Maria de Fátima Marinho
Resenha publicada em Terceira Margem, revista de estudos brasileiros da Universidade do Porto, vol. 5, 2004.
Nas últimas décadas do século XX houve um recrudescimento do interesse pela reconstituição do passado, só semelhante ao ingénuo entusiasmo romà¢ntico do início de oitocentos. Sabemos, porém, que a preocupação didáctica tão cara aos autores dessa época, não encontra paralelismo na actualidade, dada a quebra iniludível da crença na possibilidade de reconstituições fidedignas e definitivas. Todo o romance pós-moderno se debate com essa ambiguidade e tenta, dos mais variados modos, preencher a falência do real com a legitimação do seu questionamento.
à essa a aposta de António Torres que, ao publicar O Nobre Sequestrador , pretende, aparentemente, penetrar no carácter do corsário francês que invadiu a cidade do Rio de Janeiro em 1711, mas que, na realidade, parece comprazer-se na busca de identidades trans-temporais, que validem a teoria de um eterno retorno, propício à compreensão do presente através de acontecimentos passados.
Logo no Prefácio, que tem o curioso título, ‘«Prefácio a uma história da História colonial portuguesa’», o autor empírico enuncia os princípios norteadores da obra que se segue. Não só comenta o próprio título do romance, aludindo à ironia que lhe está subjacente, como estabelece à partida, e para que não haja dúvidas, o teor das relações entre os dois discursos, eternamente em confronto: ‘«Conquanto o que se tem aqui é um interface entre Literatura e História, e que este autor se tenha esforçado à exaustão para não trair os factos históricos que suportam o seu relato, é a dialéctica do discurso ficcional que se impõe neste livro (…)’» (p.9). A evidência desta afirmação que, no entanto, parece necessitar de constantes reiterações, é ainda completada com uma outra que não foi de todo alheia aos escritores românticos, mas que ganha significados inusitados na reescrita da História levada a cabo na pós-modernidade: ‘«E porque a História se repete, se repete, se repete’» (p.10).
Esta noção acaba por ser fundamental para a compreensão do universo diegético convocado e da reconstituição histórica efectuada, que se estilhaça em vários artifícios, estruturados em torno da pessoa narrativa utilizada. A primeira parte do romance cede a voz ao protagonista, o corsário René Duguay-Trouin, que, no século XVIII sequestrou a cidade do Rio de Janeiro, como pretensa represália pela morte de Duclerc, detido pelos portugueses em prisão domiciliária. Este processo que se iniciou, talvez, com Robert Grave, em I Claudius (1934), terá alguma fortuna em romances subsequentes, como o célebre Mémoires d’Hadrian de marguerite Yourcenar e outros das literaturas ocidentais. Temos, assim, a personagem a narrar a sua própria vida, interpelando frequentemente o leitor, de quem parece conhecer o íntimo e as reacções, leitor, contemporà¢neo do tempo da enunciação, mas não do herói (‘«Você já andou a investigar a minha vida amorosa. Recorreu até a um cartório de Rennes: René Duguay-Trouin teve mulher? Chegou a casar-se?’», p.63), ou pressupondo a sua presença implícita através de marcas textuais inegáveis (‘«(…) não me fiz ao mar logo de caras, assim que me dei por gente, como você poderia imaginar, você que veio de longe (…)’», p.17). Este narrador, cuja focalização é, por assim dizer, exclusiva, e que usa com alguma frequência períodos demasiado longos que podem querer indiciar a fictícia oralidade presente no discurso, recorre também a analepses para, ao dar a conhecer as suas origens e vida anterior, explicar melhor a actuação presente, seja em relação à s mulheres ou aos fenómenos políticos e sociais, seja na análise dos seus sentimos mais íntimos, como a solidão ou o desespero provocado pela doença. Aliás, o corsário assume-se como uma espécie de estátua falante, isto é, continua a narrar acontecimentos posteriores à sua morte, afirmando a intemporalidade própria das estátuas: ‘«Eu sei. Isto foi depois da minha passagem pelo mundo.’» (p.43). E, na linha de um Machado de Assis, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, assistimos ao relato do seu trespasse, com a ironia que é peculiar a todo o discurso: ‘«Portanto: eu, René Duguay-Trouin, corsário de Luís XIV e tenente-general de Luís XV, morri aos sessenta e três anos, três meses e 17 dias, numa imensa casa em Paris, na rua Richelieu, livrando-me de uma vez por todas das doenças que me consumiram durante quinze anos. Fui enterrado no dia seguinte numa cave da capela da Santa Virgem, na igreja paroquial de Saint Roch, até satisfeito por ter sido um marinheiro com o privilégio de um caixão.’» (p.108). A ironia, patente neste excerto, subjaz, como dissemos, ao fio narrativo, destruindo, de certa forma, a seriedade que se poderia inferir de um relato de conquista, pilhagem e resgate. Os próprios títulos de alguns capítulos (‘«Saint-Malo para principiantes’», p.110) ou a voluntária afirmação de possíveis interferências temporais, como é o caso da suposta conversa entre o protagonista e o autor empírico (‘«Espero que não esteja [um amigo inglês do autor] zangado comigo por causa daquela vez que hasteei a bandeira de Inglaterra a meia haste.’», p.121), contribuem para criar a dimensão lúdica que se actualiza também em jogos de palavras (‘«O arrasador do Rio ficou arrasado’», p.98) e nos vários juízos que vão sendo emitidos sobre o simples quotidiano ou sobre o próprio fazer da História, que se revela detentora de várias verdades e de várias leituras.
Não são raras as análises de factos e lugares do passado e seu confronto com o presente, como não é rara a alusão à opinião dos vindouros. à claro que através da narração do corsário perpassam não só os momentos factuais (batalhas, negociações, etc), como comentários, em geral certeiros e mordazes, ao Brasil, aos portugueses, à tomada do Rio, à conjuntura política e à figura de Luís XIV.
A segunda parte do romance é narrada em 3’ª pessoa (a do autor empírico) que conta novamente os eventos que já conhecemos, com diferente focalização. A partir de determinado momento, a narração é feita sob a forma de diário, o que parece conferir maior credibilidade e verosimilhança ao relato, apesar da nítida consciência da relatividade da História e dos juízos opostos que, inevitavelmente, surgem.
Entre a primeira e a segunda partes, há um capítulo intitulado ‘«Intervalo’», que alude à violência existente no Rio de Janeiro do século XXI, e que percebemos destinar-se a marcar o paralelismo entre o saque do século XVIII e a actualidade. Este pequeno texto intercalar prepara a terceira e última parte do romance, narrada novamente em primeira pessoa, mas com um narrador diferente. Agora é a vez da cidade do Rio de Janeiro se fazer ouvir, contando a sua história e tecendo comentários a conhecidas figuras do passado, como D. João VI ou Napoleão, sempre com uma ironia que, ao retirar seriedade, confere, paradoxalmente, verosimilhança: ‘«No entanto, Napoleão Bonaparte pode até ser considerado um benemérito deste país. Graças a ele devemos a vinda de D. João VI, o príncipe feio, cornudo e comedor de frango que, no entanto, mudou a minha história. E a do Brasil? (p.214). O ‘«Post-Scriptum’» tem uma função semelhante à do ‘«Intervalo’». O título ‘«Narcotráfico ataca em várias frentes. Rio vive dia de terror’», datado de 25 de Fevereiro de 2003 (p.219), estabelece tacitamente a semelhança ou a repetição de situações que fazem jus à condição circular da História, a que se aludia no Prefácio.
Visão desassombrada, crítica e epistemológica do passado, o presente romance não se limita a reconstituir a vida de um corsário francês de setecentos, mas serve-se de factos aparentemente terminados para fazer reflectir sobre a precariedade de uma época que só se distingue das anteriores por um verniz civilizacional.