Corsário de ontem, bandidos de hoje

Gazeta do Povo, Curitiba – 19 de abril de 2004
Miguel Sanches Neto

Longe da linguagem engomada das narrativas históricas, preferindo antes as espontaneidades da língua contemporà¢nea, com suas gírias e expressões saborosas, o romance O nobre seqüestrador (Record, 2004), de Antônio Torres (1940), filia-se ao ramo macunaímico de nossas letras. O escritor não está preocupado com a propriedade erudita da linguagem e nem com a profundidade psicológica dos personagens, cuja preponderà¢ncia poderia criar a ilusão de um tempo reencontrado – optando por anarquizar as regras romanescas. Dentro da tradição modernista de humor histórico, ele se diverte ao entender, pelo riso e pela ironia, um momento e uma personagem emblemáticos da cidade do Rio de Janeiro: o seqüestro que ela sofreu em 1711 pelo corsário francês René Duguay-Trouin.

Fica implícito na opção de foco narrativo e de linguagem que Antônio Torres tem uma certa desconfiança em relação aos monumentos, vistos como enganadores. Ao ir à  França, em duas viagens, para encontrar vestígios do corsário, ele se depara com a realidade atual e com um certo vazio em torno da memória do corsário. Um dos narradores do romance, dublê do autor, o brasileiro que viaja pela Europa e se fixa no Rio de Janeiro daquele outro tempo, chegando a La Rochelle, conclui que esta cidade “não está nem aí pela passagem de Dublay-Trouin” (p.157), e esta impressão é confirmada pela opinião de um especialista sobre o corsário, que o define como “homem medíocre que, um dia, surpreendentemente, teve uma idéia de gênio” (idem). à‰ neste momento que o narrador, futuro autor do livro que estamos lendo, vai chegar à  conclusão de que o personagem perseguido nestas viagens de volta à  Europa não merece o tratamento narrativo respeitoso que se concede aos heróis. Tal percepção da pequenez do herói e de um certo afeminamento da figura da estátua que ele encontra em Saint-Malo, terra do corsário, dará o tom malandro, acariocado da linguagem da obra.

O romance tem quatro instà¢ncias narrativas. A primeira é a que se funda na voz do próprio herói, que reconta suas proezas, chamando a atenção para seus feitos. Mas quem fala não é o homem de carne e osso, e sim sua estátua, numa referência ao mito de Pigmalião, rei lendário de Chipre. Por se apaixonar pela estátua esculpida por ele mesmo, faz com que ela viva e ganhe voz. à‰ assim o corsário criado pela imaginação de Torres a partir dos documentos e da imaginação. Perdendo a condição de monumento, entra em cena, já na primeira parte, a figura desabusada do seqüestrador do Rio que, de tanto conviver com os turistas, não ficou preso à  língua de seu tempo, valendo-se de termos contemporà¢neos.

A segunda voz narrativa é a da crônica jornalística, transcrita no romance em dois momentos: no “Intervalo” e no “Post scripitum”. Ainda aqui, é o recurso modernista da colagem de textos impessoais que dá o contraponto contemporà¢neo à  história que se passa no começo do século 18. Estas crônicas, tiradas dos jornais de agora, mostram como o Rio de Janeiro é tomado pelos bandidos, que paralisam a cidade, repetindo assim o seqüestro-fundador, feito por Duguay-Trouin.

Identificada com o autor, a terceira voz narrativa trata da procura dos vestígios do corsário, dos feitos de Duguay e das misérias nacionais vividas por um escritor que ganhava a vida como publicitário e súbito se vê desempregado. Aqui, estabelece-se mais um vínculo com o corsário, que depois de sua proeza, também vive a velhice no ostracismo. à‰ a identificação individual entre a trajetória do personagem e a do autor feito turista da história, e este não deixa de comentar as fraquezas de Duguay, que passou o resto da vida pedindo ajuda ao rei pelo qual lutou. Despedido, este narrador diz: “Não farei como o senhor, que depois de conquistar o Rio de Janeiro a ferro e fogo, para a França, iria passar o resto da vida escrevendo cartas pedindo socorro financeiro, como quem pede esmola” (p.162). à‰ neste momento de confluência de caminhos, quando personagem e autor se encontram, que está a natureza biográfica do romance.

Por último, e deixando de ser apenas espaço, aparece a cidade do Rio de Janeiro, que também conta sua história, desde a fundação até o presente, quando ela é diariamente seqüestrada pela marginalidade: “Como se os franceses comandados pelo tal René nunca tivessem ido embora” (p.243), diz a cidade, revelando sua triste sina e a comunicação subterrà¢nea com aquele acontecimento formatador de sua identidade – as autoridades entregando tudo, e sem resistência, aos saqueadores. O dirigente da época, que passou pela história como omisso, ganhando o sugestivo apelido de o Vaca, tem continuidade nos dirigentes atuais.

Por estas características nada realistas, sendo o realismo um dos elementos-chave do romance histórico, O nobre seqüestrador não pode ser entendido dentro desta categoria. Ele faz parte de uma sensibilidade paródica da cultura brasileira, pois o herói, dito nobre, neste caso com intenções satíricas, era um saqueador e esta sua condição é que leva Antônio Torres, mesmo admirando sua coragem corsária, a transformá-lo numa espécie de antepassado do brasileiro. Sem nenhuma intenção sociológica, comandado mais pelo feliz paralelismo que o personagem permite, ele faz do seqüestro de 1711 o fato central da história da cidade. E coloca todos – autor, personagem e o próprio Rio de Janeiro – no mesmo nível lingüístico, intensificando assim, pela linguagem do carioca, a contigüidade de tempos. Duguay-Trouin é um personagem extemporà¢neo, e isso é revelado por sua fala desabusada, pertencendo mais ao Rio de Janeiro, em cuja identidade ficou incrustado, do que à s cidades francesas onde viveu e morreu.

Estamos, portanto, dentro de uma visão alegórica do país, tão cara a nossos modernistas. Basta lembrar as sínteses feitas por Oswald de Andrade (Pau-Brasil, 1925), Mário de Andrade (Macunaíma, 1928) ou por um livro como História do Brasil (1932), de Murilo Mendes, em que o poeta mineiro, na esteira da primeira turma modernista, brinca com os monumentos. Um exemplo antológico é o poema “O herói sai da estátua”:

Não posso agüentar,
Aqui faz calor demais.
A gente fica solene.
[…]
Vou pôr-me à  vontade,
Vou me meter no pijama,
Vou calçar os meus chinelos.

à‰ dentro desta linhagem que deve ser lida a narrativa de Antônio Torres, autor que aqui recusa os princípios construtivos do romance realista, focados na ilusão da veracidade. Para Torres, a história só tem este imenso presente, em que, infelizmente, os erros do passado aparecem apenas remodelados.