A seca não expulsa; é a civilização que atrai

do enviado a Sátiro Dias (BA)

Há três meses, Antônio Torres abandonou o trabalho que exerceu, paralelamente à escrita, nos últimos 35 anos: a publicidade.

Criador de campanhas para a Volkswagen, Danone, Brahma, Skol e algumas marcas de cigarros, Torres agora vai se dedicar exclusivamente aos livros e a textos encomendados. “Agora sou free-lance”, diz.

Há duas semanas, o escritor voltou à sua cidade natal e percebeu que, apesar das melhorias na infra-estrutura de Sátiro Dias, seus conterrâneos continuam a sair de lá em direção às grandes cidades. “É o fascínio pela civilização”, afirma.

Na casa de sua avó em Sátiro Dias, no sábado retrasado, entre as visitas de uma tia e outra, ele deu a seguinte entrevista à Folha.

Folha – O senhor viveu aqui até 1954, quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco. Existe alguma semelhança entre as duas cidades ou esses 44 anos mudaram tudo?

Antônio Torres – Vejo que, hoje, a situação é menos dura. Antes não tinha hospital; hoje tem dois. Eu nasci de parteira. Educação, era só o primário. Agora já tem segundo grau. Não tinha estrada. Tinha dois rádios a bateria, um na venda do Josias Cardoso, onde ouvi a morte do Getúlio Vargas, em 1954.

Não tinha luz. Eu me lembro quando chegou o motor de luz, que só funcionava até as 22h, a óleo diesel. Água, tinha que buscar no tanque, que a gente cavava na terra e esperava chover pra encher.

Folha – Era a seca que expulsava os baianos do sertão?

Torres – É. As secas eram até menos frequentes que hoje, mas eram bem piores. Lembro de uma, em 1950, em que a gente tinha que andar muito para achar água. O gado morria na nossa frente. Eu via os bois subindo as encostas, atrás de um filetinho de verde, um mínimo de vegetação. Mas já estavam fracos demais, despencavam da ribanceira e quebravam o pescoço. Muito triste.

Hoje, se a seca é brava, é possível conseguir ajuda, é mais fácil. Ela deixou de expulsar as pessoas. Em três horas de carro, a gente chega em Salvador. Antes era a pé ou a cavalo. Saía daqui, dormia em Inhambupe. Esperava uma carona para Alagoinhas e lá tomava um trem para Salvador. Depois pegava outro trem, que sempre descarrilava em Monte Azul, Minas Gerais. Demorávamos sete dias para chegar a São Paulo.

Folha – Quando o senhor saiu, estava fugindo da seca?

Torres – No meu caso, eu saí porque queria estudar. Mas na minha cabeça, a busca pelo trabalho fora daqui começa quando chega o primeiro caminhão, no início dos anos 50. Aquele cheiro de combustível embriagou a gente. Mexeu com a cabeça. Quando começam a chegar os caminhoneiros, os rapazes de fora, eles aparecem vestidos de outro jeito, falando gírias desconhecidas. As meninas ficavam loucas, e a gente queria sair para voltar e ser igual a eles.

Folha – E para onde ia quem saía daqui?

Torres – Muitos iam para São Miguel Paulista, na Grande São Paulo. Isso porque o primeiro homem de Junco a chegar em São Paulo foi para lá. Então começaram a chegar cartas com o remetente de São Miguel Paulista. O segundo foi para lá também e assim foi. Era esse movimento de cartas que ia levando as pessoas.

Em 61, no meu primeiro fim-de-semana em São Paulo, fui para São Miguel. Todo mundo estava lá, dançando forró; eles tinham levado o forró para o Sudeste. Nunca me esqueço da primeira coisa que me perguntaram: “Você sabe se está chovendo em Junco?”. Porque eles já queriam voltar! E é esse o eixo de “Essa Terra”. Apesar de um alemão que leu o “Diese Erde” (“Essa Terra” em alemão) ter dito que o eixo é a solidão em um país grande.

Folha – Se a vida melhorou por aqui, por que os satirodienses continuam saindo?

Torres – Acho que o ir e vir ficou intenso a partir do asfalto da Rio-Bahia, na era Kubitschek. E depois veio a televisão, em 75. A civilização começou a chegar dentro das casas das pessoas, poderosamente sedutora. A sociedade de consumo mexe com a cabeça do mundo inteiro. É o fascínio pela civilização. Em Cuba, em 83, senti isso. Na Bulgária, em 85, senti também. É o mesmo problema dos países comunistas, que não atendiam aos desejos de consumo.

E tem também outra coisa: em São Paulo, todo mundo podia ser ajudante de pedreiro, passar o dia inteiro melado na massa e depois tomar banho e se sentir doutor. Porque na cidade grande ninguém te conhece. Então, pelo menos aparentemente, não havia discriminação.

Folha – Como os moradores daqui vêem seus livros? Se sentem os próprios personagens?

Torres – Os que estão em São Paulo se sentem mais ainda do que os que ficaram aqui. Uma vez, me fizeram uma homenagem na Associação dos Funcionários do Frigorífico Central de Santo André. É que o “Essa Terra” tinha sido lançado em Paris, e a notícia saiu em vários jornais da cidade. Eles ficaram muito orgulhosos, me abraçavam e choravam.

Folha – Como foi o processo de criação de “Essa Terra”?

Torres – Em 73, um primo contou que um parente nosso, depois do ir e vir de São Paulo, tinha se enforcado na armação de uma rede. E que outro primo viu o morto e foi dar um tapa no rosto dele, achando que estava dormindo. E o rosto pendeu para o outro lado. Esse cena está no livro. Mas quando vim para cá, ninguém queria me contar. Só diziam para eu esquecer o assunto.

Aconteceu que, do fracasso do repórter, nasceu o ficcionista. Por que ele se matou daquela forma tão horrível? Ele trocou um lugar pelo outro, não conquistou o segundo e perdeu o primeiro. Deixou um bilhete, pedindo para não acusar o dono da casa e pedindo que o Nenê Vieira providenciasse o enterro dele. Depois o dono da casa se matou também. Fiz até psicanálise nessa época.

Folha – “Essa Terra” se passa nessa cidade há mais de 20 anos. Os personagens ainda estão aqui?

Torres – Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970, quando eu vinha aqui, as pessoas me perguntavam: “Meu filho, você é aquele que mora naquelas terras tão longe?”.

Agora ninguém mais me pergunta isso. A Embratel e o asfalto encurtaram essa distância. Eles não são mais os personagens de “Essa Terra”. Eles são os personagens de “O Cachorro e o Lobo”, que eu lancei no ano passado. Puxa, meu avô morreu em 77 sem ter visto uma televisão ou um telefone! Conheceu só o correio e o rádio. Hoje estamos aqui na casa dele e tem TV, videocassete, parabólica, som hi-fi, CDs do Sepultura. É um novo povo.

Antônio Torres: Um escritor com um pé na estrada e outro na linguagem

por Ítalo Meneghetti

O nomadismo da linguagem ficcional de Antônio Torres amplia a noção de espaço na construção romanesca contemporânea da literatura brasileira fazendo o leitor viajar na fronteira entre o papel e a imaginação.

“Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Com essas palavras Antônio Torres abre a cena do seu livro O cachorro e lobo, segundo romance de uma trilogia que tem início com Essa terra e, provisoriamente, termina com Pelo fundo da agulha. Ótima pegada literária para começar a página em branco, angústia de todo escritor, mas que, para o baiano do Junco é sempre o ponto de partida lúdico para mais uma viagem dentre as tantas que já empreendeu nos caminhos da linguagem, quando espaço na imaginação e convite permanente ao imaginário dos leitores.

Ítalo Meneghetti é doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com bolsa de pesquisa-doutorado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor universitário, atualmente responsável pelas disciplinas de Literatura Brasileira e Teoria Literária das Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (FIRP). Trabalha como pesquisador e consultor autônomo, na interface cultura e ambiente, junto ao Terceiro Setor, atuando no projeto de criação da Fundação Mantiqueira, no sul de Minas Gerais. Escreve os blogs www.cadernosdoprofessoritalo.blogspot.com e www.lavradapalavraitalobruno.blogspot.com . Contato: < italo.meneghetti@gmail.com >.

Juan Rulfo (1917-1986), consagrado escritor mexicano em seu brilhante Pedro Páramo também desloca o seu protagonista no espaço para declarar, logo na primeira linha, o seu tom inquietante de uma escrita nômade buscando lugares e gentes para dar ambiência à narrativa, espacializando o texto, arrancando o leitor da sua cômoda poltrona ou divã, puxando-o para a estrada, no pó divagador da linguagem – “Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera.”.

Em algumas entrevistas Antônio Torres declara a sua admiração por Juan Rulfo e, não por obra do acaso as suas escritas buscam processos que se assemelham. Trabalham com a complexidade do espaço local dos lugarejos, que apesar da aparente simplicidade e mesmice encerram em seu teor dramático o mundo. Daí, desde a muito, ficcionistas como Torres e Rulfo deixaram para traz as aparentes cercas da região e ganharam outras terras por força da universalização das suas narrativas.

Afirmar que tais escritores são regionalistas, no sentido reducionista, é, no mínimo, desconhecer geografia e a força do lugar como célula do mundo em seu teor humano de conflito e possibilidades. João Gumarães Rosa apostou nisso e criou uma das maiores obras do século 20, fazendo do lugar sertão todo lugar do mundo onde houver alguém no dilema do amor, da vida, da morte e da solidão na existência.

Antônio Torres, esse nômade contemporâneo das nossas letras, faz de cada criação uma viagem, levando na bagagem, feita de muita pesquisa, memória e lembrança, o seu leitor que o acompanha na poeira da sua linguagem estradeira, misto de caravana em travessia nos desertos do sertão nordestino e andanças na solidão das metrópoles do mundo.

“O mundo é um carro de boi, que vai rodando para a frente, gemendo em cima de um eixo.” O deslocamento. A inquietude do movimento. Trânsito. Idas e vindas. Travessia. O nomadismo da linguagem ficcional de Antônio Torres amplia a noção de espaço na construção romanesca contemporânea da literatura brasileira fazendo o leitor viajar na fronteira entre o papel e a imaginação.

A linguagem torresiana brota dos mananciais barthesianos, plena de sabor e saber, temperada no ludismo com que os grandes escritores preparam as suas iguarias para servir ao paladar sensível e exigente dos convidados à mesa da leitura. E ler é sempre um convite à degustação.

“E lá embaixo está a rua, como o lugar sempre foi chamado, desde os seus tempos de povoado. Virou uma cidadezinha, quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas – à espera do fim do mundo. Não faz nem meio século que ganhou o status de cidade. Mas quantos anos de solidão?”

Aliando estética apurada de linguagem ao deslocamento quase obsessivo de seus personagens os textos de Antônio Torres são feitos de amplidão acolhendo toda a nossa ânsia essencial por andar com os pés, o olhar e a imaginação os lugares do mundo, feitos de vilarejos e metrópoles, por onde todos caminham e passeiam com o que nos faz um só e o mesmo em todos os lugares: a presença e ausência com que nos brindam a vida e a morte seja qual for a vida, qual seja a morte.

“Agora refaço o caminho com a certeza de que não é mais o mesmo. Parece intransitável, tantos são os seus buracos e regueirões. Por aqui passavam carros de bois, tropeiros, vaqueiros, cavaleiros endomingados, homens, mulheres e meninos, à pé, em bando, e também caminhantes solitários.”

A geografia do espaço em Antônio Torres é complexa demandando cuidadoso estudo teórico do seu universo construído na largueza de muito chão e afeto, sugerindo uma das mais afetivas geografias ficcionais da literatura brasileira, ao lado da produzida por João Guimarães Rosa, onde a dimensão sertaneja rompe todas as fronteiras e se humaniza em cada homem de cada lugar.

TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 133.

Rulfo, Juan. Pedro Páramo. México-Barcelona: Editorial RM, 2005.

TORRES, Antônio. Essa Terra. 15.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 141.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

BARTHES, Roland. Aula. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 215.

Antônio Torres escreve desde 1972, com 17 livros lançados no Brasil, alguns traduzidos em diversos países, premiado no Brasil e exterior, forte candidato à ABL pela qualidade do conjunto da obra reunida nos gêneros romance, conto e crônica.

TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 7.

TORRES, Antônio. Essa terra. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. Atualmente na 23ª edição brasileira, com mais de 150 mil exemplares vendidos e traduzido para a França, Alemanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Israel.

TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Feira de livro: Quanto menor, melhor

Texto publicado na revista Leitura, da Biblioteca Nacional, em Maio de 2008

Comecemos lembrando que feira vem do latim feria e significa dia de festa. Daí o seu caráter festivo, seja ela do que for, do gado aos livros, em local onde se faz mercado, em épocas fixas. E onde acontecem as reuniões de vendedores e compradores, estes atraídos por motivações as mais variadas, como o atendimento a necessidades básicas (produtos alimentícios e de vestuário, por exemplo), novidades, vendas a preços reduzidos, entretenimento, animação.

Suas origens remontam à Grécia Antiga, em Delfos e Delos. Mas foi na Alta Idade Média, com a renovação comercial da Europa, que as feiras se tornaram o centro da vida econômica internacional. A partir de então passaram a ser favorecidas pelos senhores e pelos reis, que concediam privilégios a seus participantes (garantia de herança, garantia contra prisão por dívida, autorização de empréstimo a juros), e se tornaram também Bolsas de Valores que aceitavam letras de câmbio e pagamentos a termo. Isso proporcionou o surgimento de grandes corredores comerciais nas cidades situadas ao longo das encruzilhadas das estradas que levavam da Itália aos Países Baixos, e nas que iam da Hansa à Île-de-France.

Sim, foi na França, e no século VII, que as feiras progrediram. Mais precisamente: em Saint-Denis e no Lendit. Chegaram ao apogeu no século XII, quando o renascimento comercial europeu e o recuo do Islã puseram em relevo as cidades de Champagne e outras próximas do Mediterrâneo, na região de Languedoc – Nîmes, Carcassone, Saint-Gilles. Do século XIII em diante, feiras como a de Beucaire, cidade situada no vale do Ródano, cresceram de importância. Instituídas em 1420, as de Lyon se tornaram ponto de encontro internacional e de concentração de bancos. Fora da França, destacaram-se as de Bruges, Antuérpia, Ypres e Torhout, nos Países Baixos; Stourbridge, na Inglaterra; Colônia, Frankfurt, Nuremberg, Leipzig, na Alemanha; Milão, Veneza ou Piacenza, na Itália. Depois do século XVII, a maior parte delas viria a desaparecer, em função da melhoria das comunicações, o que levou as companhias comerciais a distribuir os seus produtos através de uma rede de sucursais.  

Evolução mercadológica alguma, porém, seria capaz de decretar o fim das feiras. Elas haveriam de sobreviver à vertiginosa expansão dos sistemas de distribuição de mercadorias, com as facilitações dos canais de vendas (supermercados, shoppings, redes de lojas globalizadas, telemarketing, web, tudo que está aí, ao alcance das nossas mãos). Adaptaram-se aos novos tempos e diversificaram-se, de acordo com o meio e as modas. Das feirinhas semanais de cada povoado ou cidadezinha, às dos bairros nas cidades maiores, elas cresceram e se multiplicaram, em cenários ideais para lançamentos de produtos, promoções, alívio de estoques, convívio, festa. No Brasil, há até uma cidade que deve o seu nome a uma feira de gado, evocada numa música que os boiadeiros cantavam pelas estradas de uma vasta região do país: “Mundo Novo adeus/ adeus minha amada/ eu vou pra Feira de Santana/ eu vou vender minha boiada”. A história dessa feira começa em meados do século XVIII, numa fazenda chamada Santana, no estado da Bahia, que se tornou pouso para tropas de gado que vinham do Piauí, Goiás, Minas Gerais e do próprio interior baiano. O ajuntamento resultou em feira e daí à fundação, em 1873, da Cidade Comercial de Feira de Santana, que em 1938 teria o seu nome reduzido para o atual. Autoproclamada “a princesa do sertão”, Feira de Santana é hoje a maior cidade do interior baiano, com cerca de 800 mil habitantes. O seu desenvolvimento fez com que o campo do gado desse lugar à ocupação urbana e se tornasse apenas uma referência histórica.

Igualmente memorável é a feira de Caruaru, em Pernambuco, aquela que “dá gosto a gente ver”, pois “de tudo que há no mundo, nela tem pra vender”, conforme a imortalizou Luiz Gonzaga, o rei do baião. E quem não se lembra de Simon & Garfunkel cantando “I’am going to Scaborough fair?” A dupla cantante alardeava que estava indo à feira de uma cidade do estado de Nova York, que pelo visto devia ser famosa. E agora passemos ao real motivo destas linhas: as feiras de livros. Claro que estas têm propósitos idênticos aos de quaisquer outras, mas de algumas delas se diferenciando pelo histórico menos enciclopédico. Entre o célebre poema de Castro Alves, O livro e a América, declamado com grande sucesso pela atriz Eugênia Câmara em 3 de julho de 1867 (“Oh! Bendito o que semeia/ Livros… livros à mão cheia… / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma/ É germe – que faz a palma, / É chuva – que faz o mar”), a fundação, em 1918, da primeira editora nacional, pelo escritor Monteiro Lobato, e o surgimento das feiras de livros no Brasil, muita água rolou debaixo das pontes. Mas onde? Quando?

Uma cidade: Porto Alegre.
Data: 16 de novembro de 1954

A cidade adentrara a década de 1950 com 400 mil habitantes. Seu local de maior movimento era a Praça da Alfândega. Diante da badalação bem ao centro da capital gaúcha, um jornalista chamado Say Marques achou que ali estava um lugar perfeito para a instalação de uma feira de livros. Sua idéia não surgira do nada. Ele se inspirara em algo do gênero que havia visto na Cinelândia, no Rio de Janeiro. E assim, no dia 16 de novembro de 1954 os gaúchos tiveram um motivo a mais para badalar na Praça da Alfândega: a inauguração da Feira do Livro de Porto Alegre, que se resumia a 14 barracas de madeira em torno do monumento ao general Osório. 

Um começo modesto, diríamos hoje, já acostumados aos mega-eventos que a indústria editorial tem promovido. No entanto não se pode dizer o mesmo do objetivo daquela feira, que se iniciava com uma conceituação ambiciosa: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”. Tal slogan encarava um problema que perdura no país através dos tempos, escancarando uma realidade irrefutável: nossas livrarias são para poucos. Se não chegamos a ter, em todo o nosso imenso território, menos pontos de venda de livros do que a cidade de Buenos Aires, como se costuma alardear, ainda não dá para nos ufanarmos dos nossos números já alcançados. Segundo a revista Panorama Editorial (no. 35/ outubro 2007), da Câmara Brasileira do Livro, um diagnóstico do setor livreiro desenvolvido pela ANL aponta a existência de 2.600 livrarias no Brasil. A maior parte (53%) está concentrada na região Sudeste e distribuída da seguinte maneira: 48% em São Paulo; 24% no Rio de Janeiro; 25% em Minas Gerais; e 3% no Espírito Santo. Os outros 47% estão assim divididos: 15% na região Sul; Nordeste, 20%; Norte, 5%. Centro-Oeste, 4%; Distrito Federal, 3%.

O quadro exposto acima não é nada favorável em relação ao acesso da população aos livros. E isto mais de meio século depois do brado porto-alegrense, que vale a pena ler de novo: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”. As estatísticas comprovam que o apelo publicitário dos livreiros, em 1955, continua atualíssimo. De acordo com recomendações da ONU (Organização das Nações Unidas), o ideal é haver uma livraria para cada 10 mil habitantes. “Estamos muito longe dessa realidade”, diz Vítor Tavares, presidente da ANL, a Associação Nacional de Livrarias, à já citada Panorama Editorial. Ele dá como exemplo o estado de São Paulo, onde há apenas 676 livrarias – o maior número do país – para uma população de mais de 40 milhões de habitantes.

Tudo isso reforça a necessidade de mais e mais feiras de livros Brasil adentro e afora, a exemplo de Porto Alegre, que entrou para a história menos pelo pioneirismo da sua iniciativa e mais pelas inovações que iria introduzir em relação às incipientes, precárias e esparsas realizações do gênero em outras praças. Já na sua segunda edição (1955), a Feira do Livro de Porto Alegre apresentava como novidade as sessões de autógrafos. Na terceira, passou a vender coleções pelo sistema de crediário. Nos anos 70, introduziu uma programação cultural que lhe deu mais abrangência. Na década de 1980, abriu espaços para livros usados. A partir de 1990 veio a ter a adesão de grandes patrocinadores. Cresceu e apareceu no calendário de eventos anuais da cidade, consagrando-se não só por se tratar de uma das mais antigas e maiores feiras de livros do país, cujo interesse se tornou nacional, mas por se manter fiel à velha praça onde foi inaugurada, com todo o seu charme histórico e colorido popular. E porque há registros de sua origem, continuidade e desenvolvimento, até em livro (do escritor gaúcho Walter Galvani), não deixa de ser um marco dos empreendimentos congêneres bem sucedidos da indústria e comércio livreiros. E, de alguma maneira, serviu (e serve) de modelo às de cidades que as realizam em praças públicas, em vez dos fechados e sombrios centros de convenções, como as de Ribeirão Preto (SP) e Caxias do Sul (RS), esta já entrando na sua 24ª. edição, significando isto que ela existe desde 1984.

Lobato ia gostar de ver isso,
ou diria que ainda é pouco?

 No eclético elenco de suas criações figura um slogan indelével: “Um país se faz com homens e livros”. Hoje há quem conteste isso. Pouco adiantará produzir-se livros e livros à mão cheia num país ágrafo. Melhor cuidar antes da formação de leitores. Seria, então, a porção editor de Monteiro Lobato que havia pesado mais, quando ele investiu em tal campanha?

Polêmicas à parte, o certo é que as idéias que mais o consumiram não foram em vão. A começar pela que ficou conhecida como “O escândalo do petróleo”. Hoje pareceria até inacreditável que um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de petróleo em território nacional, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, na periferia de Salvador, Bahia, no ano de 1939. Mas era agora, ao saber que o país se prepara para entrar no cartel dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo, que o polemista José Bento Monteiro Lobato (1882 – 1948) poderia se sentir um visionário. E também ao constatar que avançamos a passos de gigantes na indústria editorial, que é hoje a mais poderosa de toda a América Latina. E é essa indústria a maior incentivadora das feiras de livros, que funcionam como canais de escoamento de uma produção que nem sempre está ao alcance dos leitores nos limitados espaços das livrarias.

À medida em que cresceram e se multiplicaram, as feiras passaram a ter outras designações. Foi então que surgiram as bienais, a começar pela de São Paulo, inaugurada em 1968. A do Rio de Janeiro seria instalada pela primeira vez em 1981. O próprio crescimento do mercado empurrou-as para o gigantismo e para a participação internacional: países homenageados, número cada vez maior de escritores estrangeiros convidados etc, tudo isso inspirado no Salão do Livro de Paris, que homenageou o Brasil em 1987 e 1998 – a idéia dos cafés literários veio de lá -, e na Feira de Frankfurt, que o fez em 1994.

Por sua vez, as bienais do Rio e São Paulo inspiraram outras, de Campo Grande, MS, a Fortaleza, CE, de Goiânia, GO, a Maceió, AL. No rodízio geral, somam com as feiras anuais, que chegaram à marca de 150, informa a Câmara Brasileira do Livro. Segundo a CBL, as menores congregam em média 100 mil pessoas. O recorde de público ficaria com a Bienal de São Paulo de 2006: 811 mil participantes. A do Rio de Janeiro também costuma fazer bonito na passarela, pois há muito tempo vem ultrapassando os 600 mil visitantes, conforme o Sindicato Nacional dos Editores de Livros tem divulgado.

Cronologicamente, o Rio Grande do Sul volta a merecer um capítulo especial, pelas também bienais Jornadas Literárias Nacionais de Passo Fundo, criadas em 1981, com 750 participantes, que atualmente chegam a cerca de 20 mil, no espaço de maior movimentação cultural do país, aliando a formação de leitores à venda de livros, num feirão que começa dentro da UPF – a universidade que idealizou o evento e, em associação com a prefeitura local, o organiza, promove e divulga -, às mais de dez livrarias da cidade, cuja existência se deve às Jornadas Literárias, promotoras ainda de um dos maiores prêmios brasileiros (100 mil reais), que tem o nome da empresa que o patrocina, Zaffari & Bourbon. Tudo sob o comando da dinâmica professora Tânia Rösing. Resultado: uma outrora obscura cidade interiorana de 170 mil habitantes, para lá da serra gaúcha, foi guindada ao título de Capital Nacional da Literatura, sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, através da lei federal no. 11 264, de 02/01/06. É preciso dizer mais?

Na seqüência, vem o caso da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), cuja repercussão supera as das iniciativas similares européias (são mais de mil), que lhe serviram de modelo. Pelo menos essa é a avaliação de sua idealizadora, a inglesa Liz Calder. Por sua vez a Flip fez moda nos trópicos e inspirou os encontros de Ouro Preto, MG, e, mais visivelmente, a Fliporto (Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas, Pernambuco), e Brasil vai. O ano de 2007 acrescentou um ponto a essa história, com a entrada em cena da Feira do Livro de São Luís, organizada pela Fundação Municipal de Cultura e o Sesc Maranhão. Tantas feiras, bienais, salões, jornadas e festas de livros seriam inimagináveis ao tempo de Monteiro Lobato. Mas não é necessário ser um crítico tão radical quanto ele foi para dizer que ainda falta muito para chegarmos a um nível ideal. Basta fazer a conta: 150 feiras por ano, num país de mais de cinco mil municípios. Entre os não-feirantes de livros inclui-se a próspera Feira de Santana. “Mundo Novo adeus…”

Vida de viajante

Novo mesmo é isto: nunca dantes se viu tanto escritor rodando de feira em feira como nos últimos tempos. Nesse ir-e-vir cruzam-se nomes em princípio de rodagem com outros já bem quilometrados, entre eles um pop-star oitentão, o popularíssimo Ariano Suassuna, aquele cristão que, ao contrário do seu personagem João Grilo, não nasceu antes do dia. Outro da mesma faixa etária que bomba nos auditórios é Carlos Heitor Cony, tão bom de prosa escrita quanto falada. E neste exato momento deve haver uma platéia em algum lugar se divertindo muito numa palestra de Nélida Piñon, de Moacyr Scliar, de Ignácio de Loyola Brandão, de Ferreira Gullar… só para lembrar alguns dos mais falantes.

O autor destas linhas faz parte do time dos que vivem de escrever e falar sobre isso. E atesta que houve um progresso considerável quanto à exposição pública de escritores nas mais variadas regiões do país. Tudo obedece a uma estrutura com apoio logístico, quanto a transportes, hospedagem, alimentação, e algum respaldo econômico. Esse tempo de estrada, porém, vem de longe. A bem dizer, começou em 1975 com um debate no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, organizado pelo contista João Antônio e mediado pelo filólogo Antônio Houaiss. Três dos componentes da mesa passaram a ser convidados para falar em tudo quanto era canto, às vezes juntos, em outras separados. Foram eles o já citado Loyola (conferir no livro dele, Veia bailarina, de 1997), o próprio João Antônio e o locutor que vos escreve. Um dia foi Campos, outro Bauru, depois Assis, Marília, Campinas, Americana, Araraquara. Parecíamos uma trupe mambembe, a ciganear de cidade em cidade, e logo cruzando com outros escritores, de diferentes gerações e tendências, em rodoviárias, estações de trens, aeroportos, hotéis. Mas também dormíamos em casa de professor ou em alojamento de estudante, sempre correndo o risco de sermos proibidos de falar, como aconteceu na Universidade Federal de Juiz de Fora. (Na semana seguinte, a mesma proibição recairia sobre Darcy Ribeiro e Ferreira Gullar). Tudo parecia uma aventura, nem sempre confortável, mas com seus encantos.

Um deles era a descoberta dos nossos pares. Márcio Souza em Manaus; Moacyr Scliar e Tânia Faillace em Porto Alegre; João Ubaldo Ribeiro em Salvador; Benedicto Monteiro em Belém do Pará; Newton Navarro em Natal; Domingos Pellegrini Júnior em Londrina; Lygia Fagundes Telles, Edla Van Steen, Ivan Ângelo, Moacir Amâncio, Wladir Nader, Hamilton Trevisan, Márcia Denser e Raduan Nassar em São Paulo; Oswaldo França Júnior, Wander Piroli, Sérgio Sant’Anna e Roberto Drummond em Belo Horizonte; Luiz Vilela em Ituiutaba, onde no ano de 1976 houve uma feira de livros, à qual cheguei num ônibus que partira de São Paulo, e rodou por mais de mil quilômetros, quase nada, para quem havia estado na capital do estado do Amazonas poucos dias antes. Vida que segue: Curitiba, Criciúma, Itajaí, São José do Rio Preto, Mossoró, Fortaleza, Recife, Manaus e Belém outra vez, Ipatinga, Teixeira de Freitas, Jequié, Alagoinhas… de pequeno em pequeno público, acaba-se fazendo um publico, eis a esperança de quem vive de escrever e falar sobre isso.

Às vezes, de onde se espera muito não acontece nada, ou quase nada (os tais mega-eventos, por exemplo, de Rio e São Paulo), podendo-se comprovar também o contrário, como no modesto Salão do Livro do Piauí, realizado num centro de convenções de Teresina, onde um auditório com 800 lugares fica completamente lotado. E daí para mais, embora de forma previsível, em Paraty e Passo Fundo. Pois acredite: no mapa dos eventos literários nacionais, quem surpreende mesmo é Teresina, que acaba nos convencendo que  quanto menor é a feira de livro, melhor.    

No mais, é a solidão de um país grande.

Crônica / Ao Autor com Carinho por Jean Wyllys

Jean Wyllys (fonte original)

Dizem que, quando se lê um livro, um romance, o que menos importa é a intenção do autor. Isso porque cada leitor recria a obra em questão. Concordo. Mas não posso deixar de confessar que, desde que li Essa terra, de Antônio Torres, passei a alimentar a vontade de conhecê-lo pessoalmente, de trocar uma ou duas palavras com ele, mostrar meus escritos ou, se assim não fosse possível, pegar um autógrafo seu. Queria saber o que pensava aquele homem que criou história tão contundente sobre as estratégias de sobrevivência dos homens que vivem em fronteiras culturais.
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Os livros que até então havia lido – e, conseqüentemente, seus autores – não me despertaram igual desejo. Aconteceu com Essa terra talvez porque a edição que caiu em minhas mãos trazia, como prefácio, o fac-símile de uma carta em que aparecia a palavra “Alagoinhas”, nome de minha terra natal. Talvez porque o capítulo mais inventivo e mais triste – Essa terra me enlouquece – revela fatos que se passam em Alagoinhas. A vontade de conhecer Torres surgiu do sentimento de pertença.
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À medida que lia outros livros do escritor baiano, que é também um dos mais conhecidos e comentados escritores brasileiros fora do Brasil, via amadurecer aquele desejo. Mas havia decidido que não apressaria o rio. Se a minha vida tivesse que tropeçar na biografia de Torres, nada poderia fazer a não ser esperar. Continuei escrevendo, conclui o curso de jornalismo e passei a trabalhar como repórter. Certo dia, em meio ao burburinho da redação, recebi a notícia de que Antônio Torres voltaria à cidade de Sátiro Dias (há 20 anos ele deixou o interior da Bahia para se aventurar no eixo Rio – São Paulo) para receber homenagem da gente que lhe viu nascer. Exultei, principalmente porque o jornal me escolheu para cobrir o evento.
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Numa manhã ensolarada de agosto de 1998, o repórter fotográfico Haroldo Abrantes e eu chegamos ao antigo Junco (hoje Sátiro Dias), lugarejo à espera do fim do mundo no agreste baiano, a 191km de Salvador. Faixas, cartazes e até uma banda de pífanos rendiam loas ao ilustre escritor que colocou o nome daquela terra nas páginas do jornal Le Monde, de Paris. Mas o que me deixou em êxtase foi perceber que os personagens e os cenários descritos em seus livros estavam materializados em minha frente. Era impossível olhar aquelas quase três mil pessoas e não enxergar aquela gente que povoa romances como Essa terra, Adeus, velho e O cachorro e o lobo, dividida entre o amor ao buraco de solidão e poeira que é o Junco e a esperança de uma vida melhor em outros cantos.
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Depois de conversar com moradores da cidade, aproximei-me de Torres meio tenso embora estivesse exercendo a função de repórter. Ele abriu um sorriso, deixando transparecer certa surpresa em relação àquele repórter de 23 anos de idade, com cara de 17, e pediu que deixássemos a entrevista para mais tarde, quando ele estivesse sem tanta gente em volta. Concordei e segui para o cruzeiro que fica no alto de um monte, de onde se tem uma visão panorâmica de Sátiro Dias. Aos poucos a noite escura fez com que a luz das velas ao pé da cruz brilhassem mais.
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Chegou, enfim, a grande hora. Na casa do leitor de Antônio Torres mais apaixonado por sua obra, iniciamos a entrevista. Já que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão ou por trás dos disfarces, Torres notou que meu desejo maior era falar sobre literatura, especialmente a sua. Com o mesmo sorriso de antes, propôs: “Deixe o gravador de lado e vamos conversar sobre prosa e poesia”. E, em seguida, pediu um uísque ao dono da casa.
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Por horas seguidas conversamos sobre autores de que mais gostamos, recitamos trechos de poesias, cantamos músicas que remetem a personagens, lembramos obras adaptadas para a tevê, o cinema e o teatro, falamos mal dos vendilhões do templo, dos comerciantes travestidos de artistas, criticamos a arrogância dos que se autoproclamam intelectuais das Letras e as vaidades dos escritores e recordamos os encontros memoráveis. E rimos, rimos muito.
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A generosidade e a grandeza de Torres me comoveram bastante. Percebi que maior que o escritor (cuja talento é reconhecido em mais de 13 países e cuja obra é discutida em diversas universidades) é o homem. Ao mesmo tempo fiquei feliz por ele ser assim, pois, mesmo que digam que a intenção do autor é o que menos importa quando se lê um livro, se Torres fosse cínico, reacionário e hipócrita, como o são muitos escritores brasileiros menores que suas obras, com certeza passaria a enxergar Essa terra com outros olhos. E certamente não convidaria Torres para escrever a orelha de meu primeiro livro, Aflitos.
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* Jean Wyllys é jornalista e autor do livro de contos Aflitos e aluno do mestrado de letras e lingüística da Ufba
(Publicado no Correio da Bahia de 17/03/2002)