Antônio Torres E a Literatura da Migração

(Revista Conhecimento Prático / Literatura – São Paulo, junho de 2014).
Por Maurício Silva*

Fato social presente na história brasileira desde os tempos mais remotos, a migração (migração/ imigração/ emigração) é apenas um dos inúmeros e intrincados capítulos de nossa realidade social desde tempos antigos. Nesse sentido, ondas migratórias de maior ou menor extensão e volume foram e ainda são verificadas em todo território nacional, principalmente quando vinculadas aos vários ciclos correspondentes à economia colonial (o ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar e o da mineração¹) quanto aqueles que, majoritariamente, dominam a economia pós – colonial até meados do século XX (como o da borracha e o do café ) foram acompanhados de intensos fluxos migratórios.

A Literatura Brasileira, em especial na sua vertente que buscava incorporar com mais veemência os fatos do cotidiano, procurou, na medida do possível, retratar esteticamente diversas ocorrências histórico-sociais, entre as quais recebeu singular atenção a questão da migração, em especial a partir da década de 1930, quando se começou a cultivar o que, posteriormente, a crítica convencionou chamar de realismo social ou, mais especificamente, nas palavras de Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, “ romance social-regional”, que trazia como marca distintiva a crítica às relações sociais e a representação de fatos históricos de relevância, entre eles a própria migração. Assim, autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado e muitos outros se destacaram como figuras de relevo dentro do cenário literário nacional exatamente por conciliare/m, em seus romances, alta qualidade estética e profundo questionamento da realidade brasileira contemporânea.

Atualmente, nosso universo literário apresenta uma heterogeneidade talvez pouco conhecida em épocas passadas, devido de um lado, à multiplicidade e à complexidade que o atual contexto sociocultural parece apresentar, e de outro lado, à nossa relativa incapacidade de perceber as tendências literárias dominantes no presente num cenário artístico muito próximo. Daí uma profunda e contínua impressão de que a literatura contemporânea pouco tem de inovador e original, o que acaba por legitimar uma já propalada ideia de que a produção literária brasileira estaria passando por uma grave crise criativa.

Felizmente, esse fato é prontamente desmentido pela mais superficial análise de nossa atual produção artística: com poucas exceções, a atual literatura brasileira tem revelado obras de valor realmente elevado do ponto de vista estético, marcadas por uma estimulante originalidade. Nem mesmo o caráter crítico e social, característico de uma parcela significativa e relevante da produção de meados do século, falta ao vigoroso espectro literário que a presente realidade cultural apresenta: do romance histórico à narrativa intimista, passando pela expressão inovadora das vanguardas ou pela composição de cunho mais engajado, a literatura contemporânea apresenta um vasto conjunto de autores e obras verdadeiramente singulares, reflexo flagrante de uma situação cultural marcada pela intensa criatividade e pelo alto valor estético.

Tema caro a um grande número de romancistas, a migração não podia deixar de ser retratada em nossa atual produção literária, tendo talvez como principal representante um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea: Antônio Torres. Ele mesmo migrante, saído da Bahia para São Paulo e o Rio de Janeiro, conheceu de perto a dura realidade de milhares de pessoas que partem de suas regiões para outras localidades, onde a esperança de sobrevivência pulsa um pouco mais intensamente. Romancista nato – buscando resgatar, inclusive, a não muito remota tendência social da literatura -, não pôde deixar de representar, nos seus livros, tão estimulante realidade. De fato, em Antônio Torres, a temática da migração surge, talvez como em nenhum outro romancista contemporâneo, em todo o seu vigor sugestivo e grandeza estética.

Recentemente empossado na Academia Brasileira de Letras, Antônio Torres é natural da pequena cidade baiana de Junco (hoje Sátiro Dias). Tendo se formado como jornalista em Salvador onde foi repórter do Jornal da Bahia, logo se transferiu para São Paulo, onde se empregou no jornal Última Hora, além de trabalhar no ramo publicitário. Seu primeiro romance,Um cão uivando para a Lua ( 1972 ), inaugura uma série de lançamentos de sucesso, até culminar com o célebre Essa terra ( 1976 ), que trata, entre outras coisas, do êxodo rural de nordestinos para as grandes metrópoles, principalmente São Paulo. Torres publicou ainda outros romances de sucesso, como Os homens dos pés redondos (1973), Balada da infância perdida (1986) e Um táxi para Viena d’Áustria (1991), entre outros. Com O cachorro e o lobo (1977) e com Pelo Fundo da Agulha (2006) , retornou ao tema da migração, iniciado em  Essa Terra. Autor premiado nacional e internacionalmente, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres (1998), tendo ganho ainda o Prêmio Machado de Assis  (2000), pelo conjunto de sua obra e o Prêmio Jabuti (2006), com o romance  Pelo Fundo da Agulha. Atualmente, seus livros estão traduzidos para diversas línguas e publicados em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Portugal.

Lançando mão de uma linguagem fluida, de uma narrativa marcada por certo intimismo psicológico, revelado aos seus leitores em infinitas filigranas, Antônio Torres faz emergir de sua prosa uma verdadeira avalanche de sentimentos desencontrados e em estado bruto. É, aliás, exatamente esse fluxo de consciência atípico que vai conduzir sua narrativa a um resultado duplamente relevante: de um lado, constrói-se a impressão de uma linguagem “anárquica”, em sua relativa falta de linearidade espaço-temporal; de outro lado, sua escrita passa a refletir um árduo combate entre a lembrança do passado e a realidade presente, oscilando continuamente entre estes dois polos.

Interagindo com essa linguagem singular, o tema da migração adquire contornos significativos para a compreensão intelectual e fruição estética do corpus literário do autor: assunto direta ou indiretamente presente em todos os seus romances, a migração já não se constitui apenas num fato social retratado friamente pela pena do escritor-crítico: na verdade, ela vai muito além, ao eleger para si mesma a condição de tema por excelência de sua prosa. Com efeito, assunto que norteia toda a obra, a migração emerge de seus romances como uma autêntica saga do deslocamento, onde protagonistas e personagens secundários cumprem um destino funestamente marcado pelas mudanças, pelos desvios, pelas transferências constantes. A realidade não se imobiliza: traduzida pelas personagens como fatalidade, resta-lhes apenas resignar-se e seguir adiante, carregando nos olhos a esperança de um futuro promissor, na mente, a lembrança do que ficou para trás e no peito, a firme resolução de cumprir o destino que lhe fora reservado: migrar.

ENTRE A CIDADE E O CAMPO

Em Antônio Torres, o papel desempenhado pela temática da migração desdobra-se, principalmente, em dois motivos recorrentes e relevantes: a dicotomia cidade-campo e a crise de identidade. Assim, se o tema da migração dá certa dinâmica aos acontecimentos (Um cão uivando para a lua), tornando-se assunto central de todo um romance (Essa Terra) e acessório noutro (Um taxi para Viena d’ Áustria) é no conflito declarado entre a cidade e o campo (não apenas enquanto espaços geográficos determinados, mas enquanto vivências individuais ou coletivas) e na consequente crise de identidade que se apodera dos protagonistas desse conflito que ele mais intensamente vai se manifestar.

Desse modo, em quase todos os seus romances, a migração do campo (genericamente, pequena cidade interiorana cuja economia se assenta na agricultura) para a cidade (centro urbano, metrópole) é uma constante. Às vezes, aparece com maior intensidade e, de certa maneira, dominando o contexto em que a trama se insere (Essa terra; Adeus, velho); às vezes, parece ser contingente, atuando apenas como subsídio ao enredo (Um cão uivando para a lua; Um taxi para Viena D’Áustria). Mas sua presença é, quase sempre, necessária. Pequenas cidades do interior no Nordeste (principalmente Junco, na Bahia, cidade natal do autor) destacam-se como ponto de partida para os grandes centros urbanos, geralmente Rio de Janeiro e São Paulo, mas também Salvador. A condição de estar na cidade, até mais do que a de deslocar-se para a cidade, é a motivação de muitos dos acontecimentos narrados.

A relação estabelecida entre o campesino que parte em busca de sucesso e a cidade é complexa: uma relação de amor e ódio, ora concentrada numa mesma pessoa, ora diluída por vários personagens de um mesmo romance. Neste contexto, o conflito entre os dois mundos aguça-se intensamente, evidenciando-se, por exemplo, na escolha feita pelo pai do narrador de Balada da infância perdida: “O meu pai não veio e não virás jamais. Odeia todas as cidades, sem distinção de tamanho, situação geográfica, renda per capita ou densidade populacional. Diz que são invenções do diabo. Elas roubaram todos os seus filhos […]. Preferiu a solidão da caatinga ao amontoado da Construção Civil”. Semelhante conflito, embora atenuado, pode ser verificado também em Adeus, velho, quando do retrato diferenciado que o narrador traça da Bahia, que, segundo suas próprias palavras, “eram duas: a do interior e a da capital”. Ao contrário do exemplo acima transcrito, o narrador procura inverter os valores outorgados a cada um dos elementos da dicotomia: a cidade, agora, é um lugar virtuoso e o campo, um lugar inferior.

Não exatamente dessa ideia de conflito latente, mas da diferença essencial entre a cidade e o campo que ela encerra, partilham também personagens de outros romances: assim, enquanto a cidade grandiosa e enigmática é desvendada sob a ótica do estranhamento, o campo é visto como um espaço marcado pela miséria e pela insensatez que dela decorre. Assim, a cidade torna-se, ao contrário do campo, assunto de destaque: finalidade e desfecho do processo migratório, ela é também o limite especial e existencial – já que é vista como o último baluarte das esperanças agonizantes – da saga do deslocamento. Neste sentido, não importa aos protagonistas do processo migratório e às personagens secundárias do romance se a cidade é a representação do Bem supremo a ser conquistado pelo forasteiro ou a concretização do Mal ilimitado a ser suportado pelo peregrino: o que importa mesmo é que ela existe enquanto ponto extremo de um destino a ser fielmente cumprido pelo migrante: o campo é o espaço de onde o migrante sai, deixando para trás toda uma existência comprometida com o passado; a cidade é o espaço visto como futuro, o porvir, expectativa, contudo obscurecida pelo desconhecido.

CRISE DE IDENTIDADE

Como dissemos antes, a migração vai se desdobrar, nos romances de Antônio Torres, também enquanto crise de identidade, consequência mais imediata da dicotomia cidade-campo vivida pelas personagens. Com efeito, vítimas de um maçante processo de deslocamento e, talvez mais do que isso, de uma degradante condição de exilado, as personagens dos romances de Antônio Torres acabam, necessariamente, tornando-se pacientes de uma crise de identidade.

A condição intermediária característica do migrante – e, em última instância, da própria migração -, contribui sobremaneira para esta situação: sem participar efetivamente de uma realidade comprometida com o campo (passado), já que dele se desvinculou temporariamente, nem de uma realidade amparada na cidade (futuro), já que nela vive como um exilado, os protagonistas dessa saga do deslocamento são verdadeiros deserdado da terra, seres em transição, seja entre dois espaços distintos (campo/cidade), dois tempos diferentes (passado/futuro) ou mesmo duas personalidades diversas (campesino/citadino). Enfim, são personagens que a rigor, carecem de uma identidade definida.

Essa crise de identidade, que pode encontrar uma correspondência na realidade concreta da migração, manifesta-se, explica ou implicitamente, de várias maneiras: na revolta constante de De Jesus (sintomaticamente também chamado de Estrangeiro), em Os homens dos pés redondos, na solidão quase crônica de A., em Um cão uivando para a lua ou, ainda, no elucidativo suicídio de Nelo, em Essa Terra. Todas essas personagens são migrantes que acabam por travar uma surda batalha com a nova realidade que se lhes depara, batalha essa que fatalmente desemboca numa crise existencial.

“O MEU PAI NÃO VEIO E NÃO VIRÁ JAMAIS. ODEIA TODAS AS CIDADES, SEM DISTINÇÃO DE TAMANHO, SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, RENDA PER CAPITA OU DENSIDADE POPULACIONAL. DIZ QUE SÃO INVENÇÔES DO DIABO. ELAS ROUBARAM TODOS OS SEUS FILHOS […]. PREFERIU A SOLIDÃO DA CAATINGA AO AMONTOADO DA CONSTRUÇÃO CIVIL.”(Antônio Torres, em Balada da infância perdida).

O complexo de culpa do protagonista de Um cão uivando para a lua, por exemplo, tem muito a dizer sobre a crise vivida por esse retirante consciente de sua condição de ser indesejado: deixando para trás a família, culpando-se pelo que acredita ser uma desconsideração da sua parte, A. sente-se como um verdadeiro desenraizado na cidade que precisa conquistar; não bastasse isso, a própria desidentificação das personagens do romance, que são chamados apenas pela primeira letra de seus nomes  (A.,T.) já é um indício marcante desse fato. Porém, mas do que o complexo de culpa de A.,                                  é a contundente experiência do encontro de Marília com a cidade grande em Carta ao Bispo, que nos irá revelar todo o caráter trágico da crise de identidade presente nos romances de Antônio Torres: “Eu, Marília, gelei quando bati com a cara na primeira porta.

Foi aí que descobri que eu simplesmente não existia. Fui uma invenção de um lugar, de um povo, de uma era, de mim mesmo. E nada disto existe”. Salta aos olhos o contraste brusco entre a afirmação deliberada e enfática da sua condição ontológica (“Eu, Marília…”) e posterior revelação de sua completa insignificância e anulação ( “eu simplesmente não existia…”) .

Independentemente do determinismo social que possa resultar do conflito vivido por personagens colocados num meio avesso a eles – como afirma Malcom Silverman, em seu livro Moderna Ficção Brasileira -, o importante é notar a dimensão da crise advinda desse conflito, uma crise que vai funcionar como elemento condicionante da personalidade de cada personagem. Por isso mesmo talvez não haja nenhuma noção mais apropriada para entender essa crise do que a já citada ótica do estranhamento, a qual, no limite, vai acabar conformando todo o processo de descobrimento da cidade pelo migrante: tanto a angustiante constatação de De Jesus de que, afinal de contas, sua existência não tem importância alguma, em Os homens dos pés redondos, quanto a visão conturbada e comovente da cidade pelo narrador da Balada da infância perdida vão ser marcadas por um profundo efeito de estranhamento. E é nas palavras substanciais do protagonista de Um cão uivando para a lua – para quem “as vozes da rua são vozes de outro planeta” – que vamos perceber o primeiro e mais flagrante indício desse efeito, a se perpetuar por todo o conjunto de sua produção literária. Traduzida esteticamente, a migração torna-se – nos romances de Antônio Torres – a saga do deslocamento. Suas narrativas demonstram, além de tudo, que a migração é um fenômeno social marcado, entre outras coisas, por uma fatal incompletude (do deslocamento? Da identidade?): em Essa Terra, por exemplo, Antônio Torres faz da palavra – ou melhor, da antipalavra – do pai de Nelo a síntese do significado da migração: ao terminar a narrativa aconselhando Totonhim a partir para a cidade grande, mas deixando a frase em suspenso, sem completar o que ia dizer, seu pai traz à tona a face mais cruel do processo migratório: como uma fatalidade, uma necessidade regida pelo poder incorruptível do destino, a migração se define exatamente pela ausência de limites, pela suspensão do discurso e de seu próprio desfecho.

Como nos romances de Antônio Torres, essa é também uma história que não tem fim…

CONLUSÃO

POR UM PÉ DE FEIJÃO

Antônio Torres

“Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (a nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol, desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados… Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum… O mundo era verde. Que podíamos desejar?…”

Este é um excerto de um texto de Antônio Torres, publicado originalmente em Meninos, Eu Conto, Editora Record -Rio/São Paulo, 1999, o qual foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século” , Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 586.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos publicados em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

*Maurício Silva é o professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira nos programas de graduação e pós-graduação da Universidade Nove de Julho. Autor de “A Hélade e o Subúrbio: Confrontos Literários na Belle Époque Carioca” ( São Paulo, Edusp, 2006) e de “O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” ( São Paulo Contexto, 2008), entre outros títulos.