Prefácio a uma história da História colonial portuguesa

Para a edição da Fio da Navalha –€“ Lisboa, 2004.

Dedicado a estes nobilíssimos amigos:

V’nia Pinheiro Chaves, professora da Universidade Clássica de Lisboa. Fernando Santos, da RTP. Manoel Marcelino Pena Costa, da Manpower Portuguesa. Fernando Lopes e Paulo Rocha, do Cinema. Maria do Céu Guerra e Hélder Costa, do Teatro. Almeida Faria, das Letras. Maria Aparecida ribeiro, da Universidade de Coimbra. Arnaldo Saraiva, da Universidade do Porto.

E em memória de:

Alexandre O’€™Neill, José Cardoso Pires e Irineu Garcia.

‘€œComo escrever a história de um delírio?’€- pergunta o francês Gilles Lapouge, na primeira linha do seu livro Lês pirates.

O brasileiro que agora vos escreve viria a fazer-se a mesma indagação, ao destapar o baú de históricos alfarrábios em busca das aventuras e desventuras de René Duguay-Trouin, o célebre corsário do rei Luiz XIV que, nos princípios do século XVIII, executou o primeiro seqüestro do Rio de Janeiro ‘€“ o da própria cidade -, então a mais próspera colônia portuguesa, numa invasão tão arrasadora quanto aterrorizante. E que se inscreve nos anais da História como um dos capítulos mais dramáticos de toda a era colonial lusitana.

Comandando uma esquadra de dezoito navios, com setecentos canhões, dez morteiros e cerca de seis mil homens, o general francês fez o Rio de refém durante cinqüenta dias, sob ameaça de reduzi-lo a cinzas, caso o pagamento exigido para desenvolver a cidade aos seus habitantes não fosse resgatado.

Subproduto de uma guerra ‘€“ a Sucessão da Espanha-, a tomada do Rio de Janeiro não foi só audaciosa, foi surpreendente. Porque significou uma espetacular reversão do poder de fogo entre litigantes em desigualdade de forças, quando uma coligação de oito países (Portugal era um deles) vinha deixando a França à  bout de souffle.

Encurralada nas terras e nos mares (principalmente nestes) da Europa, essa França em agonia contou com a jogada de gênio de um dos seus mais intrépidos marinheiros para reverter o mando longe do campo de batalha. Como Rio era um domínio português, chamado de A praça do rei, ao fim e ao cabo foi Portugal o seqüestrado, vindo a pagar um altíssimo preço pela sua adesão a um conflito no qual preferia ter ficado neutro, e em que entrou por imposição da Inglaterra, sua eterna aliada. O Rio de Janeiro ficou com os custos em vidas, medo, terror, depredações, depressão, revolta, estorvantes devassas, punições. Além dos prejuízos em bens privados e públicos saqueados, e da conta do resgate para a sua libertação, que foi cobrada à  população, a peso de ouro.

Passou-se isto no apogeu das explorações e fluxo transatlântico dos metais preciosos, que o Brasil possuía em abundà¢ncia nas suas Minas Gerais, descobertas pelos portugueses em 1695. Eis aí o delírio: a corrida de uma Europa cobiçosa, a ensangüentar-se nos mares nas suas disputas, pelos carregamentos das riquezas pilhadas de ilhas e terras distantes, como o ouro brasileiro. E é aqui que entra René Duguay-Trouin, o que gritava ‘€œFogo!’€ em nome de um rei cujo delírio de grandeza e conquistas tanto elevava a França ao esplendor, quanto’  a rebaixava ao rés-do-chão da ruína. A serviço de Luiz XIV, Duguay-Trouin tinha feito três tentativas, na entrada de Lisboa (1706), as costas da Espanha (1707) e ao largo do Açores (1708), para saquear os navios portugueses precedentes do rio de Janeiro. E fracassou em todas elas. Iria à  forra em 1711, ao tomar de assalto o porto de onde o ouro partia e onde Portugal não estava suficientemente guarnecido para repetir um ataque nas proporções que ele empreendeu.

A historiografia francesa avalisa essa invasão ao rio de Janeiro como o maior feito da marinha do Rei Sol. E confere a Duguay-Trouin um status de herói. Já a portuguesa achou melhor empurrar as páginas sobre o duro golpe para debaixo do tapete. à‰ compreensível: o episódio deslustra a aura heróica do vasto mundo que Portugal criou. No Brasil, hoje, busca-se uma correlação entre os seus sobressaltos do passado e os presentes ‘€“ um presente entregue a uma realidade de violência ameaçada pelos caos, sobretudo no Rio de Janeiro, sem dúvida alguma uma das belas cidades do planeta, mas a viver em estado de medo, seja por castigo, ou por um destino inescapável, ou pelos seus contrastes sociais assustadores, ou pela incúria dos seus governantes. O contraponto analógico é uma das vertentes desde O Nobre Seqüestrador, um título de conotação irônica, o que o nobilíssimo leitor a esta altura já percebeu.

Não se deduza, porém, que a sinopse dos cenários, personagem central, tempo e espaço, quer dizer, dos fundamentos da história, seja uma pretensa resenha do romance por quem o escreveu. Contanto o que se tem aqui é um interface entre Literatura e História, e que este autor se tenha esforçado à  exaustão para não trair os factos históricos que suportam o seu relato, é a dialética do discurso ficcional que se impõe neste livro, assim era o seu projecto ao escrevê-lo, e assim a crítica e os leitores brasileiros o têm apreciado. ‘€œUm romancista é aquele que, a todas as horas do dia, ou até mesmo nos seus sonhos, vive a exclamar:’€ O meu reino por uma personagem!

Este que vos escreve viveu anos e anos delirantemente obcecado pelo fantasma de Duguay-Trouin, como se verá, ao longo deste romance.

Porque Duguay-Trouin?

Por ele ser um herói da França e um bandido para o Brasil e Portugal.

Por ter sido o herói que teve um final nada heróico, a exemplo de outros grandes navegadores, como Cristovão Colombo e Pedro àlvares Cabral, de tanta glória e triste história.

Porque seu fantasma ainda deve andar pelo mundo a gritar: ‘€Fogo! Fogo!’€, em invasões outras, igualmente brutais.

E porque a História se repete se repete, se repete ‘€“ e nem sempre como farsa.

No entanto há humor neste livro. Rir não é o melhor remédio? Divirta-se um pouco nas suas páginas, antes que o mundo acabe, pá!

Saudações luso-brasileiras, do vosso,

Antônio Torres
Rio de Janeiro, 29 de Abril de 2004.