Por mais que eu olhe nunca avisto Niterói

Saint-Malo, 6 de fevereiro de 2002

Quando o mundo era dos marinheiros, eu, René, filho de Marguerite Boscher e do comandante de navios Luc Trouin, não me fiz ao mar logo de cara, assim que me dei por gente, como você poderia imaginar, você, que veio de longe, lá do Brasil – e do Rio de Janeiro! -, que atravessou o Atl’ntico e ainda rodou um bocado por aí de trem e de automóvel, aventurando-se em trilhas que supôs levarem a algum vestígio de minhas pegadas nesta França velha de guerra, Paris-Bordeaux, Bordeaux-La Rochelle, La Rochelle-Rochefort, depois Paris-Nantes, e de Nantes até aqui, aqui Saint-Malo, ponha aí um chapeuzinho no o para os brasileiros pronunciarem o nome da cidade corretamente, Saint-Malô, onde começa e termina a história deste lendário corsário de Sua Majestade Cristianíssima Luiz XIV, o Rei Sol, eu, René Duguay-Trouin, o tenente-general das Forças Armadas Navais, eternizado em bronze na passarela da glória nesta célebre muralha, a marca registrada de Saint-Malo, cá estou, no panteão ao esplendor do tempo dos marinheiros, postado de frente para o mar, de onde jamais queria ter saído desde o dia em que me acostumei com ele na marra, mas eia, você veio até aqui para seqÜestrar as minhas memórias, porque também sou um malfalado personagem da história do seu país, vamos, aproxime-se, já não mordo, olhe-me, tire suas fotos, faça como os japoneses, que chegam em bando, click-click, arigatô, rá, povinho barulhento esse, porém infinitamente menos do que os seus compatriotas brasileiros, ah, o Brasil, lá eu fui um rei, no tempo dos portugueses, lá eu tive poder e mulher para o meu divertimento, servida de bandeja na cama que conquistei a ferro e fogo, e como o poder é afrodisíaco, não?, exótico, engraçado, sacana, rico e injusto Brasil, diz-se dele aqui, e digo eu, ainda hoje a terra dos meus sonhos, tão cobiçada, coitada, estonteante exuber’ncia, muito langor e pouco rigor, a palavra esperança rimando com destemperança, oh trópicos divinos e profanos, um mundo de aventureiros, aberto a todas as pilhagens, todos os tráficos, ali até as flores e as cores enlouquecem, entre a exaltação patriótica, submissões que confrangem e anárquica rebeldia, rasteiras a cada passo, um susto a cada esquina, uma faca no peito, um cano na nuca, rajadas a esmo, o Brasil não é um país, é um exagero, em tamanho, luz, sabor, a tal da ginga e loucura, é onde a vida, vivida num fio de navalha, tem pouco ou nenhum valor, e a justiça ainda se faz com as próprias mãos, e tome clichê, terra de índio, fim do mundo, a nostalgia da Europa, o banzo da áfrica, a sedução americana, luxuriante natureza, tropical melancolia, tanto sol, mar, céu, sexo, selva, açúcar, madeira, papagaio, pimenta, frutas, folhas, ervas, raízes e grãos de encher os barcos e panelas do mundo, cachaça – embriaguemo-nos, não vai me oferecer uma caipirinha? –, megalópolis tentaculares como caixotes empilhados fazendo escada para a lua, singelos vilarejos do interior cobertos de antenas parabólicas, canções inolvidáveis, festas populares, uma vela para Deus e outra para o Diabo, cantadores, contadores de histórias, adoráveis mentirosos, dendê, café, soja, guaraná, tabaco, ouro, petróleo, maconha, escravos, mestiçagem, senhores de engenho, anedotas de português, é isso aí, Brasil, tu perdes um amigo mas não uma piada, intelectuais posudos que nem os franceses, aliás os imitam da cabeça aos pés, políticos de fala fácil, inescrupulosos, corruptos, safados – alguma novidade nisso? –, ricos charmosos, ricos ignorantes, ricos chiquérrimos, ricos tão arrogantes e alienados quanto os nossos – sei o que estou dizendo, sou filho de rico –, todos ou quase todos predatórios, só querem encher a burra ainda que para isso tenham que arrasar a terra, pobres e analfabetos de montão que se deixam enrolar pelo papo enganoso dos abonados e sabidos, e estes estão só esperando a hora de jogar uma bomba sobre eles, como solução final para limpar o país de pretos, pardos, mulatos, paraíbas e aroçoabas pobres, é, aqueles brancos podres de rico, e os arremediados que embranqueceram a sua massa cinzenta, acham que o atraso do país se deve à mistura de raças, ao que faz coro uma classe média ensanduichada entre o andar de cima e o de baixo, trancando-se a sete chaves, catatonicamente ligada na tv e nos computadores, e estudando inglês enquanto sonha em fugir de tudo isso para Miami, para o Canadá, para a Austrália, eta Brasil grandão e doidão, portentosas mulatas de deixar maluco o mais empedernido cara pálida, mulher bonita a dar com o pau, até louras, nem todas oxigenadas ou burras, futebol em ritmo de samba, travestis modelados para exportação, prostitutas que se apaixonam ou fingem isso espetacularmente, manecas deslumbrantes, mania de banho, culto ao corpo, cabeças de vento, peitões e bundões siliconados, que aprenderam a rebolar desde criancinhas e com um empurrãozinho de suas queridas mães, carne, muita carne, Carnaval (Renê, ô Renê!/ Skindô, skindô/ Quem é você?/ Skindô lê-lê/ Renê, ô Renê!Vai te fudê!!!), viu aí?, eis-me de novo ferindo suscetibilidades à flor do couro, dos gatilhos, mesmo assim ainda posso virar enredo de Escola de Samba, você não acha que já é tempo?, falou Brasil, disse batucada, barulho, som de bêbados, fúria de drogados, mas aqui os campeões da passarela são os norte-americanos, mentes numéricas de constrangedora ignor’ncia, vão logo perguntando quantos dólares esta estátua teria custado, e se ali em frente deste mar está a áfrica, vamos, aproveite, click-click você também, encare-me, você não estará vendo mais do que a estampa de um herói imóvel – ou vilão, para vocês brasileiros –, seja lá como for aqui estou, assentado em bronze neste canto desta secular muralha, exposto à visitação pública dos turistas de todo o mundo, como aquelas putas semi-nuas nas vitrines de Amsterdã, o que fazer?, concederam-me este tributo, sim, agora eu sou o herói, melhor dizendo agora eu era o herói, coisas da História que não têm muito a ver com a justiça do tempo em que vivi, avaro em reconhecimento, nem com as minhas decepções, mas é isso aí, como agora eu era o herói, me fincaram para sempre nesta pose – indelével, vá lá – de cartão postal, que à primeira vista lhe decepciona, pareço-lhe menor do que era na sua imaginação, e algo esdrúxulo nestas vestes que me eternizaram, da indefectível peruca – bastas melenas, e cacheadas! –, aos nobres sapatinhos – a gota já não me dói, que alívio –, assemelho-me mais, assim lhe parece, a um bailarino do que ao senhor das águas e das tempestades, sei, você está achando que a minha figura não tem a mesma estatura do meu histórico de arauto do medo e do terror, e está mirando as minhas mãos com um olhar galhofeiro e esteriotipado, eu, o Espada de Honra do Rei, o Cavaleiro da Ordem de São Luís, o capitão de mar-e-guerra, o comandante de navios da marinha francesa, o chefe de esquadra, o tenente-general que vomitava fogo pelas bocas dos canhões, eu, René Duguay-Trouin, não podia ter dedos tão delicados, como indicam os da minha semi-estendida mão direita, que aos seus olhos lembram os de uma fiandeira, imaginava-me um mastodonte?, pois foi com a destreza de um bailarino – melhor será dizer de um esgrimista –, que me movi nos palcos da guerra, graças à minha rapidez de raciocínio e precisão de movimentos me tornei um temível interceptador de riquezas em todas as vias navegáveis onde pudesse avistar os inimigos da França, que eram praticamente todos os países bem armados da Europa, quando eu, René Duguay-Trouin, mandei bala em portos e cidades em poder desses inimigos que tivessem o que pilhar e arrasar, em batalhas sangrentas, até levá-los à mais completa ruína, à total desmoralização, caso não se rendessem aos meus primeiros berros e petardos, em plena vigência das guerras de corso, palavra de origem italiana, anote aí, corso = correre, correr, e isso vai da Idade Média ao século XIX, logo, como você já deve ter percebido, minha carreira se desenvolveu num período capital, o das guerras da Liga de Augsburgo e da Sucessão da Espanha, entre 1689 e 1714, foi aí que eu, René Duguay-Trouin, corri mundos e fundos, no encalço dos espanhóis – até a tal da Sucessão –, e principalmente dos holandeses, dos ingleses e seus aliados portugueses, e estes, coitados, devem se sentir até hoje os mais humilhados e ofendidos da face da Terra, e por mim, porque dei neles uma corça memorável, num ataque audacioso, espetacular mesmo, sem precedentes na história das invasões francesas: o assalto e tomada do Rio de Janeiro, a mais cobiçada cidade do império colonial lusitano, no auge do fluxo do ouro das Minas Gerais que ali era embarcado. Para Lisboa.