Jorro de ar num círculo abafado

O Estado de S. Paulo, 18-11-73
Rolmes Barbosa

Numa época em que os Best-sellers indígenas refletem (salvo as exceções de regra) melancólico conformismo literário, o aparecimento de “Os Homens dos Pés Redondos”, segundo romance de Antônio Torres, constitui testemunho de que ainda contamos com autores que não se resignam à letargia que ameaça nossas letras.

Reconheça-se que o autor de “Um Cão Uivando para a Lua” ainda não alcançou o desejável equilíbrio entre forma e espírito, estilização e tema. Ademais ainda está influenciado pela preocupação da denúncia social o que, de certa maneira, em certos trechos, lhe compromete o fluxo da narrativa.

É ponto pacífico que um romancista, por mais “atualizado” que seja, não poderá condicionar sua arte unicamente a uma concepção sócio-política do mundo, sob pena da mesma adquirir ranço panfletário. Comparando-se, porém, o primeiro livro de Antônio Torres com este, é sensível a evolução sofrida. Embora o ângulo de focalização ainda seja, basicamente, o da deshumanização do homem contemporâneo, agrilhoado à engrenagem de arbitrária organização social, os personagens já se movimentam com maior liberdade individual, pondo à mostra o absurdo da condição humana, independentemente de épocas e regimens.

Situando a ação num país chamado Ibéria (nome, também, de uma das figuras da trama), que está congregando esforços para, com metralhadoras e “napalm”, levar o progresso às suas colônias africanas, o autor cria um clima de “realismo mágico” (ou de “realismo Ilógico”?) que sem incidir nas realizações de M. Scorza, de J. M. Arguedas e outros do mesmo naipe, dá bom rendimento em suas mãos. O simbólico sapo kafkaniano, que permanece sempre alerta para que não sejam infringidas as leis que regem o país, passa a ter, nesse clima, personalidade de acentuada vivência.

Digna de relevo a expressividade com que o jovem romancista desenvolve os monólogos interiores e as descrições, numa demonstração de notável habilidade artesanal. Um exemplo: o método pelo qual expõe a agressão sofrida por Junior, narrada em varias versões, cada qual correspondendo à maneira de ser respectivo narrador.

Rico em criatividade, Antônio Torres se distingue, ainda, por um traço raro entre os novos ficcionistas brasileiros: o do senso de humor. Veja-se por exemplo, o julgamento do pretenso criminoso e o caso da carta-queixa ao Vaticano. Um humor negro, convenhamos, mas que confere curioso significado ao sentimento de frustração que corrói os personagens. Humor, aliás, comum não somente aos cidadãos de Ibéria, mas também aos de outros países nossos conhecidos.

Cabe ressaltar, também, o meio-encabulado lirismo oculto em algumas passagens do livro, como no da visita do “Estrangeiro” ao velho Rodriguez, já moribundo – passagem que pela áspera beleza basta para dar idéia das possibilidades do autor.

A critica poderá objetar que pela riqueza dos temas em contraponto, pela diversidade de situações e de planos, pela complexidade da concepção (com raízes, não ocultas pelo autor, em Kafka e Joyce), “Os Homens dos Pés Redondos” lembra mais a estrutura de vasto romance do que uma obra devidamente realizada. Tal observação poderá ser valida em relação ao inicio do livro. No entanto, sobretudo a partir da página 96, a narrativa ganha singular consistência, a prosa se torna mais elástica e os protagonistas adquirem dimensões mais humanas.

Há perto de um ano, por ocasião da estréia do autor, fio dito nestas páginas que estávamos diante de uma revelação. Urge agora acrescentar que se trata da revelação de um escritor que dificilmente deixará de figurar na primeira fileira dos novos ficcionistas brasileiros. De um escritor que vem trazer um jorro de ar fresco ao abafado círculo da nossa atualidade literária.

O escritor não poupa os personagens

O Globo, 25/11/73

Através de um estilo transparente, perfeito, musical e cadenciado, Antônio Torres conta a estória dos “homens dos pés redondos”, governados pelo todo poderoso El Rey, que nunca aparece, habitantes de Ibéria, homens brancos ou pretos, ricos ou pobres, onde as mulheres de todos só existem na medida que servem aos seus homens e aos seus filhos.

Neste mundo meio fantástico e meio real, existe o Vaticano, guerras para todas a gerações, ao mesmo tempo que pessoas e coisas se transforma e desdobram em outras pessoas e outras coisas. Nesse sentido, Torres tem a mesma força e criatividade de um Garcia Marques. Só ainda mais tenso e um pouco menos livre.

O que impressiona; já nas primeiras páginas, é a atmosfera que o autor consegue criar, fazendo com que o leitor participe, com grande impacto, da linguagem, dos dramas e do ambiente dos personagens.

Antônio Torres não quer poupar os seus leitores nem os seus personagens. E através de um estilo, por vezes cru e agressivo, ao mesmo tempo altamente sofisticado, faz as suas pessoas se expressarem por meio de sonhos e flash-back, e, sempre, todos eles, na primeira pessoa.

Essa técnica brilhante, se possibilita uma comunicação mais direta entre leitor e o personagem, através das nuances de linguagem e pensamentos de cada um deles, faz o livro bastante difícil para os leitores apressados.

A grande variedade de assuntos, característicos de cada personagem, torna a obra muito densa. Talvez tivesse ficado mais harmônica e explícita se os diversos pontos de vista – político, intelectual, social e pessoal – tivessem sido tratados mais extensivamente.

Mas mesmo assim, “Os Homens dos Pés Redondos”, é um excelente livro, talvez ainda um pouco imaturo e apressado.

“Maria Helena:
         Sim, foi um lindo romance, um lindo romance de amor.
         Não o acuso de nada. Não foi ele quem inventou o mundo.
         Também não o acuso de ter agido apenas para satisfação própria, por motivos de vaidade pessoal.
         Essas coisas não se fazem sem motivo justo.
         Também não sou uma mulher de programas, como muitos homens pensam. Aceitei ir com este senhor, porque ele me pareceu disposto a tudo.
         Podem acusá-lo de brutalidade. É certo. A brutalidade está nele, como está em mim – e nos senhores doutores.
         Vivemos um tempo sem dó.
         A esta citação de Brecht, a acusação se inquieta:
         Silêncio! Maria Helena, silêncio.
         O acusado tem algo a declarar?
         O Acusado:
         Eu te amo, Maria Helena, flor do lodo da minha Ibéria. Me dá uma terceira oportunidade. Vai ser ainda melhor.
         Vozes na platéia:
         – Estão dizendo que ele é m agente. Um inimigo da nação.
         – É da CIA?
         – Não sei, mas parece.
         – Também dizem que ele se dedica ao contrabando.
         – É possível.
         – É. Não está dando mais para se confiar em ninguém.”

Os pés doídos de um autor baiano

Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, out/73
Norma Couri

É na sola do pé que ele sente a vida. “Foi queimando a sola dos pés no caminho da escola, onde ficavam os pastos e o cabo da enxada, que comecei a sentir um desejo louco de sair pelo mundo afora”. E, para esse romancista baiano basta ficar de pé no chão, para que a vida se irradie pelo corpo inteiro. Mãos, olhos, pele, tudo participa do processo de criação de Antônio Torres, 33 anos, que quando pisa no esboço de um livro “é como se na garganta”. Ele gastou oito meses fabricando idéias no meio da noite e escrevendo-as durante o dia, até as cinco da tarde, “quando a luz começava a fraquejar”, para se livrar da primeira espinha, Um Cão Uivando para a Lua. E foi queimando novamente a sola dos pés que fez explodir, o segundo livro, Os Homens dos Pés Redondos, e esboçar um terceiro, e um quarto, declarando: “Meus pés estão doendo. Eu estou vivo”.

– Vejo uma porção de homens de pés redondos – e eu no meio deles – rodando, rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em seco a vista baixa, um passo aqui outro não sei quando, como se não existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro, e sempre ligado a um aparelho de televisão.

Antônio Torres não viu só isso. Viu pessoas andando em redor de si mesmas. Pessoas que se ataram e não conseguem mais desatar. E imaginou a Ibéria, uma nação impossível, que já não está mais suportando o peso de seu próprio passado.

É nessa nação que se passa a história. É a terra dos homens cabisbaixos, homens “de crista baixa”. Diante de seu fracasso, só resta à velha Ibéria a memória de tempos mais felizes, quando seus homens podiam levantar, com uma só mão, uma espada de 80 quilos, e resolver guerras a pedradas e azeite, porque o azeite era barato e naquela época os americanos ainda não fabricavam armas.

– Levei um bocado de tempo para escrever este livro. Primeiro, vivendo o assunto. Depois ruminando idéias para encontrar a forma de atacar. Só para encontrar a primeira frase gastei dois anos. Eu sabia que tudo dependia dela. Foi num promiscuo quarto de hotel, que mais parecia um velho e enferrujado navio, que este começo me veio: “A julgar por ele, todos são homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam”. Aí eu não parei mais de rondar a máquina de escrever.

O uivo do cão

Mas o resto do romance ficou engasgado, Antônio Torres saiu de São Paulo, veio para o Rio, viajou para Nova Friburgo, voltou ao Rio. Escrevia até o sol raiar, esfregava as mãos, dialogava com Faulkner (“juro, eu falava com um cara que já morreu, numa casa vazia, onde só tinha eu e uma máquina de escrever”), rasgou muitas folhas e então aconteceu o romance. Não o que Torres pretendia. Mas outro. A história de um louco batendo papo consigo próprio.

– Numa tarde de sábado eu sentei na máquina. Senti um troço na garganta e precisava tirar. Praticamente só me levantei dela oito meses depois. Um Cão Uivando para a Lua estava pronto. O livro fala de desespero, apalpa as causas e as conseqüências desses cães são uma geração que de repente se descobriu enganada por uma série de valores que não eram verdadeiros.

Antônio Torres, homem de sertão (“melhor ainda, um homem de sertão que pegou o matulão, enfiou a viola no saco, subiu num pau-de-arara e rumou para o Sul – um entre 80% da população, que fez o mesmo”), viu em pouco tempo os uivos de seu cão serem elogiados pela critica. Seu livro já vendeu mais de 10 mil exemplares.

– Mas a espinha continuava atravessada na minha garganta. Precisava retirá-la para continua vivendo – e sendo capaz de funcionar. Então voltei-me para Os Homens dos Pés Redondos. Foi quando terminei de ler Bar Dom Juan, de Antônio Callado, ainda um pouco assustado, que tudo recomeçou normalmente, sem muito esforço. Comecei do principio, salvando apenas a primeira frase, aquela que eu havia levado dois anos para encontrar.

O texto da enxada

Foi no caminho da escola, que começava depois de uma cancela – e antes da cancela ficavam os pastos e o cabo da enxada – que Antônio Torres viu o primeiro caminhão aparecer no Junco, levantando poeira. “Eu queria cair fora, principalmente para me livrar do cabo da enxada”. Então passou a recitar Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac nas festas da roça. Os matutos gostavam muito, mas quem ficava comovida mesmo era a mãe, “a velha Durvalice”. Acabei no Ginásio de Alagoinhas, Bahia. Foi lá que descobri Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Jorge Amado. Aos 17 anos entrei para o Jornal da Bahia, em Salvador. Fui levado por um homem de nome Mário Alves, que passava o dia todo recauchutando pneus, na entrada de Alagoinhas. Ele pós um terno branco e pagou-me a passagem do trem. Em Salvador, fui direto à sala do Dr. João Falcão, que também estava de terno branco. João Falcão levou-me para Florisvaldo Matos, seu redator-chefe. Ele não só me admitiu como, mais tarde, viria a arranjar um emprego num banco. Mais: cavou nesse banco a minha ida para São Paulo.

Nesse tempo Torres já havia deixado de estudar. E acabou “se enfiando de cara” no jornalismo.

– Agora estou em cima de um livro de contos (um desses contos já foi publicado num jornal em São Paulo). É um livro sobre o Junco, o meu velho Junco. Esse livro é uma questão que tenho comigo mesmo. (Pra dizer a verdade, eu acho o conto um intervalo, uma espécie de descanso do cara que se mete verdadeiramente a escrever. É possível que eu leve muito tempo para publicar um livro de contos. Minha ambição pessoal é o romance). No fundo, o que queria mesmo era escrever um grande romance (no sentido do tamanho e do valor) sobre o Junco. Mas não encontrei um personagem único, que servisse de médio – apoiador. Então parti para uma série de histórias curtas, que, no fim, dão um bloco. E, apesar de estar com a mente e a alma bastante jogadas nesse assunto, já tenho um romance nas tripas, Metade Homem, Metade Bode.

– O que eu que mesmo é chegar aos 40 com a minha viola afiada. Essa viola que carrego comigo desde os oito anos, quando descobri o caminho da escola de dona Serafina, lá no Junco (não me pergunte onde fica esse lugar. O Junco não ocupa, nem nunca vai ocupar, um espaço decente no mapa do mundo). Agora, aos 33 anos, se olho para trás me dá vontade de assoviar Légua Tirana, de Luis Gonzaga. Sim, foi uma estrada muito comprida.

Passo à frente

Veja, 24 de outubro, 1973
Leo Gilson Ribeiro

Anatomicamente, o romancista Antônio Torres passou da garganta de seu livro de estréia, “Um Cão Uivando para a Lua”, para a elementaridade dos pés, no seu segundo romance. Literalmente, foi um passo à frente. O que o volume inicial tinha de emotivo, de visceral e até mesmo gástrico foi habilmente extirpado numa cirurgia de estilo mais livre e menos adiposa.

Evidentemente, a literatura de empenho político-social é a mais difícil armadilha para um talento que germina. Nela fracassaram incontáveis Guevaras juvenilmente esfacelados pela falsa estratégia de um lirismo incontido, de uma solidariedade humana panfletária, de tristezas e revoltas que se extinguem no adjetivo e na interjeição como rajadas suicidas de metralhadoras solitárias. Neste novo livro, Antônio Torres depurou muito a explosão de sua primeira incursão, refinando-a e assim atingindo melhor o alvo.

Choque de raças – O naturalismo de “Um Cão Uivando para a Lua” era um veículo válido ou pelo menos aceitável para a sinceridade emotiva da rebelião arrebatada de um jovem – contra um status quo hediondo que “coisifica” o homem através do Estado, da publicidade, da massificação. Com “Os Homens dos Pés Redondos”, a linguagem surpreende por um veio que não existia no livro anterior e que possivelmente é a melhor tendência latente do escritor: a inventividade ilógica, o vôo da imaginação que não chega a ser o chavão do “realismo mágico” de um Gabriel Garcia Marquez. Sem ter afinidade com a metáfora densa e sutil de um J. J. Veiga, Antônio Torres, no entanto, pelo seu arrojo ainda hesitante, situa-se perto de um Arreola, com seu “Confabulário Total”. É excelente o episódio do homem transformado em sapo por uma organização desumana. Menos convincentes parecem as descrições realistas de Manuel Soares de Jesus – o homem que planeja matar seu chefe, o “intelectual Alves”. São vivos e interessantes os recursos de um júri de televisão dar nota ao criminoso e da carta que este envia ao papa, pedindo justiça para o povo de um país imaginário dominado por um governo totalitário e que combate na África uma guerra inglória.

Falta-lhe apenas, para o terceiro livro, podar a riqueza superabundante de temas, é demasiado ambicioso querer tratar, num mesmo romance, os problemas da alienação da classe rica, as mazelas dos barnabés conscientes, o choque de raças como a negra e a branca que “têm que viver juntas”, tudo cosido com flashbacks joyceanos de recordações sentimentais da infância. Mas também é legítimo esperar que, se o processo de depuração continuar, Antônio Torres poderá trazer à literatura brasileira a contenção lúcida de um Graciliano Ramos em vez de mais um grito verborrágico e folclórico, do qual, aliás, nunca esteve próximo.

Dois Romances

Jornal de Letras – 1º Caderno – Junho, 1974
Marcos Santarrita

O primeiro romance de Antônio Torres, Um cão uivando para a Lua, sem dúvida a melhor estréia de 1972, transformou-se rapidamente num dos livros mais vendidos no País. E o segundo, Os homens dos pés redondos, repete o feito – tanto em êxito como em qualidade.

Torres é, visivelmente, o anti-literato. O primeiro romance, a estória de um nordestino criado na roça que vem para a cidade grande e acaba transformando-se num intelectual neurotizado, não só pelo choque de culturas quanto pela sufocante atmosfera do grande centro, é um milagre de equilíbrio entre o urbano e o regional. Além disso, por sua própria concepção – e apesar de pequena – a obra consegue criar um microcosmo que representa os dois Brasis já observado por Euclides da Cunha, mas até hoje pouco explorado pelos nossos ficcionistas. Torres consegue pular de um gênero para outro, fundi-los, interiorizar-se na análise da psique humana, sem cair nos cacoetes de nenhum deles. Enfim, uma obra tão equilibrada que, levando-se em conta a parcimônia de meios do autor, mais parece um acidente.

O segundo livro, mais ambicioso, sai do plano puramente individual para abranger uma gama mais ampla de tipos, e também aqui o escritor mantém o seu poder de criar personagens sólidas e convincentes, embora prossiga na vocação confissional do primeiro. A estória, se passa num país fictício, chamado Ibéria – fora o nome, não há nenhuma tentativa de disfarçar a identidade de Portugal –, e nela o autor funde, mais uma vez admiravelmente, os conflitos pessoais dos personagens com as características opressivas do regime português recentemente liquidado, sem jamais deixar o conteúdo político passar à frente ou mesmo ameaçar o existencial. Não se trata de um livro político, embora seja sem dúvida, um romance de consciência.

Outro escritor, mais literato, possivelmente não conseguiria escrever no tom confissional de Torres sem cair no diário pessoal, sem maior interesse como literatura, sem atingir um nível universal. E é justamente aqui que entra a vantagem – claro que apenas em casos como o dele – do primitivismo do autor: ele é tão sincero, tão puro, tão isento de ismos literários, que seus livros escapam de todos os perigos do gênero confissional e impõe-se como obras acabadas, definitivas.

Claro, há aqui e ali alguns deslizes, às vezes sérios – a começar pela linguagem –, mas que só fazem autenticar a validez das obras. No último livro, particularmente, parece que o sucesso demasiado fácil do autor levou-o a uma maior autocomplacência, a desleixar-se um pouco da autodisciplina visível no primeiro. Recursos como omitir o nome de um personagem principal, designando-o apenas de O Estrangeiro, dificilmente funcionam numa obra realista – e Torres apesar de todas as nuances oníricas de seus livros, é um realista, no sentido lukacsiano do termo. No fim do romance, o escritor leva a autoindulgência a ponto de referir-se a si mesmo como juiz supremo de um dos personagens, interrogando-se diante do leitor se deve matá-lo ou deixá-lo continuar vivendo.

Mas estes são pequenos senões, até certo ponto necessários – quando apenas senões – para dar uma dimensão humana à obra. O que parece claro, já neste segundo livro, é que Torres veio para ficar.

Ibéria ou nem só de propaganda vive o homem

Tribuna de Imprensa, Rio de Janeiro
João da Penha

“Guardamos a esperança para os que se desesperam.”
Patrice de La Tour du Pin

Ulisses é um romance pertencente à classe dos romances em forma de sonata, estruturado em tema, contra-tema, encontro, desenvolvimento, finale, segundo as palavras de Ezra Pound acerca do muito falado e pouco lido livro de Joyce. Ressalvadas as devidas proporções, podemos dizer o mesmo de Os Homens dos Pés Redondos, de Antônio Torres. A narrativa de Os Homens… se desenvolve em diversos tempos, com uma aparente desconexão entre si, num estilo que lembra vagamente o do “Roman-fleuve”, com episódios encadeados por intrigas diversas, mas cujo final o leitor habituado à moderna técnica narrativa, vislumbra logo às primeiras páginas.

Antônio Torres conta uma história (se ainda é lícito aqui, o uso do termo), em moldes nada tradicionais, usando de uma técnica romanesca que denuncia suas origens em Joyce, Faulkner e, numa certa medida, no “noveau-roman”, influências talvez nem sempre conscientes, mas que o autor já prenuncia em “Um Cão Uivando Para a Lua”, seu livro de estréia.

Em “Os Homens…” não há ação, mas sim uma persistente análise psicológica, interessando fundamentalmente os porquês dos atos e suas conseqüências.

Aqui e ali uma certa insistência descritiva que não dando o tom geral da obra, nos lembra, entretanto, alguns resquícios, propositais ou não, de uma técnica naturalística, influência antiga, talvez, que o autor insista em conservar.

A utilização da moderna técnica ficcional entre nós não é novidade, como de resto, em parte alguma. Muitos dos nossos autores já a exploraram, se bem que na maioria das vezes, de maneira pouco satisfatória. É aí que Antônio Torres supera seus pares, quase sempre claudicantes pela desmesurada e inconseqüente preocupação de criar obras que possam rivalizar com suas com suas afins de outras latitudes, naufragando num formalismo amorfo, estéril e maçante. Torres maneja com pleno conhecimento a linguagem literária, sabe até onde pode levar os experimentos vanguardísticos na construção de um universo ficcional, não se deixa seduzir pelo canto de sereia de um experimentalismo gratuito.

Os Homens… apresenta alguns pontos de contato com o romance de André de Figueiredo, Labirinto, ganhador do Prêmio Walmap 1971.

As semelhanças são visíveis na construção e linguagem que os dois romancistas utilizam.

As diferenças, entretanto, são ainda mais visíveis e favoráveis a Antônio Torres. O Labirinto, não propriamente uma obra autobiográfica, situa-se mais no gênero confissional, vive mais das experiências estritamente pessoais do seu autor.

Já o livro de Torres é o depoimento de um aqui e agora nada animador, não se perdendo num subjetivismo auto-gratificante. Ao estabelecer esse confronto entre as duas obras, não estou advogando, nenhum realismo objetivista (vale aqui, a redundância), com autores que não são artistas, mas tabeliões, ou psicopatas que reprimindo suas emoções construam uma realidade na qual não intervenham um instante sequer. Isso é falso. O artista só merece esse título, quando, partindo de sua experiência pessoal, constrói uma supre-realidade que se apóia nalguns pontos de semelhança com a experiência que todos temos do mundo objetivo, mas nunca construindo, deste, uma réplica. O novo livro de Antônio Torres ilustra o que estou querendo dizer.

Infelizmente, não posso achar que a minha dor é a dor do mundo e enclausurar-me num solipsismo, julgando que a realidade sou eu e nada mais.

Manoel Soares de Jesus, o herói ou anti-herói de Os Homens… ou suas projeções, como Emílio, são nossos conhecidos. A porta de Ibéria, que Antônio Torres não abre, é a de saída. Sutil. Mas Ibéria está cheia de outras sutilezas, algumas claras como a estupidez de muita gente.

Os Homens dos Pés Redondos: Uma alegoria do Portugal salazarista

Universidade de Lisboa
Vânia Pinheiro Chaves
(Conferência proferida nas seguintes universidades: 1 – Paris 10 – Nanterre -, que a publicou em 2005. 2 – Universidade do Porto. 3 – USP. 4 – UFRJ. E outras.)

O escritor brasileiro Antônio Torres não carece de apresentação nesse Colóquio, pois, além de ter sido agraciado pelo governo francês, em 1998, com a comenda de Chevalier dês Art set dês Lettres, comparece com freqüência em eventos que inúmeras instituições francesas dedicam ao Brasil e – o que é, sem dúvida, mais relevante para nós – tem três livros editados na França: Cette Terre, Um Taxi pour Vienne d’Autriche, Chie net Loup. No entanto, ainda não foram traduzidos dois de seus livros que têm, certamente, um particular interesse para o público francês, pois trabalham com episódios da História do Brasil que são também da História da França: Meu Querido Canibal tem como pano de fundo a tentativa de construção de uma França Antártica por Nicola Durand de Villegagnon, que se instalou na Baía de Guanabara, em 1555; O Nobre Seqüestrador retoma a breve ocupação do Rio de Janeiro, em 1711, pelo corsário francês René Duguay-Trouin.

Não me debruçarei, contudo, sobre tais obras, mas sobre Os Homens dos Pés Redondos, cuja primeira edição é de 1973 e cuja matéria se prende, segundo o próprio autor, com as suas vivências em Portugal. Sabendo-se que Antônio Torres residiu, em Lisboa e no Porto, de 1965 a 1968, e que trabalhou como redator de publicidade para diversas empresas, é de relacionar com esse período os acontecimentos narrados no romance, embora eles não se apresentem no texto situados num tempo histórico explicitamente datado.

A idéia de que Os Homens dos Pés Redondos retoma múltiplos aspectos da realidade portuguesa da década de 60 – os últimos anos do governo de Antônio de Oliveira Salazar – encontra apoio também noutras declarações do escritor, tais como:

Tiro meus livros de personagens que conheci na vida real, não planejo nada.
         [República nº 40, Fevereiro de 2000].

O que eu busco é isso: fazer um texto que seja o mais contemporâneo possível, inserindo numa realidade política, social, física e humana e também nas geografias física e humana.
         [O Popular, Goiânia, 3 de Julho de 2001].

O título do romance – espécie de cartão de visita metafórico da humanidade cuja história está nele contada – mereceu do autor uma explicação que, mais uma vez, vinculada a obra ao universo do Portugal salazarista:

No meu primeiro dia lá [Lisboa, 25 de Junho de 1965], sentado à mesa de um café, passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés redondos”. O título estava achado.
         [Entrevista concedida a Heloísa Buarque de Holanda, 16 de Janeiro de 2003].

Homens e mulheres de pés redondos, as criaturas de Antônio Torres adquirem, com tal qualificação, marcas simbólicas do << círculo >>. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, este símbolo fundamental consubstancia, entre outras, noções de << totalidade indivisa >>, << ausência de distinção >>, << movimento imutável, sem começo ou fim e sem variações >>. Tais significações ganham concretude no romance, na medida em que as suas personagens – que, por metonímia, formam um painel da sociedade portuguesa ficcionalizada pelo escritor baiano – vivem num mundo fechado, sem escapatória, girando sem parar em torno das suas frustrações, dos seus medos e da sua solidão, como adiante será demonstrado.

A idéia da construção, em Os Homens dos Pés Redondos, de uma imagem negativa, depreciativa da sociedade portuguesa do período salarazista é ainda reforçada pela presença na sua abertura de duas epígrafes extraídas de poemas de dois renomados escritores portugueses do século XX:

Fernando Pessoa
 Seus três anéis irreversíveis são
 a tristeza, a desgraça, a solidão.
e Alexandre O’Neil
 E cada um por seu caminho
 havemos todos de chegar
quase todos
 a ratos
 Sim,
 a ratos

Manifestações líricas do sujeito poético, tais textos expressam a visão de mundo de seus criadores e se reportam, certamente, ao espaço real das suas vivências. Postos em relação com o romance de Antônio Torres, os versos de Fernando Pessoa parecem apontar seja para a infelicidade dos seres que habitam o universo construído na narrativa, seja para a imutabilidade do seu destino, ao passo que Alexandre O’Neil podem sugerir a degradação a que eles são conduzidos.

Dentre as inúmeras concretizações das idéias formuladas nas epígrafes que é possível encontrar em Os Homens dos Pés Redondos, vejam-se quer a história de Jorge Tunhas, um jovem médico que, mandado, na saída da Faculdade, para a luta nas colônias do Ultramar, recebe, no regresso, a oferta do comando dum destacamento na mesma região e se desespera, porque sabe não poder recusar, já que o vão “arrastar na marra” (p. 98), quer o episódio do << sapo >> que atormenta Manuel Soares de Jesus, interrogando-o acerca das suas opiniões sobre a guerra na Terra Negra (p. 51 e seguintes), quer ainda o do sonho dessa personagem com uma prostituta que, transformada em vaca, lhe dá um coice no exato momento em que deveria atingir o orgasmo (p. 49-51).

Em Os Homens dos Pés Redondos, a história se passa num território chamado Ibéria – disfarce que mais revela do que oculta a sua verdadeira identidade, pois tudo na narrativa aponta para o país real: a pequena extensão territorial, o regime ditatorial, a censura, a tortura, o medo, o cerceamento da intelectualidade, a guerra para guardar a posse das colônias africanas, a economia rural quase escravocrata, o desenvolvimento do capitalismo urbano, a exploração e a miséria do povo, a massificação produzida pela publicidade, o grande empenho na atividade turística, a presença muito forte do catolicismo e do clero, a mentalidade provinciana e preconceituosa, os modernos costumes citadinos.

Sem perspectivas de futuro, os habitantes desse mundo fictício estão voltados para os tempos remotos em que a:

Ibéria produziu um homem chamado Dom Afonso, o pai da pátria [,] que com uma única mão sustentava uma espada de 80 quilos [e] esculhambou os mouros a pedradas e azeite quente (p. 11).

Esse mítico passado nacional não esconde minimamente figura e episódios famosos das origens de Portugal, assim como ocultam pouco a real ditadura de Salazar, a caricatura bem mais grotesca de El-Rey e a cena em que ela aparece,

embora só da cintura para cima -, não apenas para mostrar o timbre exato da sua voz, ou a cor esmaecida de seu rosto comprido e magro, um rosto de quem passou 84 anos enclausurado num mosteiro, sem nunca ter visto a luz do sol (p. 171),

mas sobretudo para provar que estava vivo e que “era ainda e sempre o rei de todos, e não um simples presidente, como estava escrito na Constituição do Estado Novo, que ele próprio fundara havia quarenta anos (id. ib.).

Toda a caracterização de El-Rey e os acontecimentos em que ele está envolvido são, sem sombra de duvida, recriações inspiradas em dados e fatos da realidade portuguesa daquela época, como bem o comprova a seguinte passagem:

Tratava-se de um imperador antigo e antiquado, que não dava entrevistas nem festas, não tinha mulher nem filhos e nem amigos, e também não comparecia à inauguração de nenhuma obra pública. Para isso, contava com seus ministros e seus deputados, todos filiados a um único partido, o partido do rei. Eram eles quem se incubiam de enviar uma frota de ônibus às cidades do interior, para angariar a platéia necessária para cada manifestação pública. Iam de cidade em cidade oferecendo transporte e comida de graça para quem quisesse fazer um passeio até a capital, a convite de El-Rey. (p. 171-2)

Se bem que a Ibéria ganhe, com mais freqüência, formas concretas em espaços não localizados numa geografia precisa, algumas cenas do romance se passam em locais cujas designações apontam inequivocamente para o território português e, em particular, para o portuense. Reportam-se, por exemplo, à cidade do Porto, os nomes do bairro de Miragaia, das ruas Bonjardim e Santa Catarina, do Teatro Sá da Bandeira, do café Belas-Artes e se prendem ao universo mais amplo de Portugal os de Rio D’Onor, Cova Piedade [sic], Xira. Por sua vez, designações e referentes, tais como “Terra Crioula”, “Terra Negra”, “região de Napala”, “ilhota […] no calcanhar de Mao Tse-tung”, “boca de entrada da China”, mal disfarçam os nomes de espaços que estavam ou estiveram na dependência de Portugal.

Por outro lado, Ibéria é também o nome dado a uma personagem feminina de Os Homens dos Pés Redondos, que surge em configurações diversas, mas sempre com conotações mais ou menos aviltantes. Ela se apresenta ora como uma prostituta gorda, velha e doente, ora como uma grande dama, cujos salões se abrem para receber o Imperador da Terra Crioula, que se pretende venha a entrar na luta contra a Terra Negra, ora como uma guia de turismo, radiante por ter tido a oportunidade de oferecer ao seu grupo o espetáculo, que esses turistas muito apreciam, da repressão e da miséria nacionais. Em qualquer dos casos, essa mulher deve ser vista como uma alegoria de Portugal, uma mátria conservadora e degenerada, tal qual revelam os fragmentos abaixo-transcritos:

Nos braços da Ibéria eu sou mais homem. Um prato de sopa, um prato de peixe e outro de carne, que vem logo a seguir. Durante a sopa, beba vinho tinto. (Ah, é maravilhoso.) Peixe só combina com vinho branco. Volte ao vinho tinto no prato de carne. Depois, vamos às frutas, de toda espécie e qualidade (Já viu ameixas mais bonitas? E cerejas melhores do que as nossas? Gosta do melão? Ah, não. Não e não. Experimente estas uvas. São deliciosas. Ou prefere uma maça. Como queira. Sirva-se a seu gosto). Chegou a hora do cafezinho. Aceita um brandy? Uma aguardente velha. Safra de 1952. Estupenda. (p. 126)

Ibéria: eu vim seguindo as cores dos teus cartões-postais. “Venha tomar um banho de cultura, querido, venha” – foi o que ela me disse abrindo as pernas. Quando dei por mim, estava crivado com uma gonorréia. “Eu sou a beleza, menino, eu sou uma flor” – agora ela me olha como se eu fosse uma criança. “Teus tataravós e os tataravós dos teus tataravós me amaram muito”.

[…] Essa guerra esta me levando os últimos fios de cabelo. […] Não vê que aquela negrada ignorante não tem a menor condição de tomar conta de um continente? Aquilo ali é um continente. Que nós temos que civilizar. (pp. 124-125).

Em conformidade com a real sociedade portuguesa da época, os três pilares corroídos da Ibéria são Deus, Pátria e Família, que se consubstanciam de forma variada na matéria narrativa dos diversos episódios do romance. Neles se encontram situações que mostram quer uma Igreja hipócrita, corrupta e alienada dos problemas do seu rebanho, quer um Estado autoritário e vigilante, que explora, tortura, mata os cidadãos ou os manda para a morte na África, ode a sua missão civilizadora apenas mascara a defesa dos interesses da classe dominante, quer ainda a desagregação familiar, manifesta num mundo de homens e mulheres angustiados, que sofrem devido ao desamor, à solidão, ao medo, aos maus-tratos, à miséria, a que buscam consolo no álcool, nas prostitutas ou em amantes.

Por conseguinte, o universo descrito no romance é povoado por criaturas tristes, como os homens que se concentram no Old King – café que pode ser visto também como figuração metonímica de Portugal, pois a rígida separação de classes nos seus dois salões, não anula a identidade substancial e a infelicidade mais profunda de seus freqüentadores, “todos […] homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam” (p. 1). No entanto, as mulheres parecem ser os únicos seres capazes de achar saídas, ainda que precárias para o círculo infernal em que todos estão presos. Veja-se como o fazem Lícia Abramo, a atriz que afronta abertamente a preconceituosa sociedade a que pertence, ou Maria Manuela, cuja liberdade (ou libertinagem) se protege com uma máscara de bom comportamento, de “moça de família”. Predominam, porém, figuras femininas resignadas e exploradas, tal qual as:

Mulheres de preto [que], com enormes cestos sobre as cabeças, a caminho do mercado, cruzam com outras mulheres de preto (pernas cabeludas pudicamente resguardadas dentro de meias pretas), a caminho das igrejas, que cruzam com outras, ajoelhadas rente ao meio-fio da calçada, d[ando] brilho nas rodas importadas de seus patrões, enquanto muitas outras mulheres começam a dobrar a espinha para esfregar as entradas dos edifícios. (p. 37)

Rebeldes ou conformadas, as personagens femininas não ocupam, contudo, o primeiro plano da história contada em Os Homens dos Pés Redondos.

Fugindo da estruturação linear, das situações bem delineadas, da visão narrativa unívoca, e misturando numa dinâmica atordoante realismo e manifestações oníricas, o romance de Antônio Torres não constrói um drama centralizado numa personagem principal. Ao contrário, oferece ao leitor uma série de episódios mais ou menos autônomos que, no seu conjunto, formam um abrangente painel de uma coletividade cuja homologia com a sociedade portuguesa do período salazarista vem sendo demonstrada. É, todavia, possível encontrar um pequeno número de protagonistas, ou melhor, de figuras que se destacam pela sua maior presença na narrativa, pela importância fundamental das suas ações e pela sua significação enquanto representantes de cada uma das classes que formam o espectro da sociedade hierarquicamente organizada que o romance descreve. Assim sendo, três personagens masculinas se sobrelevam em Os Homens dos Pés Redondos: Manuel Soares de Jesus, Adelino Alves e o banqueiro Fernandes.

Personagem nuclear do Livro I (o maior dos três em que a obra esta dividida) e figura destacada do Livro III (que é o mais breve), Manuel Soares de Jesus pertence à classe média baixa. Filho de uma beata com padre da sua paróquia, ele ganha vida como desenhador “de cartazetes e bandeirolas para a freguesia dos comes e bebes” (p. 19) do banqueiro Fernandes. Mas seu salário é insuficiente para manter dignamente a mulher e os cinco filhos. A notícia de que passará a ser chefiado por Adelino Alves o conduz à idéia fixa de matá-lo, sem que lhe passe pela consciência que o seu crime é uma tentativa inútil de acabar com as frustrações de uma vida inteira:

amanhã ia ser o seu dia de glória, porque ia matar um homem.

[…]

Voltou a meter a mão no bolso, para sentir a tesoura ainda uma vez mais. Ao acariciá-la teve a sensação de estar deslizando os dedos entra as tripas do velho Alves.

[…]

Nove anos de casa, para isso. Um velho caindo aos pedaços ia dizer se o que ele fazia prestava ou não. […] Não, não iria submeter o seu trabalho à opinião daquele homem que nunca vira antes. (pp. 12, 16, 18-19)

Um revoltado que não soube direciona o seu ódio, a sua rebeldia, De Jesus não chega a ultrapassar a sua condição de miserável, nem a vencer a alienação, dado que anda a maior parte do tempo bêbado e em delírios. Estes o atiram para o passado ou para a degradação do mundo animal, numa luta inglória com sapos, galos, porcos, vacas, cobras e ratos. É, no entanto, capaz de escrever uma carta ao Papa, com a finalidade de fazê-lo desistir de visitar o país, cuja imagem pinta com cores negras:

Falou nas perseguições que alguns membros da Igreja vinham sofrendo, falou da guerra da Terra Negras, dos salários e da carestia, acrescentando: “Neste país, metade do povo pede esmola. A outra metade joga no toto-bola”. (p. 42).

Fracassados os seus dois planos, De Jesus rouba um bispo em cuja casa consegue ser recebido e tenta fazer o mesmo a Lena, esposa de Adelino Alves, mas no fim da história nada muda na sua vida. Anti-herói de pés redondos, ele se mantém no sofrimento e no delírio:

Eu ia de casa para o trabalho e já estava no ponto do ônibus. Vi um sujeito atrás de mim, mas pensei tratar-se de um passageiro qualquer, também à espera do mesmo ônibus. Assim que o ônibus chegou e eu pus o pé na porta, senti uma mão me agarrando. Tentei me livrar da mão que me puxava, sem êxito. Acabei caindo, o ônibus arrancou, e o curioso é que não vi quem foi que me puxou. Todos os dias, a todo instante, me acontece uma coisa mais ou menos parecida e que me deixa intranqüilo e pouco seguro nas pernas. Como a história daquele sapo.

[…]

O sapo já tinha tirado o gravador do bolso e se preparava para me mostrar a fita na qual havia registrado todas as minhas palavras pronunciadas durante o dia. Desta vez fui mais longe, meu velho. Registrei também os seus pensamentos. Quanto aos seus gestos e movimentos, estão muito bem guardados, numa outra fita. “Tire esse sapo daí, gritei de ovo, e minha mulher, finalmente, rolou para o outro lado da cama, me deixando dormir mais um pouco, sem aquele peso todo sobre o meu corpo. (pp. 285-286).

Igualmente consciente das mazelas do país, o escritor Adelino Alves, cujas obras estão traduzidas em muitos países, é também personagem de primeira linha nos mesmos Livros em que sobressai a figura de Manuel Soares de Jesus, que, no entanto, o toma como seu antagonista, por pensar que ele “era a voz do patrão, que, por sua vez, era a voz do Governo” (p. 17). Mas o velho Alves é, na realidade, um intelectual cerceado, que já sofreu oito anos de prisão e tortura por fazer parte da diretoria da Sociedade Ibérica de Escritores. A isto seguiu-se uma fase de miséria da qual saiu, quando aceitou a degradação de servir aos poderosos e corruptos. Era, no momento, chefe do departamento de produção da firma Fernandes & Fernandes, Negócios Bancários e remoia seus fantasmas solitariamente bebendo, fumando e ouvindo música. Outras vezes tomava um remédio para o fígado preparado por Maria Helena, sua mulher, que sabia que ele ia “arrastando a sua cruz, carregando-a até o fim, se arrastando, se arrastando, mas resistindo. Como se fosse de ferro” (p. 72).

Embora Adelino Alves contasse entre os seus trabalhos para o governo um utilíssimo cartaz – que dizia: Quem bebe vinho dá o pão a um milhão de ibéricos (p. 105) – continuava vigente a recusa da reedição de seus escritos. Considerado, sem dúvida, ameaçador para o regime, ele acaba por ser de novo preso e torturado:

É possível que desta vez eu morra na prisão. O que tanto pode levar anos e anos, como pode acontecer no próximo minuto. Aqui dentro, no fundo de um furgão escuro e trancado, antevejo o momento em que eles parem o carro e me mandem descer para a execução. Alguma coisa me diz que daqui a pouco poderei estar morto.

[…]

Não há heróis nem covardes. Estamos é sendo arrastados para uma irremediável loucura. Penso isso ao me lembrar, com gratidão, de um antigo companheiro de cela, muitos anos atrás. Ele possuía uma quase divina força moral, e acho que foi graças a essa estranha força que eu também não sucumbi, não me enterrei de vez. (p. 109-110)

Nessa nova prisão, a inexistência de um companheiro semelhante ao que tivera no passado, os anos a mais ou as torturas levam finalmente o escritor à loucura e a sua história termina numa casa de saúde, ou melhor, na << nave dos loucos >>:

Os internos abrem a passagem.
         Pi, pi, pi, pi. Vru, Vru, Vruuuuuu.
         Alves passa entre eles, como se tivesse um volante nas mãos.
         Passa correndo e fazendo curvas. Vez por outra anda de ré. (pp. 277-278)

Destino em todos os aspectos diferentes tem o banqueiro Fernandes – personagem a volta da qual está construído o Livro II, mas presente também nos outros dois. Para ele “este velho mundo burguês tem os seus encantos” (p. 113) e “o mal d[o] país é que o povo é preguiçoso” (p. 155). Consta, todavia, que chegou rapidamente ao topo da pirâmide social graças a um enriquecimento obtido em negócios escusos (contrabando de ouro e de moedas estrangeiras) e aos produtos africanos, pois como Ibéria explica ao Estrangeiro: “O algodão de lá é todo dele, e alguns poços de petróleo e…” (p. 125). Daí resulta ser ele um dos maiores sustentáculos da guerra no ultramar, se bem que (ou talvez por isso mesmo) dela consiga livrar o seu filho.

Além de impedir a mobilização de Júnior para as Colônias Fernandes tem força suficiente abafar, dentro da Ibéria, o escândalo da sua participação em orgias de velhos ricos com mocinhas em flor – divulgado contudo no Times, de Londres – mas parece não ter meios para localizar o paradeiro de Adelino Alves e de evitar o seu trágico destino. Em conversa com este seu funcionário, o banqueiro não deixa, contudo, de se vangloriar pelo fato de já ter tido os seus dias de revolta e de a sua “Companhia est[ar] cheia de gente de canhota” (p. 111). Mas, se acolhe “jovens idealistas, jovens esquerdistas […] rapazes que saíram da Universidade e foram para a guerra e voltaram e estão por aí meio sonâmbulos” (p. 112). É porque sabe que eles “têm uma garra terrível” e que a pode aproveitar em termos de produtividade. Para isto é necessário apenas que os responsáveis pelos diversos setores, entre os quais o próprio Alves, procurem “instigar-lhes o talento, dar-lhes a sensação de utilidade e de que têm um caminho pela frente” (id. ib.).

Omnipotente e omnipresente, o banqueiro Fernandes deseja, em dado momento, criar ele mesmo o slogan publicitário de um dos seus produtos. Seus empregados nas fábricas se perfilam como se ele fosse um general quando por lá aparece e só falta lhe beijarem os pés. Para Dona Santa, que trabalha na sua fazenda, Fernandes “era o seu chefe ou talvez até seu pai, muito possivelmente o seu homem – e com toda certeza o seu senhor” (p. 189), enquanto, para sua secretária no Banco, talvez não passe dum amante não-escolhido, mas a quem tem de servir todos os dias por volta das cinco da tarde.

O poderoso banqueiro não consegue, porém, despertar o interesse dos filhos pela fazenda que possui na terra onde nasceu pobre e que, além de ser uma boa fonte de lucro, é o seu maior orgulho e o lugar que lhe dá mais prazer na vida:

O homem descalçou as botas e pisou na bosta quente da vaca […] Parecia experimentar um delicioso e estranho prazer e era até possível adivinhar um sorriso em seu rosto duro. […] Mexia com os pés como quem marca o ritmo de uma música. (p. 179).

E talvez não seja verdadeiramente feliz. Não parece ser muito estimado pela família e pelos amigos que recebe na sua fazenda. A mulher lhe recusa o carinho e prefere passar horas e horas numa mesa de jogo com os hóspedes do momento. Perdeu a amizade do irmão ficando com um sócio a menos nas empresas e um rombo no cofre. Não consegue orientar os caminhos pelos quais a filha envereda. Mas os mais doloroso é a sua péssima relação com o filho que rejeita ser como ele, que faz tudo para chateá-lo e, como não descobre outro caminho para se libertar, busca na morte uma saída.

Outra personagem da maior importância no romance é o Estrangeiro, cujo nome sugere a partida tratar-se de um ser estranho, diferente, fora do sistema, conseqüentemente alguém que não tem os pés redondos e, por isto, é capaz de analisar e criticar com maior distanciamento e rigor o universo de que os demais não conseguem escapar por causa dos seus pés redondos. Entretanto, ele “queria mesmo era [se] dar bem com todo mundo, dizer boas palavras a quem as merecesse” (p. 211), mas só é bem acolhido pelos mais humildes e pelos menos ajustados: Emilio, De Jesus (que considera seus melhores amigos), seu Rodriguez, o vendedor do jornal A República, Lena, Manuela, Júnior.

Prostituída, a velha Ibéria parece aceitá-lo apenas porque ele lhe paga em dólares e ela precisa muito de dinheiro. Ibéria não hesita, contudo, em confessar que no “sente prazer em levar uns bêbados bem vagabundos, fedorentos e demorados que nem [ele] para um sórdido quaro de hotel, às quatro da manhã” (p. 125). Explica, outrossim, que seus maiores inimigos não são os negros que lutam pela independência na África e sim “os estrangeiros […] que espalham pelo mundo um monte de mentiras sobre [ela]” (id. ib.).

Por sua vez, o banqueiro Fernandes, ainda que tenha passado a chefia da sua agência de publicidade ao Estrangeiro, quando Alves foi preso e o tenha recebido com cordialidade na sua fazenda, nos feriados da Semana Santa, não confia inteiramente nele e deduz que é um aventureiro, depois de ter mandado fazer uma sindicância para saber se ele havia saído de seu país por motivos que o impediriam de contratá-lo. No fecho da narrativa, Fernandes presta um depoimento em que demonstra não o apreciar verdadeiramente, pois afirma que se interessou apenas pela sua capacidade de trabalho e que pode substituí-lo com facilidade na sua folha de pagamentos. Declara, outrossim, que o jovem publicitário é um ressentido, que veio de baixo e não pode compreender os ricos. Acusa-o, por fim, de ter corrompido os seus filhos com “suas idéias malsãs”, acreditando inclusive “que foi ele quem levou o Júnior ao suicídio” (p.284).

Quanto ao próprio Estrangeiro, autodefine-se como incongruente (p. 124), barroco e extravagante (p. 278). Com efeito, ele ora parece satisfeito com a vida que leva, ora se mostra melancólico e saudoso de outros tempos e lugares (p. 204-5). Sexualmente insaciável, revela-se, porém instável nas suas ligações amorosas, pois troca constantemente de companheira e jamais se mostra inteiramente feliz. Três das suas parceiras temporárias engravidaram e abortaram, por não se sentirem seguras na relação que mantinham com ele. A quarta – Maria Helena, esposa de Adelino Alves – conta-lhe que está grávida, mas vai fazer um aborto, porque ele não lhe dá um mínimo de assistência. Tendo-o como um “cara desleal” que só a procura quando está bêbado e que não telefona antes por pensar que ela estará compre pronta para o acolher, Lena afirma ainda saber que ele anda ao mesmo tempo com amigas suas. E, de fato – apesar de não se poder datar com precisão os acontecimentos narrados – o Estrangeiro, por esta altura, estava simultaneamente envolvido com Maria Manuela, filha do seu patrão, o banqueiro Fernandes. No entanto esta ligação não é levada a sério por Júnior, irmão de Manuela, que sabe que também ela “vive trocando de homem” (p. 207).

Outra relação afetiva mal resolvida pelo Estrangeiro é a que o liga pai, cuja lembrança não pára de atormentá-lo. Numa noite em que a febre o leva ao delírio, avista-o numa quitanda miserável, onde não ganharia o suficiente para sobreviver. Tenta fugir-lhe, mas o pai o reconhece e acusa de se envergonhar com a sua pobreza. Cheio de culpas que não quer, contudo, assumir ele pensa unicamente em entrar no primeiro botequim que lhe apareça pela frente, para beber até estourar o fígado (p. 146-8).

Em certos aspectos, as vivências do Estrangeiro se confundem com as do próprio autor. Nesse caso, ressaltam o trabalho temporário em Portugal com redator de publicidade e o nascimento do Junco, povoado no interior do Estado da Bahia, hoje transformado na cidade de Sátiro Dias. Por outro lado, o escritor se revela, em dado momento, hóspede da fazenda do banqueiro Fernandes e se apresenta a meditar, durante o café da manhã, sobre a escrita do romance, o desenho das personagens e o seguimento a dar à história:

O romancista, diante do papel e com muito espaço ainda por preencher, tenta recompor um banqueiro sentado à mesa de sua fazenda, para a primeira refeição do dia. Ele estava calado? Pensativo? Nervoso? Arrume a sua trouxa: engano, desenganos, sonhos, frustrações. Ponha no papel o melhor e o pior de tudo isso, depois carregue o peso da sua própria trouxa. O que é que vai acontecer com o filho do homem? Morrerá? Não morrerá. (p. 241).

Em contrapartida, o Estrangeiro, pouco ou nada vinculado ao universo pelo qual transita, assume, como já foi referido, posicionamentos fortemente críticos, manifestos tanto em palavras e pensamentos, como em ações, e que têm de ser lidos como postura autoral.

A idéia de que o autor se manifesta na narrativa metamorfoseado na figura do Estrangeiro e de que ela está impregnada do seu testemunho pessoal é corroborado ainda pelo fato de o Estrangeiro ser a personagem que, com mais freqüência, se encarrega da narração e de ele funcionar também como elemento de ligação entre as demais personagens, que, pertencendo a mundo distintos econômica e socialmente, estão rigidamente separadas. Além disso, o estrangeiro (e, por conseguinte, o próprio Antônio Torres) se confunde algumas vezes com outras personagens, englobando, portanto, na sua figuração personalidades diferentes ou mesmo antagônicas, entre as quais sobrelevam as de Adelino Alves, De Jesus e Júnior. Como já foi observado pela crítica, ele deve ser visto como uma só pessoa colocada em circunstâncias diversas, mas dentro de um mesmo mundo de tristeza, desgraça, solidão.

O conteúdo social e político de que estão impregnadas as personagens e a ação do romance não prejudica, como se procurou mostrar, o plano existencial e humano, uma vez que a narrativa, de grande amplitude, funde admiravelmente os conflitos pessoais com a atuação opressora do regime. Primeiro e até agora único romance brasileiro a focalizar a crise que Portugal enfrentou nos últimos anos do regime salarazarista, Os Homens dos Pés Redondos pode ser visto, em simultâneo, como uma representação mascarada do Brasil da mesma época, também ele submetido a um governo ditatorial, imposto, neste caso, pelos militares que, em 1964, derrubaram o presidente em exercício e revogaram a Constituição democrática do país.

Essa aproximação é legitimada não só por inúmeras componentes do universo criado, mas ainda – ou sobretudo – pela expressão lingüística e estilística das personagens e do narrador-autor, que optam sistematicamente por formas do linguajar brasileiro, em detrimento dos modos de falar próprios de Portugal, que seriam obrigatórios num romance de realismo mais restrito. Se bem que a velha Ibéria se refira em dado momete à fala supostamente diferente do Estrangeiro – ao fazer o seguinte comentário:

Gozado, ele é estrangeiro, mas ainda assim eu entendo o que ele fala.
         (p. 124).

– o que, na verdade, ocorre em todo o romance é uma ausência de fronteiras lingüísticas entre Portugal e Brasil, evidenciada quer nas falas das diversas personagens, quer nos seus monólogos interiores, que funcionam como discursos de narradores internos. Do primeiro tipo, é tanto a conversa entre De Jesus e um contínuo, a respeito do filho do dono da empresa onde trabalham –
         – O patrão mais novo. É um cara legal.
         – Deixa de ser besta.
         – Tou falando sério. O filho do patrão é um bacana. Não sai de uma gafieira.
         – Por isto você precisa lamber o rabo dele?
         – Você está é com inveja.
         – Vê se me respeita. (p. 20)

– como a caracterização, que Júnior faz para o Estrangeiro, de um dos hóspedes do pai, na fazenda onde estão passando a Semana Santa:

Esse cara é um mentiroso sem vergonha. Papai só suporta ele pra não deixar a velha chateada. Já fez tudo pra se livrar desse ranheta. È um puxa-saco e um invejoso […] Vê como a gente vive gozando ele, a toda hora? Ainda assim não se manca. É desses sanguessugas bem insistentes. Pra te dizer a verdade, toda essa parentada só vem pra cá nos encher o saco. (p. 200).

No segundo tipo, encaixa-se o monólogo interior de Zé das Minhocas, que reflete sobre o neto de seu cunhado, o banqueiro Fernandes:

Sacaninha. Coisa que preste é que não vai dar.

[…]

Tudo o que ele quer, o avô dá. […] E as outras que se virem. Que passem o tempo todo puxando o saco desse garoto levado da breca. […] Menino danado pra lá, menino sabido pra cá. Um cheiro, uma lindeza, um amor. E lá vai ele quebrando tudo. (p. 195).

Espalhados por todo o romance vocábulos, mas também noções e realidades próprias da sociedade brasileira transitam para o universo da Ibéria e se misturam com alguns poucos termos e objetos dela característicos. Dentre as numerosíssimas intromissões brasileiras no espaço ibérico vejam-se, por exemplo: o bonde (p.11), a frota ou o ponto de ônibus (p. 171 e 220), a boléia de caminhão (p. 55), a carona (p. 243), o estepe (p. 114), o posto de gasolina (p .217), os paus-de-arara (p. 98), o botequim ou boteco (p. 21 e 43), a boate ou o inferninho (p. 132 e 144), a zona ou puteiros (p. 49 e 21), as favelas (p. 27), o terreiro de macumba (p. 252), a quitanda (p. 146), a roça (p. 146), a biboca (p.185), as [paredes de] sopapo (p. 185), a latrina ou privada (p. 28 e 127), a grama (p. 190), o capim-gordura ou –de-burro (p. 50 e 196), a piaba (p. 194), a rolinha fogo-apagou (p. 201), os pamonhas (p. 186), o pileque (p. 70), o [final do] expediente (p.1 37), a carteira assinada (p. 226), o chororô (p. 54), o pagode (p. 214), a seresta (p. 214), a veadagem (p. 108), o mutirão (p. 187), o papo (p. 164), a grama ou prata (p. 16 e 46), o pisante (p. 38).

Infindáveis são os verbos, os adjetivos, os substantivos que, encontrados ao longo da narrativa e utilizados por quase todas as personagens, bem como pelo narrador-autor, têm um sentido peculiar na linguagem coloquial brasileira ou que inexistem no Português europeu. De exemplo sirvam: esculhambar (p.11), luxar (p. 57), espinafrar (p. 77), apagar ou abotoar para sempre (p. 91), aterrisar (p. 102), bronquear (p. 134 e 190), curtir (p. 159), xeretar (p. 185), trepar (p. 218), bolar (p. 270), manjada (p.20), bacana (p. 20), legal (p. 20), esnobação (p. 31), uma pilha (p. 236), o coisa-ruim (p. 239), puta frescura (p. 227), em cana (p. 26), na marra (p. 98), meia-sola (p. 144), bem quilometrada (p. 144), puxa-saco (p. 200).

Personagens e narrador externo valem-se,outrossim, de numerosas e interessantes formas de expressão e construções tipicamente brasileiras, entre as quis se incluem: cadê (p. 61), vambora (p. 222), não é mole (), cair fora (p. 13), dar no pé (p. 165), estar duro (p. 14), dar duro (p. 155 e 164), bater perna (p. 38), dar na telha (p. 41), fazer um neném (p. 49), encher a cara (p. 57, 161), descascar o abacaxi (p. 76), molhar a mão (p. 83), quebrar o galho (p. 84, 144), morder uma nota (p.84), nascer com a bunda pra lua (p. 113), quebrar a cara (p. 141), afogar a crista do galo (p. 144), o pau vai comer (p. 151), entrar pelo cano (p. 154), metida a sebo (p. 165), dar banho em minhoca (p. 193), limpar a barra (p. 215), devolver a bola (p. 215), esfolar o couro (p. 216), de cara cheia (p. 217), fundir a cuca (p. 218), dar um jeito (p. 219), pegar a estrada (p. 226), dar uma andada (p. 240), sentir o clima (p. 240), ou vai ou racha (p. 247), chega de papo (p. 272), enfiar peido em cordão (p. 27), deixar de onda (p. 275).

Predominantemente brasileiras são igualmente as formas de tratamento e designações encontradas no romance, tais como: meu chapa (p. 128), cara (p. 19), nego/a (p. 20 e 129), bicho (p. 15), sinhô (p. 188) mana (p. 196), crioula (p. 86), esse pinta (p. 20), o homem (p. 19), os tiras (p. 27), os bacanas (p. 86), os federais (p. 101), piranhas (p. 130), leão-de-chácara (p. 174), babá (p. 200), grã-fino (p. 225). A isto se soma a constante mistura do tu e do você, que é sem dúvida uma das manifestações mais típicas de linguagem coloquial brasileira dos nossos dias e que está bem representada nesse fragmento do diálogo das empregadas da família e/ou hóspedes do banqueiro Fernandes:

È, mas eles te enchem o saco aí o dia todo e você engole tudo calada.
         – Eles falam que você é muito respondona. Tu é fogo, mulher. (p.227).

O discurso romanesco inclui, como não poderia deixar de acontecer, o mais conhecido caso de brasileirismo referente ao emprego de verbos da Língua Portuguesa: o do verbo ter em lugar de haver. Inclui, igualmente, o emprego, também vulgaríssimo no Brasil, da preposição em com verbos de movimento, assim como a próclise dos pronomes átonos, em particular no início de frases ou de orações, contrariando o norma portuguesa.

Embora Antônio Torres tenha explicado que Os Homens dos Pés Redondos é uma obra de juventude e a considere o mais irregular de seus livros, o sucesso de eu goza junto do público e da crítica, desde a sua primeira edição, não permite secundarizá-la. O romance é complicado e polêmico, mas tem um interesse incontestável por se tratar seja de um retrato bem tirado de Portugal, com câmera dum escritor brasileiro que conheceu de perto a crise instalada naquele “doce país fascista, depois de dois mil anos de cristianismo e muitos séculos de Inquisição” (p. 131), seja de uma máscara bem ajustada à realidade brasileira da época da sua escrita, seja ainda de uma representação da miséria e desumanização do homem contemporâneo, agrilhoado à engrenagem de uma organização social opressora e arbitrária, seja enfim de uma demonstração do absurdo da condição humana independentemente de épocas e regimes.

Antônio Torres, Os Homens dos Pés Redondos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1973; citado neste trabalho através da terceira edição: Rio de Janeiro, Record, 1999.

Na entrevista que deu a Giovanni Ricciardi (in Escreve. Origem, manutenção, ideologia, Bari, Libreria Universitaria, 1988), Antônio Torres afirmou: “Os Homens dos Pés Redondos, basicamente, reflete a minha experiência portuguesa” (p. 290).

  Dictionnaire dês Symboles, Paris, Seghers, 1973, pp. 302-309.

OS HOMENS DOS PÉS REDONDOS, DE Antônio Torres

Gerana Damulakis

A Editora Record vem reeditando a obra do baiano Antônio Torres. Já nas livrarias podemos reencontrar Balada da Infância Perdida e este Os Homens dos Pés Redondos, que foi publicado pela primeira vez em 1973, quando se tornou best seller. Antônio Torres tem uma obra já com 11 títulos, vários deles traduzidos e premiados. Seus romances são devidamente reconhecidos e, por tal, é acertada a resolução da editora em colocar outra vez ao alcance do público o prazer de ler uma literatura escrita por um ficcionista de “estatura incomum”, nas palavras de Jorge Amado. Os Homens dos Pés Redondos conta uma história inesquecível pela quantidade de personagens singulares vivendo casos ao mesmo tempo cheios de humor pela via da ironia e desgraçados pelo que encerram em suas linhas trágicas. As situações do romance não passam incólumes pelo leitor que se sentirá obrigado a refletir e, assim, entender melhor, quem sabe, até a si mesmo. Esta, por sinal, é uma marca da ficção de Torres, isto é, fazer pensar, deter-se no texto para dele retirar-se com sensações novas.

Gil, um perdedor – um Quixote do Nordeste

O Globo – Rio de Janeiro, 21/10/79
Edilberto Coutinho

Através de ação puramente psicológica, em que o passado está na consciência presente do personagem, Antônio Torres recria, neste “Carta ao Bispo”, todo universo de um homem que existe esmagado. Mais que isto, porque Gil se faz esmagado, e vamos conhecê-lo, exatamente, na situação-limite em que sentir e conhecer se repelem, são antinomias insuportáveis. Então, ao despedir-se da luta, Gil escreve sobre as razões de seu pretendido descanso. O que dirá na carta o leitor poderá, facilmente, recompor em suas próprias palavras. Porque não é difícil a gente se identificar com este personagem tão cheio de verdade humana e psicológica, com a consciência obscura, porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele. Sobre nós.

O romancista não faz uma análise psicológica de Gil por trás do personagem. Seu livro não é uma tese. O narrador não está, em nenhum momento (e nem coloca o leitor) em posição por assim dizer superior do personagem. Claro que não. Porque Antônio Torres escreveu um romance (e que romance), não uma tese acadêmica. A força interior, o caráter interior, psicológico de Gil, portanto, não é apresentado no plano de consciência, geradora de conhecimento. Gil é surpreendido pelo que acontece, e não consegue atinar claramente com o sentido psicológico de seu destino, do destino. Ele tem a intuição de que nenhum futuro o fará sair de seu passado. Torres suprime e subverte as ligações cronológicas, de modo que o que Gil percebe é o passado. Ele não conseguiu arrancar Malhada da Pedra da pasmaceira, então vai se arrancar da vida. Decide isto e, neste momento, um número grande de coisas lhe ocorrem à lembrança. Gil não está agora sendo perseguido pelos outros, mas por ele mesmo, pelos anos todos que viveu, por suas ações e reações, coisas omitidas e cometidas.

Tudo corre para ele, neste corredor da morte em que o encontramos, quando decide finalmente fazer-se responsável pelo próprio destino, que apenas intui. Torres não tem verdades prontas para oferecer. Ele mostra, através do roteiro de Gil, as suas dúvidas, conduzindo o leitor a refletir sobre “este país trocado: cada macaco fora de seu galho”. Gil não ouve a voz antecipadora da mãe, verdadeira Sancho Pança de saias do sertão baiano: “Política e forró é gostoso, mas não é para os filhos da gente”. Gil-Quixote vai em frente, porque acha que Zito, “que é como se fosse meu irmão”, ia ganhar as eleições. “Porque agora a gente vai ganhar”. E o que acontece a este perdedor exemplar na visão implacável e verdadeira que seu criador no oferece? “Gil deixa sua causa sincera e insana, na qual enterrou quase todos os seus quarenta anos. Queria salvar um lugar e um povo. Sozinho”.

Antônio Torres escreveu um romance rigoroso (estrutura e linguagem pedindo análise mais aprofundada), vigoroso, novo, feroz e ferino, que faz avançar a ficção brasileira. O professor e crítico Jorge de Sá fez uma síntese admirável da obra de Torres, nestas palavras: “Com os pés fincados no chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos problemas característicos, A.T. recria personagens tão vivos quanto cada um de nós”. Aí estão as características mais fortes deste romancista de mão cheia, que sabe contar uma história de sabor bem brasileiro, capaz de seduzir qualquer leitor. Mas que não é um ingênuo, e sabe também como armar a sua narrativa, de modo a oferecer uma leitura que pode ser feita em mais de um nível; que pede um leitor cúmplice, participante; a seu modo, também, recriador; quase um co-autor. Porque é preciso merecer o livro. Um livrão, apesar de magro em número de páginas. Mas cheio de sustança, em cada uma delas. Livro para ficar. Um triunfo.