O Nobre Seqüestrador, por Lídia Jorge

Lídia Jorge é uma das mais conceituadas escritoras portuguesas, autora de romances memoráveis como ‘€œA Costa dos Murmúrios’€, Lídia Jorge está publicada no Brasil pela Editora Record. 

Por que razão, escritores que iniciaram os seus percursos com livros concebidos a partir da realidade envolvente, chamando para o seu interior experiências que lhes são contemporà¢neas, em determinada altura, passam a interessar-se pelo passado e entregam suas vidas e sua criatividade a figuras históricas cujo perfil é precioso ir procurar tão atrás? ‘€“ Presume-se que pelo simples facto de que nessas figuras do passado, o autor encontra uma detonação própria que lhe ilumina o presente. Não é essa uma das formas de abarcar a poética do tempo? No caso do escritor brasileiro Antônio Torres, o prefácio que o próprio antepõe a uma das edições do seu último romance, ‘€œO Nobre Seqüestrador’€, tentando explicar a razão duma aparente distà¢ncia entre si e a personagem do livro, explicita esse tipo de ligação, referindo-se ao contraponto analógico que o motiva. E assim, no rescaldo do sucesso que o seu livro alcançou no Brasil, o autor desvenda o cerne dessa narrativa ‘€“ Isto é, o pirata francês, que em 1711 seqüestrou, saqueou, vilipendiou de todos os modos a cidade do Rio de Janeiro, segundo Antônio Torres, encontra seu sucedà¢neo interno, ainda nos dias que correm, na violência e no temor que assaltam por dentro uma das mais extraordinárias cidades da Terra.

O romance do célebre escritor brasileiro é assim uma espécie de explicação à  rebours, de como o mais célebre corsário de Luís XIV, falecido em 1736, continua a enviar bombardas sobre ruas e praças do Rio, e como os portugueses, movidos pela soma dos seus vícios endémicos, continuam presentes nas escaramuças emocionais da sociedade carioca contemporà¢nea. Como a colônia, tecida na cobiça malandra dos vários colonizadores ‘€“ os que persistiram e os que foram pagos para abandonarem o território ‘€“ engendrou casamentos genéticos que se desdobram em ondas sucessivas através da História, e cuja complexidade é preciso reconstituir na interioridade psicológica das personagens individuais para se fazer entender. Consciente disso mesmo o escritor ‘€“ uma terceira pessoa, aqui e ali disfarçada de anônimo brasileiro ‘€“ diz ter-se interessado pela figura do pirata René Duguay-Trouin, só depois de haver lido a célebre frase de George Orwell ‘€“ ‘€œAquele que tem o controle do passado tem o controle do futuro. Aquele que tem o controle do presente tem o controle do passado‘€.

Claro que ao papel do autor-personagem sobeja-lhe a avisada função de dizer que não lhe dá ‘€œpara ter o controle sobre coisa nenhuma’€. Pois não poderia ser de outra forma. Antônio Torres, como grande escritor que é, sabe que o papel da ficção consiste apenas em subverter a lógica dos domínios, e em transformar essa consciência na matéria do seu próprio discurso literário, por definição oscilante e descomprometido com a própria verdade. A história picaresca que o autor de ‘€œO Nobre Seqüestrador’€ conta a partir da boca de bronze do pirata-herói, talhado em estátua diante do mar de Saint- Malo, é apenas um eco contra a barreira do passado e da lonjura. Por alguma coisa a frase leitmotiv da narrativa, e sobretudo a primeira frase do personagem pirata, escondida na designação do primeiro capitulo, consiste em declarar a dificuldade de enxergar ao longe ‘€“ Por mais que eu olhe nunca avisto Niterói. Ou então ‘€“ ‘€œPor mais que eu olhe, só vejo torres que se tornaram monumentos, só avisto as ruínas da História…’€. Vai dizendo a personagem brasileira ao longo do texto. O que indica a impossibilidade trágica de alcançar-se o outro lado, seja ele o da geografia, seja o da carne ou do espírito dos homens.

O que significa por outro lado que Antônio Torres, com os ingredientes da sua pesquisa e da sua interpretação sobre um momento tão singular do passado, em que Brasil, França e Portugal se encontraram numa encruzilhada pestilenta da História, bem poderia ter criado uma ficção solene, radicada na vingança do julgamento e na descrição dramática em torno do caso de um duplo, o facínora de cá, o herói de lá, o triste ambicioso para todos, e para nada. E nessa linha de idéias, até que poderia ter escrito um romance carregado de dores e maldições, invectivas contra a face macabra da existência das nações, a hipocrisia e pusilanimidade portuguesas, e o seu respectivo legado, bem recebido e bem alimentado pela terra brasileira. O seu material poderia servir para tanto e tudo mais. Mas o engenho do autor desviou-o dessa eventual expectativa.

Ao contrario do que sucede com o romancista histórico comum, Antônio Torres preferiu desenxovalhar os olhos e sorrir sobre o assunto, emprestando à  narrativa um ponto de vista irônico, gracioso, e até divertido, sem cair no que poderia ser o perigo contrário ‘€“ a tentação do galhofeiro ou do grotesco. Ao invés, ultrapassando todo o tipo de convenção protocolar na matéria, ao logo deste livro, o corsário de Luís XIV e Antônio Torres, enquanto personagens, namoram-se, olhos nos olhos, e falam diante do outro, como se fossem conhecidos de há trezentos anos, e o tempo que vivem lhes fosse comum, e a vida das suas nações continuasse a ser partilhada por ambos, relatando-se reciprocamente, com a invenção e a arte bastantes para manter o leitor suspenso da primeira à  última página. E é essa intimidade que tem dois vestidos, o do bronze e o do pano puído, que sustentam a ambigüidade e a escrita. Ou por outras palavras, em ‘€œO Nobre Seqüestrador’€ fala e escuta fazem-se face a face, e voam por cima do Atlà¢ntico, como se fossem pássaros pairando sobre as convenções da decência da Literatura e dos esconderijos do tempo, e essa sensação de fusão de vozes é o grande sortilégio deste romance. Por vezes as vozes até provêm de outros corpos, como se por perto todos os seres tivessem língua, por exemplo, a língua duma própria cidade, debruçada sobre a água duma baía. Fala assim o Rio de Janeiro, a antiga Praça do Rei ‘€“ Quando eles se foram embora, eu, a Praça do Rei, olhei-me no espelho das águas e o que vi foi uma meretriz de beira de cais, desgrenhada, ofendida, estuprada, malcheirosa, abandonada. Arrombada até mais não poder por uns três mil homens suados, sujos, fedorentos. Não havia perfume no mundo capaz de tirar o cheiro que aquela soldadesca francesa deixou no ar. ‘€“ E assim por diante. Resta dizer a Antônio Torres, que para quem escava na terra com imaginação, todas as mortalhas que uma pessoa encontra estão vivas.

Ainda bem, pois, que a editora ‘€œFio da Navalha’€ apostou neste livro e lhe manteve os ícones plásticos que o preenchem, transformando-o também num objecto de sedução. Porém, o excerto escolhido para texto de contracapa, retirado do capítulo ‘€œFalemos de Mulheres’€, talvez induza o leitor que se guia pelas badanas a um certo erro de apreciação. Naturalmente que mesmo nesse domínio, o livro de Antônio Torres é alguma coisa mais interessante do que a descrição das cópulas. Neste livro, o lado lúdico da personagem é bem mais amplo do que o libidinoso. Mas o que importa ressaltar é que a ‘€œFio da Navalha’€ propõe aos leitores portugueses um escritor de grande qualidade, no que é secundado pela publicação de ‘€œMeu Querido Canibal’€, dado à  estampa em simultà¢neo pela editora ‘€œFigueirinhas’€, livro que parece construir um ensaio prévio, no sentido literal e figurado do termo, em relação a ‘€œO Nobre Seqüestrador’€. Que os dois volumes tenham aparecido quase em simultà¢neo, em Portugal, é uma feliz coincidência. Oxalá os leitores portugueses os estimem como merecem e disso dêem recado.

*Uma das mais conceituadas escritoras portuguesas, autora de romances memoráveis como ‘€œA Costa dos Murmúrios’€, Lídia Jorge está publicada no Brasil pela Editora Record.