Melhor seria estar aqui para falar com ele, e não sobre ele

Antônio Torres

(Data da publicação: 27 de maio de 2017. Onde: Caderno de Sábado do Correio do Povo, de Porto Alegre. Motivo: o evento “Scliar a quatro vozes”, realizado na noite anterior no Teatro da Santa Casa de Misericórdia, com Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, Zuenir Ventura e o autor deste texto).

“Sou apenas um dos numerosos nomes que integram a extensa lista daqueles que fazem do estado do Rio Grande do Sul o cenário e a motivação para a sua literatura”.

Foi assim que Moacyr Scliar se definiu em seu discurso de posse à Academia Brasileira de Letras. Era a noite de 22 de outubro de 2003 e ali, tanto para o numeroso público que o assistia, quanto para os anais da Casa de Machado de Assis, Scliar levou as suas marcas de origem, oriundas de uma cultura própria expressa num vigoroso legado literário, reflexo, por sua vez, de uma história verdadeiramente épica, da qual ele fez o seguinte resumo:

“Conquistado aos espanhóis, o território rio-grandense foi cenário de ferozes lutas que resultaram em sua incorporação à coroa portuguesa. As vastas extensões territoriais foram divididas entre os conquistadores. Resultou, daí, o latifúndio, que deu à região a sua primeira riqueza: o gado, criado extensivamente no pampa. E aí surge também o gaúcho, que logo inspiraria os primeiros escritores rio-grandenses, notadamente Simões Lopes Neto”.

Moacyr Scliar foi recebido na ABL por um seu conterrâneo, o poeta e romancista Carlos Nejar, que o descreveu como um judeu aventureiro e universal, cujo reino era o Bom Fim de Porto Alegre: os habitantes de sua infância, existentes, existidos ou inventados, aos quais, aliás, o próprio Scliar havia se referido como os primeiros leitores de suas primeiras historinhas, passadas de mão em mão no bairro pelos seus pais. E todos diziam que ele era o escritorzinho do Bom Fim. “E a verdade é que nunca pretendi ser mais do que isto”.

Foi.

Ele o sabia. E sabem todos que já tiveram o prazer de lê-lo, aqui – dos leitores comuns aos especializados, a exemplo de Regina Zilberman, Luís Augusto Fischer, entre tantos outros, como o já citado Nejar, para quem o texto de Scliar encanta pelo domínio da palavra simples, humana, ágil; pela sua imaginação transfiguradora nos aspectos sutis, atônitos ou astuciosos dos seres e do mundo -; e para além das fronteiras gaúchas e do país, como o crítico do New Yo r k Ti m e s que o chamou de “mestre brasileiro”, enquanto na Suíça louvam o humor, o realismo e a poesia que permeiam a sua obra e, na França, a sua capacidade de dissecar a violência, a crueldade e a miséria com ironia e imaginação, enquanto na Alemanha destacam-lhe o talento para descrever a trajetória daqueles que escapam à norma.

Pronto.

O autor destas linhas chegou aonde queria. Pois foi uma alemã quem o apresentou ao protagonista deste relato. Passou-se isto no aeroporto de Frankfurt, onde o locutor que vos escreve e o escritor Silviano Santiago desembarcaram, na manhã do dia 11 de novembro de 1985, para um circuito de palestras por várias cidades da Alemanha. E lá estava, a espera-los, a dinâmica agente literária e tradutora Ray-Güde Mertin, que os pediu para aguardar o desembarque, dali a pouco, de dois outros convidados brasileiros: Antonio Callado e… Moacyr Scliar.

Até então eu só o conhecia das páginas literárias da imprensa. Esse conhecimento à distância começara por uma página-dupla de uma importante publicação semanal paulistaque circulou nas bancas nacionais de 1952 a 1993. Em sua edição de 14 de maio de 1973, a revista Visão fez um balanço da “jovem produção literária brasileira”, com uma análise nada indulgente do crítico Carlos Nelson Coutinho – um baiano radicado no Rio, onde era professor universitário -, na qual o recém-lançado romance A guerra no Bom Fim é saudado como uma das mais importantes criações narrativas brasileiras dos últimos anos:

“Tomando como ponto de partida a problemática humana dos judeus num bairro de Porto Alegre, Scliar generaliza essa problemática a ponto de aproximar-se de uma ampla reflexão estética sobre as contradições e o judaísmo no mundo de hoje. As misérias e grandezas do povo judeu, seus sonhos e seus desencantos, são apresentados com distanciamento auto-irônico, num estilo maduro e bem articulado”, escreve Carlos Nelson, destacando ainda que o primeiro romance de Scliar aborda uma temática de real significado para o ser humano, e o faz com um profundo domínio da técnica literária.

Eram cinco os jovens autores analisados, mas apenas dois deles passavam com louvores pelo crivo daquele crítico – o outro foi o que sobreviveu para agora contar a história, que se resume a um recorte amarelecido pelo tempo, a estampar as fotos daquele par de romancistas em começo de carreira, e que deviam ter sido puxadas dos arquivos da revista por Vladimir Herzog, o seu editor de Cultura de 1968 a 1973, dois anos antes de ser assassinado em um porão militar.

A partir dali Scliar iria demarcar o seu lugar na história da literatura de forma tão unânime quanto a votação que viria a ter ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, num eloquente reconhecimento a um expoente da geração literária que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, no auge de uma ferrenha ditadura. “Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio e tantos outros se engajaram de maneira admirável, percorrendo o país e falando para jovens nos mais remotos lugares”, escreveu ele em crônica publicada na Zero Hora de 9 de novembro de 2002.

Conquanto fizéssemos parte dessa geração, não tivemos qualquer tipo de contato, fosse pelo correio ou por telefone, antes de nos encontrarmos na Alemanha. Lá, palestramos juntos em universidades e bibliotecas públicas de Frankfurt, Colônia e Bielefeld, o que representava metade do roteiro organizado pela Ray-Güde. A outra metade levou Scliar com Callado para Hamburgo, enquanto Silviano e eu seguíamos para Bonn, Munique e Berlim.

Voltaríamos a nos encontrar no Rio de Janeiro, onde, a cada vez que ele me procurava, eu o levava a bater perna de Copacabana ao final do Leblon. Não demoraríamos a voltar às mesas literárias do Brasil e do mundo: Rio de Janeiro, Paris, Porto Alegre, Guadalajara, Porto de Galinhas (Pernambuco). E voltamos à Alemanha, na primeira vez em que o Brasil foi o país homenageado da Feira do Livro de Frankfurt (1994). Com este timaço: Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Chico Buarque, Zuenir Ventura, Darcy Ribeiro, Ferreira Gullar, Roberto Drummond, Ziraldo, Josué Montello, Cícero Sandroni, Paulo Coelho. Primeiro a falar num painel intitulado “Brasil, um mosaico de províncias”, do qual Ubaldo e eu fazíamos parte, Scliar soltou a verve que lhe era peculiar: “Isto é uma covardia” – começou ele. “Botaram dois baianos contra um pobre de um gaúcho. Depois reclamam que o Rio Grande do Sul queira se separar do resto do Brasil”.

Assim era o Moacyr Scliar que conheci: rápido no gatilho. Tanto falando quanto escrevendo, como comprovam os mais de 80 livros que publicou em 40 anos de batente, passeando com a mesma desenvoltura pelo conto, o romance, a crônica e o ensaio. Mas, convenhamos: voltar a Porto Alegre para tecer-lhe loas póstumas não tem a mesma graça das vezes em que vim aqui para falar com ele. Já que a vida quis assim, só me resta fechar este curto tributo com 80 longos abraços em sua memória.