, agitando os braços, cuja lembrança puxa outra: a do irmão dele, João Rocha, que seria assassinado pela ditadura militar, ao regressar de Cuba; do professor de Latim, o ex-padre Luís “Pancinha”; e do quanto a beleza da professora Claudionora deixava a mocidade louca).

Agora, memorável mesmo era a sensibilidade literária do professor Artur. Um dia ele passou um dever de casa: fazer uma redação sobre Alagoinhas. Um aluno deu asas à imaginação e, num arroubo juvenil, achando-se abençoado pelas musas, e sentindo nos dedos o borbulhar do gênio, escreveu um longo poema, no qual fazia um roteiro sentimental de ruas, praças, bairros, igrejas, fauna, flora, enfim, tudo o que os seus olhos viam na cidade. E o entregou rigorosamente no prazo. Mas como o professor recolheu todos os trabalhos para lê-los em casa, a espera da avaliação o fez penar em torturante ansiedade. Felizmente na aula seguinte não aconteceu o que ele temia: ter que ler o seu poema em voz alta e morrer de vergonha. O professor Artur distribuiu notas e elogios para todos, dizendo-se, porém, surpreso com o aluno que fez o seu dever de casa em versos. E o próprio professor os leu. Imagine a dimensão do estímulo literário que aquele seu gesto simbolizava.

E não ficou nisso. Recordo agora o dia em que ele entrou na sala com o jornal “A Tarde” debaixo do braço. E foi logo anunciando que o assunto da sua aula seria uma crônica publicada no dia anterior, por considerá-la condizente com a sua disciplina, e também de interesse público. Título: “O menino de Alagoinhas”. E leu-a, com a voz embargada, visivelmente emocionado.

Tratava-se da história de um menino que tivera suas pernas mutiladas por um trem, enquanto caminhava pelos trilhos da estação do São Francisco para a da Leste. Traumatizada com o acidente, a cidade se dividira entre os que achavam que para o acidentado teria sido preferível a morte ao sofrimento de sobreviver sem as duas pernas; e os que viam nesse sentimento, por mais piedoso que pudesse parecer, uma crueldade tão chocante quanto a trágica mutilação sofrida pelo menino. A tormentosa discussão acabara repercutindo numa das colunas mais lidas do jornal “A Tarde”, graças à carta de um atônito leitor de Alagoinhas ao seu titular, um célebre cronista chamado Adroaldo Ribeiro Costa (tio do hoje exímio contista Aramis Ribeiro Costa), rogando-lhe que escrevesse uma crônica que trouxesse alguma luz ao conflito das opiniões. A carta impressionara o cronista, a ponto de ceder o seu espaço para ela, na íntegra, sem tirar nem por uma única vírgula. Adicionara-lhe apenas uma linha de introdução, explicando que a recebera de um menino de Alagoinhas, e que fazia dela a sua crônica daquele dia, pois falava por si mesma e dispensava comentários. Para a glória do professor Artur, o menino cronista por um dia no mais lido jornal do estado era seu aluno.

Recordo-o ainda a chamar o tal aluno para uma conversa particular, depois da aula, quando então lhe recomendou que seguisse o caminho da prosa e não o da poesia. Foi como se naquele instante o professor Artur Pereira Oliveira estivesse selando um destino.

3. Agora uma sombra amiga passeia com minha alma de confidências por escuras ruas do passado, não para esquecer a longa noite do tempo, ou para aflorar no meu caminho a sinfonia do seu tormento, mas para evocar o poeta que chegou a esta cidade em 1959 e aqui viveu até 1964, o ano do golpe militar, quando foi preso e torturado brutalmente com chutes e pontapés nas areias do Cachorro Magro, em inominável desrespeito à sua figura humana e à dignidade da sua magistratura de meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas.  Nascido em Feira de Santana em 1909, o doutor Eurico Alves Boaventura estava com 50 anos quando aqui chegou, depois de ter vivido em Salvador, e em Capivari (hoje Macajuba), Tucano, Riachão de Jacuípe, Poções e Canavieiras, de onde fora transferido para cá, o que viria a significar algo de novo à vida cultural da cidade, ainda que nenhum de nós – e mesmo nenhum que tenha privado de sua intimidade nos saraus literários que ele promovia – tivesse a real dimensão da sua estatura de “figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, como hoje atesta o consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Sua filha Maria Eugênia Boaventura, que mora em São Paulo (onde é professora da Unicamp, a Universidade de Campinas), ainda se lembra das tertúlias realizadas na biblioteca que ficava na sala de visitas da casa em que aqui viveu parte da sua infância, à Rua Carlos Gomes, 63, assim como de algumas pessoas que as frequentavam: a professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado José Giése da Cruz (primo do autor destas linhas, que naquele ano morava com ele, sua mãe, dona Alzira, e a irmã dele, Gesilda). Maria Eugênia se lembra ainda que o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai também marcava presença naqueles encontros literários; que o doutor Eurico foi o fundador do Lyons Clube de Alagoinhas, tendo sido o seu presidente; e que ele lecionou no ginásio, onde introduziu uma disciplina abrangendo uma ampla pauta de conhecimentos.

Quem teve o privilégio de conviver com ele não mais leria poesia da mesma maneira de antes. Por trás daquele juiz de província escondia-se um intelectual de vanguarda, que estabeleceu um diálogo poético com Manuel Bandeira, “um arquiteto de novas paisagens verbais”, como bem o define hoje o professor da UEFS Rubens Alves Pereira, e se correspondeu com Jorge de Lima, de cuja obra se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”. Pois no dizer do próprio Eurico, ele e este ícone da poesia modernista se tornaram bons camaradas. Quanto à sua correspondência com o autor de “Pasárgada”, ocorreu com uma troca de poemas. Ao escrever, aí pelo ano de 1930, a “Elegia para Manuel Bandeira”, em que o convidava a dar um pulo a Feira de Santana para “comer pirão de leite com carne assada de volta do curral” e “sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda”, ele recebeu de Bandeira a seguinte resposta:

Escusa

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o gás carbono das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores da madrugada.

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

Em Alagoinhas, o doutor Eurico nos levaria a deixar o romantismo e o parnasianismo de lado por uns tempos, para ler Manuel Bandeira e os poetas que ele traduziu – como o espanhol Federico Garcia Lorca e os franceses Paul Eluard e Charles Baudelaire -, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira, Cassiano Ricardo, e o baiano Godofredo Filho. E assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio…

 Ao sair da prisão, o doutor Eurico foi transferido para Vitória da Conquista, e de lá para Salvador, onde se aposentou e veio a falecer, em 1974, não deixando um único livro publicado, o que pode servir de explicação para o silêncio em torno da sua importância literária, que só começou a ser quebrado a partir de 1989, com a publicação pela Ufba do seu alentado ensaio Fidalgos e vaqueiros, obra iniciada em 1952 e concluída em 1963, e que trata da saga dos que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, e que levaria à civilização do pastoreio. Em 1990, a professora Maria Eugênia reuniria sua produção poética num volume publicado pela Empresa Gráfica da Bahia. Ainda no final dessa década (1999), sairia o livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri – Godet (hoje diretora do departamento de Português da Universidade de Rennes, França),em edição da EGB apoiada pela Secretaria da Cultura e Turismo e a Fundação Cultural do Estado. Na sequencia das iniciativas para tirá-lo das sombras, destaca-se ainda o colóquio História, poesia, sertão, realizado na UEFS nos dias 29, 30 e 31 de julho de 2009, em homenagem ao centenário de nascimento do poeta feirense que teve um capítulo da sua trajetória escrito em Alagoinhas. Mesmo assim sua obra “continua restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata o arquiteto, artista plástico e também poeta Juraci Dórea. E aqui fica este pequeno tributo ao meritíssimo juiz-poeta que nesta cidade tornaria mais dourados os sonhos de uma juventude que ele ajudaria a crer-se promissora.  

4. Ao apagar das luzes de 1959, estava este escrevinhador sentado num banco da Praça J.J. Seabra, pensando na vida, sem saber o que fazer dela, quando, de repente, num passe de mágica, eis que chega e se abanca ali ao lado ninguém menos do que o seu anjo da guarda, que não precisou se apresentar, por ser um ente conhecido: um notório comunista chamado Mário Alves, que, como sempre, portava um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado do Rio de Janeiro para ser distribuído em Alagoinhas. Mas calma! Aquele comunista não espetava padres nem comia criancinhas, conforme os párocos apregoavam em seus sermões dominicais. Longe de ser um herege sanguinário – cruz credo! -, Mário Alves era uma figura de utilidade pública reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Antes de puxar conversa com o jovem pensador ao seu lado, ele acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou, acompanhando com o olhar a trajetória da fumaça, para, enfim, começar a falar.

Depois de dizer que havia lido uns artiguinhos que aquele rapaz vinha escrevendo para o Alagoinhas Jornal, perguntou-lhe se tinha algum plano para o futuro. “Escrever”, respondeu-lhe o jovem pensador, como se nem tivesse pensado no que estava dizendo. Ao que o outro emendou: “Quer ser jornalista?” Ora, se queria! E como! Então ali, naquela tarde, e num banco da Praça J. J. Seabra, o destino lhe sorriu. No dia seguinte, antes das 9 horas da manhã, o magnânimo Mário Alves lá estava à porta da Estação da Leste, à espera do rapaz que na tarde anterior parecia não saber o que fazer de si mesmo. E com dois bilhetes para o Marta Rocha, que luxo! Como se isso fosse pouco, o borracheiro, que vivia todo sujo de graxa, vestia-se de um impecável terno branco. Ao chegar à capital, dirigiu-se a um escritório na Rua Chile, onde perguntou a uma recepcionista se o doutor João Falcão estava. Antes que ela terminasse a frase “E quem deseja falar com ele?”, veio uma voz lá de dentro simplificando tudo:

– É você, Mário?

Sim, era ele mesmo. Mário Alves, o comunista de Alagoinhas, amigo do capitalista João da Costa Falcão, proprietário de uma imobiliária, de um banco e de um jornal diário que ambicionava fazer uma revolução na imprensa baiana, e que o abraçaria calorosamente, perguntando-lhe que bons ventos o traziam.

– Vim lhe pedir para botar este menino no seu jornal.

E o todo poderoso doutor João da Costa Falcão:

– Você quer mesmo ser jornalista, meu jovem?

O jovem em questão jamais iria esquecer o tom afável da voz daquele que tinha a chave da porta da frente de um mundo que sempre sonhara em entrar, e cujos umbrais ele estaria ultrapassando dali a poucos minutos, ao dobrar uma esquina e subir as escadas para a redação do Jornal da Bahia, na companhia de seu próprio dono, e sob a proteção de um anjo da guarda, que retornaria logo para Alagoinhas, assim que seu protegido fosse confiado às boas mãos do redator-chefe Ariovaldo Matos – um escritor! -, que aceitou de bom grado o pedido do seu patrão:

– Ari, arranje aí um lugar para este menino!

Com o assentimento do redator-chefe, o dono do jornal e seu amigo Mário se foram.  E o rapaz, que até o dia anterior se sentia sem destino sobre a Terra, agora encontrava uma vereda que o levaria a outros caminhos do mundo, até retornar aqui, para contar como tudo começou.

Obrigado, Alagoinhas. Muitíssimo obrigado.