Antônio Torres o best seller do sertão volta à seca

Ivan Finnoti
enviado especial a Sátiro Dias (BA)

Vinte e dois anos após transformar o suicídio de um conterrâneo no romance “Essa Terra” (100 mil exemplares vendidos), o autor volta a sua cidade natal, no sertão da Bahia, e é recebido como herói.

“Totinho, obrigado por colocar essa terra no mapa do mundo.” A faixa estava pendurada em frente à biblioteca da cidade, mas o vento a levou antes que o tal do Totinho chegasse para autografar seus livros. A cidade é a minúscula Sátiro Dias, de 3.500 habitantes, cravada no sertão baiano a 200 km ao norte de Salvador. A biblioteca se chama Antônio Torres e é o segundo maior orgulho da cidade. Já o Totinho da faixa é o Antônio Torres em carne e osso, esse sim o maior orgulho de Sátiro Dias. Autor de oito romances, Torres nasceu ali há 57 anos e fez da cidade e dos conterrâneos seus personagens centrais. Acrescente-se a isso a tradução de seus livros para sete idiomas e se verá porque Antônio Torres é o grande herói desse sertão. Há duas semanas, o escritor saiu de seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, e foi visitar Sátiro Dias -que comemorava 40 anos de emancipação. Para dizer a verdade, Torres foi mesmo é reencontrar seus personagens.

“Terra de poetas”

“Não tem mais o tanque velho onde você tomava banho”, avisa o prefeito. “O seu riacho secou”, conta uma tia. Assim Torres vai sendo informado das novidades dos últimos anos, enquanto entra na igreja para dar sua palestra, na tarde da sexta-feira retrasada.

Antes, de manhã, já tinha sido homenageado durante a missa. Os três padres convidados para o acontecimento interromperam o sermão para anunciar a chegada do escritor à cidade.

Em seguida, na praça central -e única-, Torres deu o corte inicial no bolo de 30 metros, dividido por cerca de 2.000 satirodienses. Ganhou ainda uma placa de cidadão honorário. Sem contar as faixas espalhadas pela cidade saudando o escritor. Sátiro Dias só fala de Antônio Torres.

“Não fui eu quem coloquei essa terra no mapa do mundo. Foi essa terra que me colocou lá”, diz ao entrar na igreja, se referindo à faixa na frente de sua biblioteca.

Agora discursa no púlpito, impressionado com os ouvintes a sua frente. Enxugando o suor do rosto, fala: “Vocês tem os mesmos rostos, as mesmas vozes que estão nos meus livros”.

Na saída: “Ufa, é tão difícil falar para essa gente… Eles são meus personagens. O que eu vou dizer que eles não saibam? É mais fácil discursar em uma homenagem em Paris do que aqui, na minha terra.” E olhem que Torres discursou mesmo em uma homenagem em Paris.

“Essa é uma terra de poetas”, resume, com orgulho indisfarçável, o morador Manoel do Nascimento, 65.

Depois da igreja, a próxima parada é a biblioteca. A essa altura, a faixa do Totinho já se desgarrou e está dando rasantes pelo sertão baiano -que está verde porque é inverno. Torres autografa seus livros no salão lotado.

O vendedor da editora Record -que levou uma dúzia de exemplares de “O Cachorro e o Lobo”, lançado no ano passado- não consegue vender nenhum. “Já era esperado. É mais para marcar presença”, diz.

Falta ainda uma solenidade noturna na Câmara dos Vereadores. Novos discursos, coquetel com salgadinhos e fim de papo.

Junco

Antônio Torres nasceu de parteira em uma fazenda da região quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco, em 1940. Primogênito de 11 irmãos, foi criado ali e assistiu à chegada do primeiro caminhão: “Ele apareceu no topo da colina, descendo a estrada, trazendo um inédito cheiro de combustível. Ficamos com medo, achando que ele vinha atrás de nós”.

Torres saiu de lá aos 14 anos para estudar na vizinha Alagoinhas. Trabalhou em jornais em Salvador e São Paulo (“Última Hora”), passou para a publicidade e acabou se tornando escritor nos anos 70. Suas obras ganharam traduções na França, Alemanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e Israel.

Talvez o livro que melhor resuma a obra de Torres seja “Essa Terra”, lançado originalmente em 1976. Vendeu 100 mil exemplares no Brasil e hoje está em sua 13ª edição, pela Ática.

O mote de “Essa Terra”, e de várias de suas obras, não é apenas a cidade perdida na seca. É isso mais a migração dos baianos para São Paulo em busca de trabalho. E também o destino trágico de quem não consegue vencer na cidade grande.

No livro, após anos trabalhando em São Paulo, o baiano Nelo volta para Junco e é recebido com festa. Todos o imaginam vencedor. Afinal de contas, chega usando óculos Ray-Ban e palavras difíceis. Mas acaba cometendo suicídio, se enforcando com uma rede.

Nelo é inspirado em história real. Em 1973, um satirodiense conhecido como Lela de Tote, depois de várias idas e vindas a São Paulo, se enforcou assim.

O que impressionou a cidade não foi o suicídio. “Havia muitos”, conta Torres, “mas o fato foi que Lela não amarrou seu pescoço em uma árvore, deixando a gravidade fazer o serviço. Ele se enforcou na armação de uma rede, que era mais baixa que ele próprio, apertando a corda com as mãos e morrendo de joelhos”.

Partindo dessa história, Torres traça um panorama desse sertão baiano, em que a seca expulsa os roceiros para São Paulo ou outras metrópoles. Não é o universo de “Vidas Secas” (Graciliano Ramos), em que os miseráveis cortam a caatinga a pé.

Os roceiros de Torres pegam caminhão pau-de-arara ou ônibus para o Sudeste, trabalham na construção civil e voltam para Sátiro Dias -ou Junco, como o escritor prefere.

Torres gosta tanto do antigo nome da cidade que só se refere a ela como Junco. Chegou a ensaiar um movimento para que a cidade reassumisse o nome.

“Não deu certo, mas já estou me acostumando. Sátiro Dias, na verdade, foi um baiano porreta. Trouxe o correio para nosso arraial e soltou os escravos do Ceará, onde foi governador, quatro anos antes da Lei Áurea”, diz Torres.

O correio trazido por Sátiro Dias foi, por décadas, o único meio de comunicação dos moradores com seus parentes no Sudeste. O primeiro telefone, por exemplo, só chegou ali em 1986. Até hoje, a agência recebe cerca de 300 cartas e envia outras tantas por semana.

A chegada do telefone faz parte da modernização pela qual Sátiro Dias passa nos últimos tempos. Já existem parabólicas na cidade (a televisão chegou em 1975). E há quatro anos, os últimos 40 quilômetros de estrada de terra que separavam a cidade do resto da Bahia foram vencidos pelo asfalto.