Maria Adélia Mota da Silva
Pedro Páramo é uma ótima indicação para aqueles que querem pensar um pouco sobre os caminhos da narrativa de Antônio Torres. Esse famoso romance de Juan Rulfo é referido por Torres em O cachorro e o lobo , segundo de uma trilogia que tem Essa terra como primeiro livro. A odisseia mexicana do filho que vai à procura do pai ausente dá a Totonhim, personagem principal do romance de Torres, a vontade de voltar e rever sua terra.
O medo da morte do pai faz Totonhim viajar para encontrá-lo em plena comemoração dos seus oitenta anos. Entre ruas e estradas velhas, percorre o passado, deparando-se com o que chamou de admirável mundo velho. Nessa terra, de certa forma, todos são parentes ou conhecidos. As vozes antigas pertencem ao mundo da memória afetiva. O doido, a esmoler, o político, a professora, todos são arquétipos de um mundo que, metaforicamente, está morto. Aqueles que teimaram em não abandonar essa terra estão condenados à derrota e a um tempo fora dos padrões que se perde no nevoeiro das remotas lembranças do filho sensível e bem-humorado.
Letrado, funcionário de banco, morador de uma metrópole, o personagem principal também é um derrotado. Sua existência de cidadão pacato e invisível traz muitas dúvidas quanto ao futuro e às vicissitudes cotidianas. Seguro e conhecido é o passado edificado nas memórias sobre o pai, a mãe e o irmão morto. De volta ao lugar onde enterrou o umbigo, Totonhim aproveita cada minuto da rápida visita para reviver sensações que cumprem a função terapêutica de invocar a infância, a adolescência e uma parte da vida adulta.
Se, em Pedro Páramo , o filho vem cobrar o descaso paterno, em O cachorro e o lobo é o pai que sente a ausência do filho que foi seduzido pelas comodidades da vida em São Paulo. Entre uma prosa e outra, surgem velhas canções, fragmentos de poemas e referências literárias que ajudam a seduzir o leitor. Torres o pega pela mão e o conduz a um mundo do qual, em poucos anos, só haverá o registro literário. Por isso, Essa terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha são romances necessários e apontamentos de um tempo perdido. Sem esse registro, as histórias interioranas morrerão na memória dos que hoje têm mais de quarenta.
No Junco, a vida dos de fora chega pelas parabólicas nos telhados das casas em que seus moradores resistem. São, em sua maioria, velhos. Estão lá ou voltaram para morrer. Ironicamente, o pai de Totonhim é feliz em sua reclusão. Se bebe, se fuma, se fala com os mortos, há um pouco de excentricidade e muito de sabedoria na vida cotidiana do velho Antão. Esse é o elogio e o louvor que Antônio Torres faz aos homens do povo. Torna-os lobos solitários e sobreviventes em um mundo no qual a pressa não existe. O cotidiano interiorano tem seu tempo particular.
Segundo Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio , a Literatura tem função existencial. Para isso, há “a busca da leveza como reação ao peso de viver”. Ao voltar à sua terra, Totonhim encontra uma sucessão de personagens e recordações que o levam, de forma apaziguadora, a encontrar a si mesmo. O peso do qual falava Calvino não existe no Junco. A vida, como no poema “Cidadezinha Qualquer”, de Drummond, vai devagar e marca seu ritmo próprio. Com a simplicidade e a beleza que só grandes sensibilidades conseguem repassar para suas narrativas, Antônio Torres faz de uma existência interiorana um questionamento sobre os valores modernos, como é o caso da velocidade. Pressa para quê? A história vai sendo contada com o tom de um dedo de prosa, como uma conversa que só assimilará aquele que for capaz de desacelerar o ritmo da vida para acompanhar o da narrativa.
Milan Kundera, em A arte do romance , escreve sobre apelos aos quais o leitor deve ser sensível. Um apelo encontrado em O cachorro e o lobo é o da diversão. Há romances que são concebidos como puro diletantismo e este é um deles. A extrema leveza ao narrar a história faz de Torres um prosador de formas singelas e narrativa ágil. Ser simples em sua forma de narrar, decididamente, não é característica para muitos escritores. Torres dá a verossimilhança de presente ao leitor e este busca encontrar-se também na narrativa. A identificação entre a obra e o leitor causa uma sensação que faz do Junco o mundo da memória pessoal.
O pertencimento proporcionado pela leitura da narrativa de Torres transforma-se no prazer de reencontrar-se, de recuperar as origens, há muito perdidas sob o signo da velocidade. Para quem é leitor e já viveu em uma cidadezinha qualquer, vem a nostalgia de se reconhecer, como em um espelho. Rever-se menino ou jovem é um sortilégio muito sedutor em uma narrativa. Esse é um dos prazeres proporcionados pelos livros de Torres. Essa é uma das muitas razões para tirar Pelo fundo da agulha da estante. Que venha a próxima leitura!