Bom de ler

Paulo de Tarso Pardal

A primeira boa surpresa para o leitor de O Nobre Seqüestrador, de Antônio Torres, localiza-se no ponto de vista. Ler uma história cujo narrador é o próprio personagem transfigurado em estátua – um recurso do gênero fantástico – é o primeiro elemento que incita o leitor a iniciar e terminar este romance histórico, que conta, além de outras histórias, a invasão do Rio de Janeiro por René Duguay-Trouin, em 1711, um corsário de ‘´Sua Majestade Cristianíssima Luiz XIV, o Rei Sol’´.

Quando se termina de ler o livro, sente-se aquela sensação de bem-estar, de ter podido investir tempo em uma leitura que valeu a pena.

Além desta boa surpresa, o leitor depara-se com uma linguagem atualizada, cujos artifícios retóricos são os do dia-a-dia. Estes dois elementos têm implicações profundas na narrativa.

Primeiro, a atualização da linguagem implica em atualização do narrador. Duguay-Trouin viveu no século XVIII, mas a voz que por ele fala, no romance, é do século XXI (esta é uma das transformações do romance histórico contemporà¢neo). Isto quer dizer que a História é vista com a devida revisão temporal. A conseqüência disso é que os conceitos são redimensionados, na maioria das vezes ironicamente, sempre que aparecem. Esta revisão, além de enxergar as culturas com visões diferentes, causa um impacto muito grande no leitor, que se vê muito mais próximo das ações, apesar da distà¢ncia temporal do fato histórico. A ironia, a gíria, os termos chulos, as construções sintáticas e, principalmente, a visão contemporà¢nea da cultura globalizada sobre a cultura do século XVIII faz da narrativa um excelente texto de leitura. O leitor sente-se instigado, porque a linguagem é a dele, leitor, daí o conforto que ele sente ao ver a vida de um personagem histórico ser desfiada com o seu jeito atual de se comunicar.

Acho que este artifício da narrativa é um dos grandes méritos deste romance de Antônio Torres. O Nobre Seqüestrador é um texto para ser lido nas salas de aula de História. Se isto ocorresse, com certeza, teríamos estudantes mais interessados tanto em História como em Literatura.

A linguagem é carregada de ironia e sarcasmo. Isto é conseqüência, ainda, da atualização temporal do narrador: passados os séculos, ele tem competência histórica e cultural para falar das duas épocas, para comparar as duas, e fazer humor com as duas. Ele está confortavelmente instalado em um plano de tempo privilegiado, para falar como um ser que conhece as teias dos dois períodos históricos. Comparar as barbáries das duas épocas, por exemplo, é prova de que este narrador está atento ao movimento dos dois mundos, cujos motivos que os aproximam são o seqüestro, o assalto, a violência, enfim.

Para ele, contar a história da sua vida, com essa atualização, não lhe limita os passos, nem o leitor tem uma visão unilateral dos fatos, pelo contrário, amplia sua visão. Talvez o procedimento irônico e sarcástico que está em toda a narrativa venha desta visão madura e temporalmente distante. As tensões, por isso, são mínimas.

Antes dos narradores pós-modernos, Machado de Assis já se valera de um ponto de vista surpreendente, com o famoso Memórias Póstumas de Brás Cubas. Natércia Campos, cearense, filha do reconhecido contista Moreira Campos, construiu um romance – A Casa -, cuja voz que fala é a da própria casa. Estes recursos são estratégias de conduta da narrativa. Acredito que os escritores da nossa época talvez passem por grande questionamentos quando decidem iniciar seus projetos literários, devido à  visão que eles têm que dar ao mundo criado. As verdades absolutas desapareceram, e os conceitos que serão transmitidos não podem mais estar em função de um só ponto de vista. Acho que a multiplicidade de narradores (logo mais abordaremos este aspecto) de O Nobre Seqüestrador têm a função de relativizar tais verdades. Este é também um artifício da narrativa pós-moderna, com que Antônio Torres soube muito bem jogar. Veja-se, por exemplo, a última parte do livro, em que a própria cidade do Rio de Janeiro é quem comanda a narrativa, contanto, ela mesma, o que ocorreu depois da invasão. Em seguida, ela faz um passeio pela sua história, desde 1502 até 2003, quando há outra colagem de uma reportagem (ficcional?) do Jornal do Brasil. Neste caso específico, há uma clara fotografia da violência de ontem e de hoje. à‰ aqui que termina o livro. O importante é perceber que a mudança de voz na conduta da narrativa implica que os tempos estão sempre sendo atualizados, tanto pela linguagem como pela mudança de perspectiva.

Este aspecto, porém, é apenas um, dentre os demais elementos que compõem uma narrativa.

Dentro da estrutura da narrativa pós-moderna, o romance de Antônio Torres é conduzido através de outras visões, de outros narradores, muitos deles possíveis de identificação, mas alguns estão localizados em zonas obscuras, quando da mudança de voz. O livro, por isso, exige um leitor iniciado, atento à s mudanças de perspectiva. Nestes casos, há uma radical mudança de condução. Colagens aparecem, como é o caso do capítulo ‘´Intervalo’´, em que o autor, aproveitando o gancho do assalto à  cidade do Rio da Janeiro em 1711, gruda, no texto ficcional, uma reportagem sobre a violência do Rio de Janeiro atual, datada de 3 de dezembro de 2002. A barbárie pela qual esta cidade está passando (não só o Rio, mas tantas outras metrópoles brasileiras), de tão absurda, parece mesmo uma ficção. à‰ importante ver, nesta ponte temporal de 291 anos, não só uma denúncia, mas um aspecto da vida contemporà¢nea que nem a ciência, nem a tecnologia, nem a cultura conseguiram resolver. Se houver uma intenção de denúncia (na verdade, só quem pode dizer isto é Antônio Torres), haverá, também, mais ainda, um pedido (um apelo?) de reflexão sobre os tempos, afinal estamos tratando de História, mesmo que ficcionalizada. Este é outro mérito do livro.

Um aspecto importante na estrutura do romance é a questão da metalinguagem. A perícia com que é construído o jogo entre a ficção e a realidade só demonstra que Antônio Torres tem um domínio absoluto da narrativa. Na pesquisa empreendida por ele está a base do argumento histórico. O importante, neste caso, é perceber que os procedimentos da pesquisa estão dentro do texto ficcional, transfigurados, evidentemente. Este procedimento funciona como um cartão de crédito, um recurso à  autoridade, que envolve o leitor no jogo da ficção. O desvendamento da construção do texto faz parte do prazer da leitura, como diz Linda Hutcheon, em seu livro Poética do Pós-Modernismo . Antônio Torres estabelece uma ponte entre aquilo que é história e aquilo que é ficção e, além disso, mostra como todo o processo de pesquisa foi realizado. Este procedimento dá muito mais vida ao texto, e o prazer da leitura acentua-se, uma vez que o leitor sente-se guiado por uma voz que tenta desvendar os segredos da criação literária.

à‰ neste ponto que Antônio Torres é original. Recriando-se como personagem – e nesta linha divisória ele está dentro do plano da ficção – ele transfigura-se em outro ser, para dizer, ficcionalmente, a experiência da pesquisa empreendida na vida real. Este é o jogo estabelecido. Todas as cartas estão aí para serem jogadas, decifradas, prazerosamente, pelo leitor atento, dizendo como o real se transfigura em ficcional. Este recurso metalingüístico é muito bem construído, o que prova o domínio que o autor tem quando do trato da desrealização.

No começo desta conversa, eu lhe disse:

– Vamos, aproxime-se. Eu já não mordo.

Ao dizer isso, não quis apenas fazer uma ironia com o meu status de estátua.

Perceba-se que o narrador está falando para o pesquisador, que está diante da estátua do corsário, e que é acusado, logo no início da narrativa, de seqüestrador:

Você veio até aqui para seqüestrar as minhas memórias, porque sou também um malfalado personagem da história do seu país, vamos, aproxime-se, já não mordo… (p.12)

Por vários motivos, esta passagem é reveladora.

Primeiro, para decifrar o fenômeno da desrealização: o narrador chama o pesquisador de ‘´personagem’´, tanto quanto ele. Dizendo isto, os dois ficam no mesmo plano da trama ficcional. Um, como narrador da história pesquisada. Outro, como pesquisador, que forneceu os argumentos históricos. O narrador, no entanto, sendo o próprio personagem (Duguay-Trouin), dispensaria o pesquisador da história. O emaranhado do desvendamento da ficção, assim, fica muito mais complexo, mas é este, exatamente, o jogo que Antônio Torres nos propõe – uma bela e original jogada de mestre.

Segundo, pode-se, através desse pequeno excerto, fazer hipóteses sobre o título do romance, que pode passar por uma dupla linha de interpretação: o nobre seqüestrador pode referir-se ao corsário, já que sua profissão era legal e nobre. (A propósito disso, há uma passagem em que o narrador faz a distinção entre pirata e corsário.) Era legal porque estava de acordo com a lei e com os códigos de ética da época. Era nobre porque aqueles que podiam assaltar em nome do rei tinham que ter patente, o que os tornava nobres. Aliás, um dos últimos atos de Luiz XIV foi nomear René Duguay-Trouin a chefe de esquadra, o grande sonho do corsário.

O nobre seqüestrador, por outra linha de pensamento, pode referir-se, também, ao pesquisador. Neste caso, a nobreza tem a ver com o objetivo do pesquisador: transformar a pesquisa em arte. A nobreza, portanto, está na Literatura, já que é esta expressão artística que dá suporte ao fato histórico narrado em forma de ficção.

Todas estas propostas de interpretação, no entanto, são suposições, são sugestões que a leitura deste romance proporciona, pela riqueza interna de que se reveste o texto. E quando se fala de riqueza interna se fala, na verdade, de linguagem, daquilo que está dito e, principalmente, daquilo que está apenas sugerido, característica que só os bons escritores conseguem.

Os tópicos até agora comentados são mínimos, em relação à s demais e abundantes informações que o livro contém. Se o propósito da narrativa era contar a invasão francesa de 1711 ao Brasil, tal propósito se esvai, esgarça-se em outros tópicos, em outras ações que vão compondo o imaginário do seqüestro da cidade, tanto em relação à  época de Duguay-Trouin, como em relação à  época atual. à‰ contada a vida do Rei Sol, a vida do corsário, uma passagem da 2’ª. Guerra Mundial, a história da cidade do Rio de Janeiro etc.

Concluindo, o romance de Antônio Torres, além das preciosas informações que normalmente os livros oficiais de História não trazem (o objetivo deles é outro), proporciona um mergulho nos conceitos de Literatura e de Teoria Literária. à‰ um livro que, se por um lado, traz uma complicação estrutural, devido à s técnicas pós-modernas de construção, com todo o jogo de metalinguagem, por outro lado, convida e convence o leitor a resistir a estas complicações e a ir em frente na leitura, proporcionando-lhe uma verdadeira viagem na História do Brasil e nos segredos da criação literária.