do enviado a Sátiro Dias (BA)
Há três meses, Antônio Torres abandonou o trabalho que exerceu, paralelamente à escrita, nos últimos 35 anos: a publicidade.
Criador de campanhas para a Volkswagen, Danone, Brahma, Skol e algumas marcas de cigarros, Torres agora vai se dedicar exclusivamente aos livros e a textos encomendados. “Agora sou free-lance”, diz.
Há duas semanas, o escritor voltou à sua cidade natal e percebeu que, apesar das melhorias na infra-estrutura de Sátiro Dias, seus conterrâneos continuam a sair de lá em direção às grandes cidades. “É o fascínio pela civilização”, afirma.
Na casa de sua avó em Sátiro Dias, no sábado retrasado, entre as
visitas de uma tia e outra, ele deu a seguinte entrevista à Folha.
Folha – O senhor viveu aqui até 1954, quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco. Existe alguma semelhança entre as duas cidades ou esses 44 anos mudaram tudo?
Antônio Torres – Vejo que, hoje, a situação é menos dura. Antes não tinha hospital; hoje tem dois. Eu nasci de parteira. Educação, era só o primário. Agora já tem segundo grau. Não tinha estrada. Tinha dois rádios a bateria, um na venda do Josias Cardoso, onde ouvi a morte do Getúlio Vargas, em 1954.
Não tinha luz. Eu me lembro quando chegou o motor de luz, que só funcionava até as 22h, a óleo diesel. Água, tinha que buscar no tanque, que a gente cavava na terra e esperava chover pra encher.
Folha – Era a seca que expulsava os baianos do sertão?
Torres – É. As secas eram até menos frequentes que hoje, mas eram bem piores. Lembro de uma, em 1950, em que a gente tinha que andar muito para achar água. O gado morria na nossa frente. Eu via os bois subindo as encostas, atrás de um filetinho de verde, um mínimo de vegetação. Mas já estavam fracos demais, despencavam da ribanceira e quebravam o pescoço. Muito triste.
Hoje, se a seca é brava, é possível conseguir ajuda, é mais fácil. Ela deixou de expulsar as pessoas. Em três horas de carro, a gente chega em Salvador. Antes era a pé ou a cavalo. Saía daqui, dormia em Inhambupe. Esperava uma carona para Alagoinhas e lá tomava um trem para Salvador. Depois pegava outro trem, que sempre descarrilava em Monte Azul, Minas Gerais. Demorávamos sete dias para chegar a São Paulo.
Folha – Quando o senhor saiu, estava fugindo da seca?
Torres – No meu caso, eu saí porque queria estudar. Mas na minha cabeça, a busca pelo trabalho fora daqui começa quando chega o primeiro caminhão, no início dos anos 50. Aquele cheiro de combustível embriagou a gente. Mexeu com a cabeça. Quando começam a chegar os caminhoneiros, os rapazes de fora, eles aparecem vestidos de outro jeito, falando gírias desconhecidas. As meninas ficavam loucas, e a gente queria sair para voltar e ser igual a eles.
Folha – E para onde ia quem saía daqui?
Torres – Muitos iam para São Miguel Paulista, na Grande São Paulo. Isso porque o primeiro homem de Junco a chegar em São Paulo foi para lá. Então começaram a chegar cartas com o remetente de São Miguel Paulista. O segundo foi para lá também e assim foi. Era esse movimento de cartas que ia levando as pessoas.
Em 61, no meu primeiro fim-de-semana em São Paulo, fui para São Miguel. Todo mundo estava lá, dançando forró; eles tinham levado o forró para o Sudeste. Nunca me esqueço da primeira coisa que me perguntaram: “Você sabe se está chovendo em Junco?”. Porque eles já queriam voltar! E é esse o eixo de “Essa Terra”. Apesar de um alemão que leu o “Diese Erde” (“Essa Terra” em alemão) ter dito que o eixo é a solidão em um país grande.
Folha – Se a vida melhorou por aqui, por que os satirodienses continuam saindo?
Torres – Acho que o ir e vir ficou intenso a partir do asfalto da Rio-Bahia, na era Kubitschek. E depois veio a televisão, em 75. A civilização começou a chegar dentro das casas das pessoas, poderosamente sedutora. A sociedade de consumo mexe com a cabeça do mundo inteiro. É o fascínio pela civilização. Em Cuba, em 83, senti isso. Na Bulgária, em 85, senti também. É o mesmo problema dos países comunistas, que não atendiam aos desejos de consumo.
E tem também outra coisa: em São Paulo, todo mundo podia ser ajudante de pedreiro, passar o dia inteiro melado na massa e depois tomar banho e se sentir doutor. Porque na cidade grande ninguém te conhece. Então, pelo menos aparentemente, não havia discriminação.
Folha – Como os moradores daqui vêem seus livros? Se sentem os próprios personagens?
Torres – Os que estão em São Paulo se sentem mais ainda do que os que ficaram aqui. Uma vez, me fizeram uma homenagem na Associação dos Funcionários do Frigorífico Central de Santo André. É que o “Essa Terra” tinha sido lançado em Paris, e a notícia saiu em vários jornais da cidade. Eles ficaram muito orgulhosos, me abraçavam e choravam.
Folha – Como foi o processo de criação de “Essa Terra”?
Torres – Em 73, um primo contou que um parente nosso, depois do ir e vir de São Paulo, tinha se enforcado na armação de uma rede. E que outro primo viu o morto e foi dar um tapa no rosto dele, achando que estava dormindo. E o rosto pendeu para o outro lado. Esse cena está no livro. Mas quando vim para cá, ninguém queria me contar. Só diziam para eu esquecer o assunto.
Aconteceu que, do fracasso do repórter, nasceu o ficcionista. Por que ele se matou daquela forma tão horrível? Ele trocou um lugar pelo outro, não conquistou o segundo e perdeu o primeiro. Deixou um bilhete, pedindo para não acusar o dono da casa e pedindo que o Nenê Vieira providenciasse o enterro dele. Depois o dono da casa se matou também. Fiz até psicanálise nessa época.
Folha – “Essa Terra” se passa nessa cidade há mais de 20 anos. Os personagens ainda estão aqui?
Torres – Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970, quando eu vinha aqui, as pessoas me perguntavam: “Meu filho, você é aquele que mora naquelas terras tão longe?”.
Agora ninguém mais me pergunta isso. A Embratel e o asfalto encurtaram essa distância. Eles não são mais os personagens de “Essa Terra”. Eles são os personagens de “O Cachorro e o Lobo”, que eu lancei no ano passado. Puxa, meu avô morreu em 77 sem ter visto uma televisão ou um telefone! Conheceu só o correio e o rádio. Hoje estamos aqui na casa dele e tem TV, videocassete, parabólica, som hi-fi, CDs do Sepultura. É um novo povo.