Em Cartaz

ISTO É. 12/12/1979
Caio Porfírio Carneiro

Este é um romance “cheio de atalhos”, para nos valermos de expressão do autor sobre a “conversa encabulada” do personagem Gil com Chico, seu pai. Porque é por atalhos que Antônio Torres chega às evidências. Sempre foi mais ou menos assim nos livros anteriores. Nesta Carta ao Bispo, em particular, os atalhos se condensam, a plasticidade é menos difusa (em Antônio Torres a plasticidade é de meia-sombra e reversamente revelada) e a angústia humana, mais tensa e desesperante.

Num jogo curioso em que o tempo se retrai e se amplia em constante fusão e repulsão e o espaço geográfico vai da beira do regional à expressão ampla do universal, Antônio Torres alcança um nível de beleza literária onde tudo é alucinadamente palpitante. Desde a linguagem (fluente, contida, desestruturada, límpida e a fotográfica, mas sempre uniformizada no todo) ao epicentro da história – Gil – e tudo que dela (dele) emana, demanda e denuncia. Porque Gil é ele e sua consciência. Em essência, é isto. O conduto narrativo, em muitos pontos, está a indicar isto. A consciência, tal qual independente personagem, está sempre a acusá-lo, a lembrá-lo e a estudá-lo. E Gil, por sua parte, a viver os desencontros da vida e denunciar, pelo comportamento, as injustiças e desconcertos dela.

Daí as meias-voltas (atalhos), as muitas faces formais, para que o corpo ficcional se transfigure por inteiro.

Aqui a trama não se compõe nem flui num suceder narrativo natural. Muitos são os fragmentos, porque o que importa é a abordagem ficcional vista de vários ângulos, para que se alcance, em maior profundidade, o mundo de Gil e seus tormentos, o mundo (atualíssimo) que o cerca, com suas injustiças. Gil é apelo de salvação neste mundo conturbado. E ele próprio é personagem sem apelo. Nem o Bispo (a luz do túnel) o salvará, embora o Bispo implore, peça e chame.

Carta ao Bispo é obra para ser lida e sentida. Não temos aqui propriamente uma história, antes o espírito conturbado de uma época através de uma personagem. Porque Gil é o espírito da Bahia e é um pouco de todos nós e de nossos tormentos.

Livro bem-escrito, como tudo o que vem de Antônio Torres, e que pede espaço maior para análise mais detida, porque, apesar do pequeno número de páginas, estende-se ele da mais simples concessão ao limite perigoso da legibilidade, sem todavia transpô-lo. Aí está o difícil na arte literária tão nobremente realizada por este escritor de pulso que já alcançou (e com este livro soma mais um pouco) o justo lugar de destaque na moderna literatura brasileira.