Jornal Rascunho – Curitiba, fevereiro de 2007 Vilma Costa
Com Pelo fundo da agulha, Antônio Torres encerra a trilogia em que o suicídio é presença marcante
“Venham — vocês leitores conhecer/reconhecer
Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos
acaricia e morde, afaga e faz doer.” Com essas palavras, Ignácio de
Loyola Brandão, em O Estado de S. Paulo, edição de 17 de novembro de
2006, formula, talvez, uma das mais contundentes definições do romance
Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres.
Considerado o último de uma trilogia, é um texto complexo, ligado aos
dois romances que o antecederam através de um enredo que estabelece
fios de ação, personagens, espaços e problemáticas comuns. Neste
aspecto, a relação dos três romances — Essa terra (1976), O cachorro e o
lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006) — é de continuidade e íntima
relação da trama que discute idas e vindas de personagens sobre uma
história de vida que, apesar de particular, traz o selo de questões
bastante amplas de uma coletividade. Voltado para as dificuldades
vividas por grande parcela do povo brasileiro em diferentes momentos da
nossa história política e social, permite à crítica identificar marcas
realistas de referencialidades espaciais e geográficas, assim como eixos
autobiográficos e autorais. Apesar de ser inegável a importância dessas
marcas nos textos, no contexto geral da produção a questão central de
discussão é mais ampla.
Torres se liga à tradição dos grandes nomes da literatura brasileira
por sua filiação de romancista preso às suas origens e compromissos com o
tempo histórico que testemunha, ao mesmo tempo em que se posiciona
observando as mudanças estéticas e as novas experimentações no plano da
linguagem, enquanto leitor crítico e atento dos seus contemporâneos. É,
provavelmente, o diálogo que estabelece com aspectos tão distintos das
esferas literárias que mantém sua produção em alta cotação de público e
crítica. Ou seja, não deixando de abordar velhas questões, trata de
aprofundá-las dentro de novas perspectivas, atualizando-as e
ressemantizando-as.
Essa terra conta a história de uma família do interior da Bahia que
recebe o primogênito Nelo, depois de 20 anos de ausência, com todas as
honras de um bem- sucedido cidadão vindo de São Paulo. Apesar do
aparente sucesso, Nelo surpreende a todos com um suicídio, incapaz de
suportar o fracasso de seus projetos e da expectativa frustrada que isso
poderia causar aos seus. A narrativa desenvolvida sob o ponto de vista
do irmão mais novo, Antão, Totonhim, problematiza a falta de sentido
dessa tragédia familiar que atinge, com violência, todo o lugarejo e põe
em discussão concepções, valores e crenças da comunidade. É na pequena
cidade de Junco que tudo se inicia.
Em O cachorro e o lobo, Totonhim retorna à cidade natal para o
aniversário de 80 anos do pai, 20 anos depois de ter partido também para
São Paulo e de ter internado a mãe em um hospício. A pequena cidade já
incorpora novas tecnologias e se amplia nos aspectos físico e econômico,
mas do ponto de vista afetivo e cultural mantém velhas crenças e
memórias. A lembrança de Nelo e a ameaça de suicídio de quem volta ainda
sobrevivem e pairam no ar.
Na viagem de retorno, o protagonista revê sua gente, encontra-se e
faz amor com a primeira namorada, Inesita, reencontra a mãe velhinha e
lúcida, livre da crise de loucura que a levou ao hospício, depois da
morte do primogênito Nelo, e um pai sóbrio e disposto a evitar seu
desencanto e suicídio. Seus caminhos foram diferentes dos do irmão. A
tragédia não se repete. Mas retorna de mãos vazias. Como o outro, a
pequena cidade não lhe pertence, não lhe acolhe, é como se ele não
coubesse mais nela, não lhe oferecesse referência de pertencimento.
Memória e hipóteses
Em Pelo fundo da agulha, dez anos depois, ainda sob o signo da
viagem, Totonhim refaz o percurso de sua trajetória de vida e revisita
as cidades por aonde passou dentro de um plano imaginário entre sono e
vigília, fragmentos de memória e hipóteses do que foi ou poderia ter
sido a sua história. Dentre essas cidade, São Paulo tem um lugar
privilegiado, mas não exclusivo. Paris, Babilônia, Nova York, etc. são
contrapontos que estabelecem diálogo desse mundo globalizado com a
provinciana origem que não oferece qualquer garantia de
territorialidade.
O narrador do romance, como seu criador Antônio Torres, é um leitor e
estudioso da literatura urbana contemporânea. Calvino, com suas Cidades
invisíveis, Baudelaire, Walter Benjamin e Renato Cordeiro Gomes, em
Todas as cidades, a cidade, não deixam de ser citados e discutidos nas
conferências pronunciadas pelo autor.
Desde a epígrafe de Carson McCullers até as últimas linhas do
romance, a cidade merece um tratamento privilegiado e mais do que uma
referência de espaço físico é uma alegoria que acompanha o protagonista
como auxiliar indispensável para a leitura da sua própria vida. Neste
sentido, dialogando entre si, as cidades concretas e as invisíveis, do
desejo, da memória, dos sonhos dos personagens, funcionam como poderosas
lentes.
Nos textos anteriores, São Paulo já se apresentava como um
contraponto a Junco, o que não se limitava a uma simplista oposição
cidade/campo. Aqui, São Paulo equaciona a grande metrópole com seus
núcleos de imigrantes e seus conflitos e estabelece relação com o mundo
globalizado através de outras cidades geograficamente nominadas ou
simbolicamente imaginadas. No primeiro parágrafo do romance, logo após a
epígrafe, o narrador já sinalizava: “Era outra a cidade, e outro o
país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não
sabia se ainda tinha sonhos próprios”.
Em termos da construção narrativa, a lógica linear se esgarça, apesar
de se fazer perceptível por um frágil fio discursivo no qual predomina a
ação situada num tempo cronológico e num espaço físico pautado no plano
de uma realidade objetiva.
A complexidade do texto ganha fôlego a partir de um narrador
onisciente, que acompanha o protagonista em sua noite de vigília pelos
meandros de suas impressões, sugestões, medos, memórias e delírios.
Nessa viagem afetiva, o narrador se apresenta, ora como um cúmplice tão
íntimo que some numa narrativa que parece se fazer por si só, na qual a
introspecção do protagonista ganha a força de uma voz própria.
Outras vezes, esse mesmo narrador se impõe, estabelecendo uma
interlocução não apenas com o leitor, mas, principalmente, com o
personagem, que passa a ser questionado e construído em termos de
hipotéticas possibilidades de ação.
Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor…
Ao eliminar a sua ex-mulher brutalmente, o distinto aí pretendeu retirá-la da sua vida, de uma vez para sempre, não foi?
Pontos importantes de apoio, como as referências às músicas, aos
filmes e a outros textos, tanto clássicos e literários quanto ditos
populares, percorrem todo este livro, e a maior parte da obra do autor.
Funcionam como um fio de linha, preso pelo fundo de uma agulha, que vai
costurando os fragmentos de memória e ação, ora atribuídos aos
personagens, ora assumidos pelo próprio narrador como elementos
constitutivos do tecido. Algumas referências a letras de música são
importantes elos de contextualização, ou seja, ajudam a situar os
acontecimentos particulares num tempo histórico e social, portanto,
coletivo.
Mais que citações avulsas, são recortes costurados ao texto, nele
integrados, garantindo expressividade poética e ampliação de
significados semânticos e contextuais. Como exemplo, podemos observar o
lamento pela perda do grande amigo Bira e sua relação de amizade e amor
pela cidade. “Nunca mais um chope no Jeca, na esquina da Avenida
Ipiranga com a São João, imortalizada por Caetano Veloso… Sampa!”.
Nada mais eficiente para criar a ambientação de uma festa popular de São
Miguel Paulista do que “a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião,
ouvida em todas as praças do sertão. Sentiu-se em Junco”.
O narrador ainda se destaca pela precisão com que se utiliza de
outros textos na construção da trama, dos personagens, do tempo e do
espaço narrativos. As questões temáticas levantadas ganham relevância
quando acompanhadas por uma referência bibliográfica importante. Caso
exemplar é a citação de trechos poéticos de Vladimir Maiakovski, quando o
protagonista sugere seus medos do suicídio. “Hoje tocarei a flauta da
minha própria coluna vertebral.”
O suicídio é uma questão que volta e meia entra em pauta, desde o
primeiro livro da trilogia. As mortes do irmão Nelo e do primo Pedrinho,
por enforcamento, do amigo de infância Gil e a do sogro, por tiro, são
retomadas sob diversas formas nas memórias do protagonista. A referência
a O mito de Sísifo, de Albert Camus, amplia o enfoque. Mais que um fato
em si, um pecado mortal e condenado pela religião e cultura dos
personagens, o atentado contra a própria vida é uma situação limite de
perda de perspectiva do sujeito despatriado, sem referencial
identitário, sem sonhos próprios. “… num universo subitamente privado
de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro” (Camus).
Independentemente da ação suicida se realizar ou não, o que ela suscita
no protagonista é o mesmo sentimento que levou seus amigos, irmão e
sogro à morte, esse sentimento de estrangeiro de si mesmo.
Totonhim agora está aposentado de um cargo importante no Banco do
Brasil e toda a sua vida se desenrola em apenas uma noite. “Não o
imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente
encontrou repouso… Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente
de seus próprios embates cotidianos…”
Seus passos, seus medos, seus sonhos, suas perdas, seus desencantos,
sua solidão, seus vazios têm uma noite de vigília para serem revistos,
sem esperança de algum sentido definitivo.
Situa-se como viajante sem rumo, cujo último porto só espera seus
relatos de bordo, sua fragmentada narrativa. Sua matéria fundamental é o
tempo: “É humanamente impossível fugir do tempo que está dentro dele,
com todo um insatisfatório acúmulo de vivências — desejos e
esperanças,… perdas e ganhos, prazer e dor, solidão e mágoa”. Passado e
futuro, dois tempos que se cruzam na ponte incerta do presente
narrativo, sonhos perdidos que apontam também para a atemporalidade dos
desejos inatingíveis na angústia cotidiana.
Agora se sentia como um marinheiro que perdera o barco do tempo —olha
lá onde já vai; acabou de sumir na linha do horizonte! —, deixando-o
plantado à beira de um cais imaginário, sem saber que rumo tomar.
Paradoxalmente, o tempo como matéria dialoga com a “região sem tempo
dos sonhos”, imaginário de um marinheiro que perdeu o barco a sumir na
linha do horizonte, que constrói sua narrativa se apegando a
referenciais concretos do tempo histórico. A partir da nossa história
política dos anos de ditadura militar, são construídos personagens caros
ao protagonista: Bira, o melhor amigo, revolucionário perseguido e
assassinado em plena praça pública por forças policiais, e o sogro,
militar reformado que se suicida e leva consigo segredos de Estado que
jamais serão revelados.
Por fim, entre os mistérios e segredos que a escritura tenta
inutilmente desvendar está a figura materna que admiravelmente sobrevive
com sua visão apurada de costureira dos fragmentos desse tempo. “Com a
mesma delicadeza com que passara a vida a enfiar a linha no fundo de uma
agulha”, vela agora a noite de insônia do filho. Este ainda se inquieta
e, depois de tantas perdas e vazios, tem curiosidade quanto ao que pode
ser visto pelo fundo da agulha. Recortes de um tempo que ainda
sobrevive em ruínas do passado? Fragmentos leves como seu corpo
semi-adormecido, camelo capaz de atravessar a fronteira do sono e da
vigília, pelo fundo da agulha? Ainda bem que essa mulher batalhou para
dar estudo a seus filhos. Agora, quando tudo parece sem sentido e
Totonhim não sabe mais se tem sonhos próprios, lhe resta “uma pilha de
livros… para tomar de empréstimo sonhos alheios na esperança de vir a
ter os seus…”, quem sabe, um dia.
O AUTOR
Antônio Torres nasceu em 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município
de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de
reportagem de esportes do jornal Última Hora. Redator de publicidade
desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São
Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária ocorreu em 1972 com o
romance Um cão uivando para a lua. Entre outros, é autor de Os homens
dos pés redondos, Essa terra, Carta ao bispo, Adeus, velho, Um táxi para
Viena D’Áustria e O cachorro e o lobo. Pelo conjunto de sua obra,
recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em
2000.
TRECHO • Pelo fundo da agulha
Daí para a frente era só se deixar ser levado. Arrastar-se de um ônibus
para outro e do outro para o infinito. Contar as horas que faltavam para
chegar. Soltar os pensamentos na estrada. As memórias das primeiras
viagens, a pé, para visitar parentes de muito longe, andando em
caravana, entre um bando de meninos, e seguindo a mãe e as tias, pelas
veredas de tabuleiros que cheiravam a alecrim, murta e murici, aqui e
ali dando um beliscão safadinho na coxa da uma priminha. Ou na garupa de
um cavalo, com os braços enlaçados no cavaleiro, o senhor seu pai. Ou
num carro de bois, vagaroso, gemedor. Um dia inteiro de jornada, nas
sete léguas do caminho de Inhambupe, onde veria, pela primeira vez, as
luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado.
Agora vencia-se esse percurso em menos de uma hora. Sem cheiro de mato e
medo de onça. As cruzes à beira da estrada sinalizavam um outro medo:
de um desastre. Rezar para São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas.
Fechar os olhos e tentar dormir. Sonhar.