“Carta ao Bispo” Folha de São Paulo – 21 de outubro de 1979
José Monserrat Filho
Torres começa com Nietzsche, de epígrafe: “Resta-nos a arte para não morrermos de verdade.” Ou seja, o homem só consegue transcender através da arte, que seria outra realidade, criada e moldada pelo próprio homem a seu bel-prazer. Na realidade mesma, no mundo concreto em que vivemos, não há chance de transcendência. O homem não pode mudar o mundo para melhor, porque este não obedece à sua vontade. O homem é objeto, não sujeito.
A derrota de Gil, beijando um copo de veneno aos 40 anos, após escrever uma carta ao Bispo, viria, mais uma vez, confirmar esta impotência universal, agora num país especialmente propício ao fracasso humano, devido a condições sociais demasiado injustas e massacrantes.
Até que ponto Torres é fiel a Nietzsche? Até o desespero de uma visão solitária do mundo. A partir daí, há um escritor poderoso que constrói sua arte, não para fugir do mundo concreto, mas para enfrentá-lo, saber como ele é e como funciona na alma das pessoas. Há uma terra palpável, um povo “escabreado” que vive de cabeça baixa, uma revolta latente e uma vontade de lutar – “Queria salvar um lugar e um povo”.
Em cada frase, Torres procura furar e penetrar a realidade brutal, com aquela linguagem revoltada que lhe vem das vísceras e que está cada vez mais bem escrita. O resultado é um romance da melhor tradição brasileira e, ao mesmo tempo, novo, agitado e contraditório, como o dia de hoje.
Gil se mata, mas quem garante que ele morreu? “… este homem tem sangue de cavalo.” Haverá só um Gil? A impotência persiste, é verdade. Empenhado na luta política, Gil não tem poderes nem para dar um emprego de cobrador de ônibus. Sua morte é a morte do populismo, do herói solitário, do líder que deseja servir o povo sem mobilizar o povo.
O suicídio de Gil repete o de Getúlio, 25 anos depois. Mas num outro plano de consciência:
“– O povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém (…)
– Invente outra coisa, rapaz. Fale qualquer outro troço. Isso aí ninguém acredita mais”.
Desmascarada a demagogia e a promessa vã, mesmo bem intencionada, chega-se mais perto da verdade, da necessidade real: “– Esta noite tive um sonho. Foi um sonho lindo. Sonhei que todo mundo vai ter um palmo de terra onde cair morto”. E mais perto de como chegar lá: “– Quem é que diz o que é que pode? São eles ou são vocês?”
A luta exclusivamente pessoal é posta em cheque: “Para não ter caído na vala comum, com toda a certeza ele teve que estudar muito. E teve que ter muita fé em si mesmo. Será esse o segredo, Dom Luís? Fé e esforço, esforço e fé? E quando a cabeça fraqueja e a gente perde a fé?” Sobre as cabeças e apoiado nelas, um sistema a todas transforma em “bagaço”: “… e a grande cidade pergunta: – O que é que você sabe fazer? E antes mesmo que eu consiga responder, o berro estronda na minha cara atarantada: – O próximo. Quem é o próximo? ‘Boa sorte ao próximo’, penso, enfiando o rabo entre as pernas”.
Solidário com os oprimidos, Gil morre pensando neles: “Abraços. Adeuses. Ao povo da roça, à ribanceira da cidade. A ribanceira não tem dinheiro em banco, saldo médio, nem carteirinha do Tênis Clube. A ela os buracos e as ruas escuras”. O “incorruptível” Bispo Dom Luís, no entanto, acende a esperança: “as forças que hoje lutam contra o bem comum, e contra todos aqueles que desejam o bem comum, não são eternas”.
Que fazer, então?
“Por enquanto a única coisa que adiante é você procurar outro emprego. Depois entre para o Sindicato, se junte, se reúna aos seus.”
Mas o próprio Torres parece estar imerso no individualismo, este vôo solitário que “desaba no abismo”. Ao contrário de Nietzsche, porém, ele não se aliena. Mesmo sem ver outro fim neste “vôo no tempo”, prefere voar e cantar “enquanto resistirem as asas”.
José Monserrat Filho é publicitário e jornalista.