por Ítalo Meneghetti
O nomadismo da linguagem ficcional de Antônio Torres amplia a noção de espaço na construção romanesca contemporânea da literatura brasileira fazendo o leitor viajar na fronteira entre o papel e a imaginação.
“Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Com essas palavras Antônio Torres abre a cena do seu livro O cachorro e lobo, segundo romance de uma trilogia que tem início com Essa terra e, provisoriamente, termina com Pelo fundo da agulha. Ótima pegada literária para começar a página em branco, angústia de todo escritor, mas que, para o baiano do Junco é sempre o ponto de partida lúdico para mais uma viagem dentre as tantas que já empreendeu nos caminhos da linguagem, quando espaço na imaginação e convite permanente ao imaginário dos leitores.
Ítalo Meneghetti é doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com bolsa de pesquisa-doutorado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor universitário, atualmente responsável pelas disciplinas de Literatura Brasileira e Teoria Literária das Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (FIRP). Trabalha como pesquisador e consultor autônomo, na interface cultura e ambiente, junto ao Terceiro Setor, atuando no projeto de criação da Fundação Mantiqueira, no sul de Minas Gerais. Escreve os blogs www.cadernosdoprofessoritalo.blogspot.com e www.lavradapalavraitalobruno.blogspot.com . Contato: < italo.meneghetti@gmail.com >.
Juan Rulfo (1917-1986), consagrado escritor mexicano em seu brilhante Pedro Páramo também desloca o seu protagonista no espaço para declarar, logo na primeira linha, o seu tom inquietante de uma escrita nômade buscando lugares e gentes para dar ambiência à narrativa, espacializando o texto, arrancando o leitor da sua cômoda poltrona ou divã, puxando-o para a estrada, no pó divagador da linguagem – “Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera.”.
Em algumas entrevistas Antônio Torres declara a sua admiração por Juan Rulfo e, não por obra do acaso as suas escritas buscam processos que se assemelham. Trabalham com a complexidade do espaço local dos lugarejos, que apesar da aparente simplicidade e mesmice encerram em seu teor dramático o mundo. Daí, desde a muito, ficcionistas como Torres e Rulfo deixaram para traz as aparentes cercas da região e ganharam outras terras por força da universalização das suas narrativas.
Afirmar que tais escritores são regionalistas, no sentido reducionista, é, no mínimo, desconhecer geografia e a força do lugar como célula do mundo em seu teor humano de conflito e possibilidades. João Gumarães Rosa apostou nisso e criou uma das maiores obras do século 20, fazendo do lugar sertão todo lugar do mundo onde houver alguém no dilema do amor, da vida, da morte e da solidão na existência.
Antônio Torres, esse nômade contemporâneo das nossas letras, faz de cada criação uma viagem, levando na bagagem, feita de muita pesquisa, memória e lembrança, o seu leitor que o acompanha na poeira da sua linguagem estradeira, misto de caravana em travessia nos desertos do sertão nordestino e andanças na solidão das metrópoles do mundo.
“O mundo é um carro de boi, que vai rodando para a frente, gemendo em cima de um eixo.” O deslocamento. A inquietude do movimento. Trânsito. Idas e vindas. Travessia. O nomadismo da linguagem ficcional de Antônio Torres amplia a noção de espaço na construção romanesca contemporânea da literatura brasileira fazendo o leitor viajar na fronteira entre o papel e a imaginação.
A linguagem torresiana brota dos mananciais barthesianos, plena de sabor e saber, temperada no ludismo com que os grandes escritores preparam as suas iguarias para servir ao paladar sensível e exigente dos convidados à mesa da leitura. E ler é sempre um convite à degustação.
“E lá embaixo está a rua, como o lugar sempre foi chamado, desde os seus tempos de povoado. Virou uma cidadezinha, quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas – à espera do fim do mundo. Não faz nem meio século que ganhou o status de cidade. Mas quantos anos de solidão?”
Aliando estética apurada de linguagem ao deslocamento quase obsessivo de seus personagens os textos de Antônio Torres são feitos de amplidão acolhendo toda a nossa ânsia essencial por andar com os pés, o olhar e a imaginação os lugares do mundo, feitos de vilarejos e metrópoles, por onde todos caminham e passeiam com o que nos faz um só e o mesmo em todos os lugares: a presença e ausência com que nos brindam a vida e a morte seja qual for a vida, qual seja a morte.
“Agora refaço o caminho com a certeza de que não é mais o mesmo. Parece intransitável, tantos são os seus buracos e regueirões. Por aqui passavam carros de bois, tropeiros, vaqueiros, cavaleiros endomingados, homens, mulheres e meninos, à pé, em bando, e também caminhantes solitários.”
A geografia do espaço em Antônio Torres é complexa demandando
cuidadoso estudo teórico do seu universo construído na largueza de
muito chão e afeto, sugerindo uma das mais afetivas geografias
ficcionais da literatura brasileira, ao lado da produzida por João
Guimarães Rosa, onde a dimensão sertaneja rompe todas as fronteiras e
se humaniza em cada homem de cada lugar.
TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 133.
Rulfo, Juan. Pedro Páramo. México-Barcelona: Editorial RM, 2005.
TORRES, Antônio. Essa Terra. 15.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 141.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BARTHES, Roland. Aula. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 215.
Antônio Torres escreve desde 1972, com 17 livros lançados no Brasil, alguns traduzidos em diversos países, premiado no Brasil e exterior, forte candidato à ABL pela qualidade do conjunto da obra reunida nos gêneros romance, conto e crônica.
TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 7.
TORRES, Antônio. Essa terra. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. Atualmente na 23ª edição brasileira, com mais de 150 mil exemplares vendidos e traduzido para a França, Alemanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Israel.
TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Record, 2006.