Jean Wyllys (fonte original)
Dizem que, quando se lê um livro, um romance, o que menos importa é a
intenção do autor. Isso porque cada leitor recria a obra em questão.
Concordo. Mas não posso deixar de confessar que, desde que li Essa
terra, de Antônio Torres, passei a alimentar a vontade de conhecê-lo
pessoalmente, de trocar uma ou duas palavras com ele, mostrar meus
escritos ou, se assim não fosse possível, pegar um autógrafo seu. Queria
saber o que pensava aquele homem que criou história tão contundente
sobre as estratégias de sobrevivência dos homens que vivem em fronteiras
culturais.
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Os livros que até então havia lido – e,
conseqüentemente, seus autores – não me despertaram igual desejo.
Aconteceu com Essa terra talvez porque a edição que caiu em minhas mãos
trazia, como prefácio, o fac-símile de uma carta em que aparecia a
palavra “Alagoinhas”, nome de minha terra natal. Talvez porque o
capítulo mais inventivo e mais triste – Essa terra me enlouquece –
revela fatos que se passam em Alagoinhas. A vontade de conhecer Torres
surgiu do sentimento de pertença.
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À medida que lia outros livros
do escritor baiano, que é também um dos mais conhecidos e comentados
escritores brasileiros fora do Brasil, via amadurecer aquele desejo. Mas
havia decidido que não apressaria o rio. Se a minha vida tivesse que
tropeçar na biografia de Torres, nada poderia fazer a não ser esperar.
Continuei escrevendo, conclui o curso de jornalismo e passei a trabalhar
como repórter. Certo dia, em meio ao burburinho da redação, recebi a
notícia de que Antônio Torres voltaria à cidade de Sátiro Dias (há 20
anos ele deixou o interior da Bahia para se aventurar no eixo Rio – São
Paulo) para receber homenagem da gente que lhe viu nascer. Exultei,
principalmente porque o jornal me escolheu para cobrir o evento.
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Numa
manhã ensolarada de agosto de 1998, o repórter fotográfico Haroldo
Abrantes e eu chegamos ao antigo Junco (hoje Sátiro Dias), lugarejo à
espera do fim do mundo no agreste baiano, a 191km de Salvador. Faixas,
cartazes e até uma banda de pífanos rendiam loas ao ilustre escritor que
colocou o nome daquela terra nas páginas do jornal Le Monde, de Paris.
Mas o que me deixou em êxtase foi perceber que os personagens e os
cenários descritos em seus livros estavam materializados em minha
frente. Era impossível olhar aquelas quase três mil pessoas e não
enxergar aquela gente que povoa romances como Essa terra, Adeus, velho e
O cachorro e o lobo, dividida entre o amor ao buraco de solidão e
poeira que é o Junco e a esperança de uma vida melhor em outros cantos.
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Depois
de conversar com moradores da cidade, aproximei-me de Torres meio tenso
embora estivesse exercendo a função de repórter. Ele abriu um sorriso,
deixando transparecer certa surpresa em relação àquele repórter de 23
anos de idade, com cara de 17, e pediu que deixássemos a entrevista para
mais tarde, quando ele estivesse sem tanta gente em volta. Concordei e
segui para o cruzeiro que fica no alto de um monte, de onde se tem uma
visão panorâmica de Sátiro Dias. Aos poucos a noite escura fez com que a
luz das velas ao pé da cruz brilhassem mais.
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Chegou, enfim, a
grande hora. Na casa do leitor de Antônio Torres mais apaixonado por sua
obra, iniciamos a entrevista. Já que os poetas, como os cegos, podem
ver na escuridão ou por trás dos disfarces, Torres notou que meu desejo
maior era falar sobre literatura, especialmente a sua. Com o mesmo
sorriso de antes, propôs: “Deixe o gravador de lado e vamos conversar
sobre prosa e poesia”. E, em seguida, pediu um uísque ao dono da casa.
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Por
horas seguidas conversamos sobre autores de que mais gostamos,
recitamos trechos de poesias, cantamos músicas que remetem a
personagens, lembramos obras adaptadas para a tevê, o cinema e o teatro,
falamos mal dos vendilhões do templo, dos comerciantes travestidos de
artistas, criticamos a arrogância dos que se autoproclamam intelectuais
das Letras e as vaidades dos escritores e recordamos os encontros
memoráveis. E rimos, rimos muito.
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A generosidade e a grandeza de
Torres me comoveram bastante. Percebi que maior que o escritor (cuja
talento é reconhecido em mais de 13 países e cuja obra é discutida em
diversas universidades) é o homem. Ao mesmo tempo fiquei feliz por ele
ser assim, pois, mesmo que digam que a intenção do autor é o que menos
importa quando se lê um livro, se Torres fosse cínico, reacionário e
hipócrita, como o são muitos escritores brasileiros menores que suas
obras, com certeza passaria a enxergar Essa terra com outros olhos. E
certamente não convidaria Torres para escrever a orelha de meu primeiro
livro, Aflitos.
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* Jean Wyllys é jornalista e autor do livro de contos Aflitos e aluno do mestrado de letras e lingüística da Ufba
(Publicado no Correio da Bahia de 17/03/2002)