ANTÔNIO TORRES Pelo fundo da agulha

Editora Verdes Mares Enviado por Laéria

Fundindo pensamento e linguagem, e, assim, estabelecendo uma perfeita harmonia entre enunciação e enunciado, a narrativa de ´Pelo fundo da agulha´ entrelaça memória e imaginação, de tal forma que a unidade se anuncia a partir de fragmentos. O processo da tessitura textual consiste, fundamentalmente, na seguinte constatação: o que é pó em memória retornará. Trata-se, portanto, de um mundo reconstruído pelo avesso: recuperam-se as migalhas para que o pão seja refeito. Carlos Augusto Viana – Editor.

Talvez por isso haja, em todo o romance, um privilégio das impressões sensoriais, sobretudo das que evocam a visão, a audição e o olfato: ´Oh, memoráveis serenatas em noites enluaradas para moças sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias engomadas…´ (p.45) Enumeram-se, ao longo do texto, os ruídos das descargas, dos móveis que se arrastam, dos automóveis que se chocam; quando não, os frêmitos atávicos, que se evolam de ´um carro de bois, vagaroso, gemedor´, (p.111) e que hão de conduzir a personagem às ´luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado´. (p.111)

Memória é evocação. Através dos sentidos, o ser reconstrói o que o tempo dissolveu. Eis, quem sabe, a razão de não nos cansarmos de cantar a mesma música, de repetir determinadas frases, de saborear, reiteradamente, os alimentos. Em toda a obra de Antônio Torres, há sempre uma música a tocar no rádio: ´Rosas vermelhas, as do bem-querer´; (p.117) e das notas musicais advêm os passos, os compassos, os descompassos: ´E dançava conforme outra música. Cesse tudo. Silêncio. Ouça, menina bonita: Eu sei que vou te amar / .. Por toda a minha vida eu vou te amar…´ (p.146)

O exercício da memória está, intrinsecamente, ligado à aprendizagem. Aprender é apreender. O homem, perdido de si mesmo e de seu semelhante, busca o passado na sofreguidão de marcar um encontro consigo mesmo no presente. Desse modo, o protagonista de ´Pelo fundo da agulha´ percorre toda a narrativa , reiterando aquele movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim; e reside aí a natureza de sua viagem:

Memória. Um irmão que se matou. Mas isso faz muito tempo. Foi o seu pai quem fez o caixão, a consolar-se numa garrafa de cachaça. Assim que o esquife ficou pronto, tratou de levá-lo para a cova. ´Tinha tão pouca gente´, desolou-se, ao voltar do enterro. Foi tudo nos conformes da lei dos homens, velho. A igreja fechou-lhe as portas. Suicida não entra na casa de Deus, nem no reino do céu. E afasta as pessoas. Apavora-as. (p.64)

Uma das virtuoses desse romance é fruto da escolha do ponto de vista, uma vez que, conduzida pela terceira pessoa, a narrativa sofre, freqüentemente, o entrecorte do discurso indireto-livre, que, muitas vezes, desemboca no fluxo da consciência. Nesses momentos, depara-se a interioridade da personagem, e esta se torna mais complexa, mais humana, carregando em si um universo de dúvidas, de contradições, de gozo, de culpas, de doces lembranças ou de amargas recordações:

Por quantos anos mais os esteios e as paredes daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa delas, de fundos para o Nascente, rodeada de árvores frutíferas, quintal de flores, verduras, abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o poente. Para os crepúsculos longos e mais silenciosos do mundo.

Agora via um menino saindo de lá e pegando um caminho que chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada, igual a muitas outras. Ao passar de um pasto para outro, ele, o menino, se deparou com uma explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão vermelhos que pareciam enfeites de um presépio. (p.105-106)

Esse excerto comprova que um dos aspectos estilísticos mais recorrentes é a fusão do passado com o presente, pois, o protagonista, com freqüência, entrega-se a devaneios; são momentos em que procura um sentido para a existência ou uma explicação para os mistérios que a rodeiam.

A recorrência com que o Autor se utiliza do discurso indireto-livre, fazendo com que a personagem seja, também, responsável pela condução do enredo, transpõe para o foco em terceira pessoa (ou ponto de vista externo) a onisciência prismática; – esta é erigida a partir do seguinte expediente: em vez de um narrador que se apresenta tão-somente com a onisciência, (aquele que tudo sabe e tudo vê, aquele que conhece o narrar e o narrado) o leitor entra em contato direto com a realidade, enxergando-a pelo prisma da personagem. Inscreve-se, assim, uma constante preocupação com as contradições da consciência e mesmo do inconsciente do ser dentro do contexto de uma realidade, emergindo as tensões. E tudo se dá pela fusão de perspectivas temporais: ora a simples lembrança; ora o momento presente; ora a projeção do passado no presente, a partir da qual assoma o futuro, para que, finalmente, tudo se funda no intemporal, pois os elementos configuradores do real têm dissolvidos os seus contornos:

Agora cá estava. Sim, com meio caminho andado, entre o passado e o futuro. Ainda não avistara o sinal verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto entre os dois tempos. (p.128)

O título desse romance – Pelo Fundo da Agulha – é um achado. Anulada e aniquilada, a existência do protagonista só poderá refazer-se através da verbalização. Transmuda-se, por isso, em vozes. É ele o oráculo de si mesmo. Tendo o olhar voltado para suas próprias entranhas, não contempla a opacidade da cidade pela janela de um quarto de hotel, pois outra é sua viagem: ´Toda narrativa é uma viagem – percurso construído pela imaginação para escoar possibilidades´. (DALCASTAGNÈ, 2000, p. 11)

Palmilhando ruas e avenidas, becos e ruelas, num banco de táxi ou de um ônibus, no frio da Europa ou sob o sol do empoeirado agreste, está o protagonista, em verdade, imóvel, e, em sua direção, apenas o passado e suas sombras. Inútil, pois, jogar fora todas as cordas: inúmeros, os camelos; inexorável, a agulha. A noite se dissemina em agônicas assombrações: ´Não percebeu que era tudo o que seu irmão queria? Uma corda para se enforcar?´ (p.96) A noite água a dúvida, o inesperado, o imponderável: ´o desaparecimento da luz nos confina no isolamento, nos cerca de silêncio e portanto nos desassegura´.(DELUMEAU, 1989, p. 99)

Pelo fundo da agulha, passa uma narrativa alinhavada; passam os automóveis, os aviões, o rugir ronceiro de um carro de boi, os solavancos de um coração, os dados que se quedam sobre a mesa, a cadência remissiva dos boleros, ´Xote, marcatu e baião´, (p.143) os olhos do enforcado, a indiferença de um ´Deus que não amava os suicidas´. (p.212) Desse modo, na narrativa, todos os referenciais ´misturam os discursos numa compulsão circular, moebiana.´. (BAUDRILLARD, 1991, p. 28) Na solidão de um quarto, emaranham-se os tijolos da construção de um ser em narrativa: ´todo o ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não pede o contado com o mundo dos meus semelhantes´. (ARENDT, 1989, p. 528)

Entre a janela de um quarto de hotel e o buraco de uma agulha, duas linhas por que se cirzem o passado e o presente: o tecido num bastidor, o pergaminho da memória. O bordado de um texto no entrecruzar-se dessas linhas: embora o real não seja mais possível, é possível a ilusão de um avarandado coração; assim, ´mais leve, se sentirá (o protagonista) um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha´. (p.218)

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In O olhar, NOVAES, A. (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988. DALCASTAGNÈ, R. A garganta das coisas. Brasília: Editora UnB, 2000. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo,1969. GARCIA, O. Alguns processos poéticos de Carlos Drummond de Andrade. In: Carlos Drummond de Andrade, BRAYNER, S. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1978. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. POUND, E. O que é literatura, o que é linguagem etc? In: Ensaios críticos de literatura, BEAVER, H. (org.) São Paulo: Lidador, 1959 TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004. TORRES, A. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

TRECHO

Calma aí, homem. O mundo ainda não acabou, se é assim que lhe parece. O que ele não oferece é o encanto dos descobrimentos, como na era das grandes navegações. Sejamos sinceros: viajar, hoje, não tem a menor graça. É um saco. Aeroportos enormes, desconfortáveis, cansativos. Conexões estorvantes. Passageiros destituídos de glamour e pessoal de bordo sem tempo para delicadezas. Lembra da sua primeira viagem aérea? Quando o avião balançou e o prato de comida voou da mesinha para o seu peito, logo surgiu uma aeromoça com uma toalha embebida em água quente e lavanda para, com mãos de fada, remover toda a sujeira sobre o seu paletó azul, comprado à prestação especialmente para aquela estréia no ar. Havia algo de material naquele gesto, não? Agora, o seu vôo será realizado num plano impessoal, com a frieza da lógica. Embarque, ajeite-se como puder, fique atento aos avisos eletrônicos, aguarde os serviços de praxe e tente dormir, se for capaz de não se apavorar com as turbulências. No seu sonolento embarque, perceberá que o mundo ficou igual, no que tem de pior. No mercadão universal não há sonhos à venda. Mas bugigangas que podem ser encontradas ali na esquina. (TORRES, A. Pelo Fundo da Agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p.36-37)

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Manhã de domingo em Tietê

O Estado de S.Paulo (17/11/2006) Ignácio de Loyola brandão

O que posso dizer para o Antônio Torres? Estava entre Porto Feliz e Tietê, no sítio de Lisa, uma amiga, contemplando paisagens em diversos tons de verde que iam do mais claro ao quase negro, enquanto o Rio Tietê, lá embaixo, fazia uma curva e cintilava ao sol. As caipiroscas de framboesas, colhidas ali no sítio, cheias de sumo, equivaliam a uma bênção papal com indulgência plenária, nos levando ao céu para sempre. Alguém propôs.

– Vamos a Tietê? – O que tem lá? – Uma pracinha central gostosa que vale a pena ver.

Em 20 minutos chegamos e a entrada da cidade é graciosa, florida. Aqui e ali os jardins se sucedem, até darmos com uma grande placa: Tietê, Cidade das Flores. Domingo, atravessamos ruas desertas, como em qualquer cidade do mundo nesse dia. Eu pensando: como apresentar o Antônio Torres que não precisa de apresentação?

Então, demos com a pracinha, que se chama Elias Garcia e não é pracinha, é praçona, cheia de roseiras, de flores, com fontes e um coreto. Comovente a presença de coretos. Tietê manteve o seu intocado no centro da praça. Jatos prateados subiam das fontes e as águas eram azuis, límpidas. Finalmente uma cidade onde as águas das fontes ou chafarizes são cristalinas, transparentes. Já vínhamos gostando da limpeza, parece que as ruas tinham acabado de ser lavadas, varridas. Decidi comprar um jornal, por todas as cidades em que passo levo um ou dois locais. Entrei na banca, uma portinhola numa esquina, perguntei ao jornaleiro:

– Qual o melhor jornal da cidade.– Temos cinco.– Então? Qual o senhor me aconselha?– Como aconselhar? Não sei o seu gosto, não conheço a sua opinião! Indico um, o senhor pode detestar. E como fico?

Diplomata o homem. Bela cidade que tem cinco jornais, numa era de tevê, internet, e tudo o mais. Um senhor se aproximou e me soprou dois títulos, comprei. Aproveitei:

– Quantos habitantes têm a cidade?– Trinta mil.

Agradeci, ia saindo, outro senhor me segurou pelo braço:

– Não temos 30, não. Tietê tem quase 40 mil. Corrija, 40 mil!

Estava orgulhoso e olhou feio para o outro, o que tinha diminuído a população local. Saímos para um volta e me apaixonei por uma velha casa em frente da praça, a de número 52 (mas há também uma placa com o número 59), ao lado do Hotel Cuitelo. Residência? No hotel – um belo prédio vermelho, anos 30 ou 40 – me responderiam. Queria perguntar, mas não havia recepcionista, não havia ninguém. Seria um hotel self-service? Num banco da praça, um grupo de homens, latas de cerveja na mão, jogavam conversa fora. Aposentados? Seguimos pela mesma rua até chegarmos à esquina da Rua Antonio Nery, onde há duas casas magníficas. Uma amarela, outra de janelas vermelhas, com jeito de casa abandonada. Subimos a Nery e demos com outra casa linda, no meio de um terreno, numa esquina. Fechada. Por toda a cidade, belas casas antigas, parte restaurada e conservada com classe e estilo.

Então, demos com um edifício comprido que pegava uma esquina inteira, em tijolos aparentes. Atmosfera de fábrica desativada. No térreo, havia uma agência de turismo, uma oficina ou borracharia e uma loja de eletrodomésticos. Daqueles prédios que nos deixam sem fôlego. Tombado? Vazio? Ali acontece alguma coisa? Perguntei a duas ou três pessoas, nada sabiam. Na padaria Duas Irmãs, onde tem uma saborosa carolina de maçã, também a dona não soube responder. ‘Não sou daqui’, nos disse.

Uma placa indicava: Oficina Cultural. Havia a placa, mas nenhum prédio com a indicação de Oficina Cultural. A rua virava contramão, passamos por trás da rodoviária, voltamos e nada da Oficina. Parecia conto do Borges. Ali perto, dominando uma esquina, uma casa que dava gosto, toda rosa, senhorial e altiva. Casa Rosada, pensamos. E nos ligamos a Buenos Aires. Borges e Buenos Aires. Fechava o clima. Rodávamos e não queríamos partir, a cidade tem um belo astral, a gente se sente bem nela. Ainda mais que todos que passavam diziam: m’dia, m’dia, m’dia. Nenhum deixou de nos cumprimentar com um sorriso. Coisa rara em um mundo no qual as pessoas estão cada vez mais grosseiras e mal-educadas.

Uma pena, a igreja na praça Elias Garcia estava fechada, apesar de ser domingo. Não fiquei sabendo se tem um altar de Santo Antônio. Subi ao coreto, contemplei a casa 59 (ou 52?) e, de repente, as coisas me vieram com clareza, naquele silêncio, na tranqüilidade de Tietê. Agora sabia o que dizer sobre Antônio Torres e seu romance Pelo Fundo da Agulha na noite da próxima terça-feira, dia 21, na Fnac de Pinheiros. Um livro que pergunta: ao nos aposentarmos, o que fazer? Tempo de ainda construir alguma coisa? O que é a velhice? Ao rever a vida pelo fundo da agulha, um homem pensa no sentido de tudo. A vida tem sentido? Torres envelhece com poesia e ternura nos textos. Delicadeza e compaixão. Pediram-me para falar do livro antes que ele autografe – e quem não for não saberá o que perdeu. Ando pela praça e raciocino: falo sobre o livro ou falo sobre a amizade? Torres e eu estamos envelhecendo juntos, tendo começado jovens na Última Hora, tendo trilhado – com João Antônio que precisou partir antes, nem se despediu, morreu só – este Brasil de ponta a ponta conversando com as pessoas, falando sobre o ofício de escrever que nos apaixona e diverte. Torres é íntegro, leal, exerce a escritura sem ressentimentos, sem rancores, compreendendo o êxito não merecido de um, lamentando o ostracismo não merecido de outro. Jamais o ouvi falar mal de um colega. Falo do livro, falo do autor, falo dos dois? Venham – vocês leitores – conhecer/reconhecer Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.

A TRILOGIA BRASIL

jornal A Tarde, Salvador, 16 dez. 2006 Gerana Damulakis

Sabemos que construir uma trilogia é uma tentação para muitos romancistas, mas se o romance em si já exige tanto como gênero, quando se quer romance e não mero entretenimento misturando os famosos ingredientes: um moço bonzinho e sabichão, uma moça linda, um crime, um bocado de cultura inútil para o leitor sentir que tem em mãos um livro “maravilhoso”, imagina-se, então quanto talento e quanto fôlego são necessários para escrever um texto que perturbe o imaginário do leitor, revolva idéias sobre o sentido ou a falta de sentido da vida, ou que o faça lembrar daqueles versos de Drummond no poema “Viver”: “Mas era apenas isso,/ era isso, mais nada?/ Era só a batida/ numa porta fechada?”. Quantos romances suscitam esta pergunta. E, então, valem a pena. Melhor ainda se um romance puxa por outro e mais outro e daí resulta uma trilogia.

Quando Antônio Torres fechou sua trilogia com o recentemente lançado Pelo fundo da agulha, foi difícil resistir e deixar de colocar um título: Trilogia Brasil. De saída vem um paralelo com a trilogia USA, e apesar de não haver a necessidade de recordar uma trilogia estrangeira, já que temos na nossa literatura algumas muito boas — e agora vem o nome de Luis Ruffato, autor de uma delas —, cabe justificar o título culpando as associações, pois elas têm sempre uma razão que a própria razão tantas vezes desconhece e, afora este lugar-comum, é fácil achar a causa da lembrança. A trilogia USA, de John dos Passos, é composta por The 42nd Parallel (Paralelo 42, Rocco, 1987) publicado em 1930, seguido por Nineteen nineteen (1919, Rocco, 1989), editado em 1932 e finaliza com The big money (O grande capital, Rocco, 1999), de 1936, quando arremata a história de um americano vivendo na idade do progresso estadunidense, simbolizado pelo sacrifício; assim, um rapaz faminto e sozinho andando pelas estradas, faz a crônica da desilusão em relação à promessa americana, resultando na troca da sua inocência pela sua sobrevivência. Num trabalho sobre esta trilogia, Henry James é citado por conta de sua máxima: “O romancista é herdeiro do sagrado ofício do historiador.” John dos Passos registrou uma passagem da história norte-americana nas andanças do personagem, tal como faz Torres na trilogia Brasil.

Porque a trilogia de Antônio Torres não deixa de conter a nossa história, a história do povo brasileiro do sertão, tomando um caminho que tantos tomaram no século 20. Quando o autor publicou Essa terra, em 1976, o narrador contava a ida e a volta do irmão Nelo para São Paulo: o caminho do retirante. Mas há uma visão diferente daquela mais usual, encontrada nos romances que narram sobre os que deixam a terra. A questão está na abordagem de Torres, pois a miséria do sertão pode até ter a seca como uma das causas de falta de perspectiva, contudo a região centro-sul, tida e vista como núcleo do Estado nacional, chama as pessoas, vendendo esperança e, por fim, roubando a força produtora do sertão. Portanto, se não há a critica que culpa as condições climáticas ou a formação étnica, não há também uma glorificação do sertão, porque, enfim, não há momento em que o texto se queira panfleto, seja louvando a força do sertanejo, seja buscando a condição única e determinante de seu flagelo.

Vale repetir que a abordagem é bastante ampla, não se restringe a fazer ou não fazer dinheiro no sul maravilha. Torres estampa o modo como os baianos Nelo, Zé do Pistom, seu Caboco, Totonhim são avaliados pelos paulistas. Os baianos são conhecidos como aqueles que vão embora de suas terras e não voltam para buscar nem as namoradas. A marginalização chega ao ponto da generalização: “Todo baiano é negro, é pobre, é veado, acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia. São Paulo não é o que se pensa”, diz o personagem.

Já supracitada é a existência do outro diferencial na história dos retirantes do Junco, ou seja, não há herói sertanejo, há personagens completos, com virtudes e defeitos, sem idealização, que buscam uma condição de vida mais satisfatória: é só isso. E sendo só isso, o objetivo do texto não é a denúncia, desde que o autor não prega revolução de qualquer tipo, reforma seja lá de qual natureza; mas, por outro lado, ele não chega ao conformismo, já que há a tragédia do homem que lhe é inerente. Antônio Torres elaborou sua história sobre o ser humano e suas tristes condições, de forma a usar o espaço, a ação e seus personagens concorrendo num conflito psicológico com raiz no contexto sertanejo. Daí a linguagem: como o narrador está distanciando quando resolve contar, pois já saiu do meio sertanejo, as expressões e o vocabulário do que ele conta são usados depois que sofreram a transformação pela distância. Não se pode apontar um regionalismo lingüístico, sequer estranheza na leitura. É interessante enfatizar que, além da presença secundária da tradicional seca, há também a ausência do cangaço, porque “Lampião nem quis entrar no Junco”, o que, de resto, acaba sendo mais um diferencial em relação a outros textos da narrativa sertaneja.

Na trilogia, sempre a música se faz presente, levando à comparação com Alfred Hithcock e suas aparições nos próprios filmes; é, na verdade, a presença de Antônio Torres, um aficcionado por música : do bolero ao choro, aos sambas-canções, uma história musical corre paralela, seja para marcar o tempo, seja para incrementar os sentimentos.

Se cabe em Essa terra o suicídio do irmão do narrador, Nelo, a loucura da mãe, a solidão do pai, a ida dele próprio, Totonhim, para São Paulo, mesmo que haja o reconhecimento de que “essa terra me chama, me enxota, me enlouquece, me ama”, é em O cachorro e o lobo, 20 anos depois de Essa terra, que encontramos o narrador de volta à terra natal: o pai completa 80 anos, Totonhim vai visitá-lo sem levar a mulher e os filhos, talvez por serem estereótipos doa habitantes de uma grande cidade. Antes de chegar ao sertão, Totonhim vai ver a mãe e, já neste segundo volume da trilogia, o fato de que aquela senhora enfia a linha pelo buraco fino da agulha sem necessidade de ajuda é-lhe surpreendente. O pai de Totonhim está instalado no alto de uma colina a conversar com os mortos, ou, quem sabe, remoendo as terras perdidas depois que o Banco apareceu ali, emprestando dinheiro e mandando plantar sisal, empreendimento que deu errado e o levou à ruína. Junco agora é uma cidade cheia de antenas parabólicas, mas a única loura da terra continua a ser “Inês, Inesita Inesinha, ou simplesmente I”, a primeira namorada, a dos cabelos de boneca de milho, neste momento professora numa “terra de filósofos e loucos”. Volta a imagem do pai fazendo o caixão do próprio filho Nelo: imagem que deve voltar também à memória do pai que, com a chegada de Totonhim, faz de tudo, no capricho, para receber bem o filho. Medo de que este tenha voltado para repetir o feito do outro, igualmente se enforcando? O certo é que o pai, confabula com Inês, ambos tratam de limpar a casa e oferecer um almoço delicioso e farto ao visitante. Não há como temer que a volta dele seja como a de Nelo: o almoço do filho com o pai e com a primeira namorada, a noite de amor com ela, a abstinência do pai que, tido como bêbado, ele encontra sem tocar em álcool; enfim, tudo saiu muito bem, não haverá mais uma morte apressada.

Pelo fundo da agulha fecha a trilogia 30 anos depois. Antão Filho, cujo apelido já sabemos que é Totonhim, está aposentado do banco, no qual trabalhava em São Paulo, e a viagem para o Junco desta feita será pelas técnicas fragmentárias da memória humana: há muitas vozes nas lembranças de Totonhim sozinho, separado da mulher e dos filhos, já tendo perdido também o melhor amigo. A mãe velhinha, mas que enfia a linha pelo fundo da agulha, imagem já presente no livro anterior, serve como um quadro que ocupa o centro de uma sala gigantesca, onde cabe uma vida. A narrativa é mais uma vez musical e sons e letras de músicas acompanham a primeira noite do aposentado “sem despertador”. Apenas no final do romance o sono vence como se fosse a linha de chegada da viagem pela memória neste décimo primeiro romance de Antônio Torres. As duas frases finais dizem: “Adormece. E, finalmente, entra na região sem tempo dos sonhos”

A jornada foi longa, são tantos mortos nesta altura da vida, são tantos os remorsos, mas a viagem chega ao vale dos suicidas para ser comparada sem vantagem à vida dos aposentados. Chegam à memória o primo Pedrinho, o amigo de infância Gil, além do irmão Nelo. O primo Pedrinho deu o estilingue a Totonhim no dia em que este foi embora: “um presente para o pior caçador de passarinho que o mundo já havia conhecido”, ele disse. Como o homem nasce e morre só, depois do desfalque na Justiça do Trabalho, em Juazeiro, e para pagar dívidas da campanha eleitoral, o amigo Gil mergulha num copo de formicida, deixando uma carta para o bispo “Agora estou só. Tão desgraçadamente só quanto no dia em que nasci. Mas agora dispenso a parteira e não preciso mais berrar ao mundo que estou só”. Quanto a nelo, sabemos em demasia que se enforcou ao voltar para Junco sem trazer dinheiro de São Paulo. O vale dos suicidas evoca uma razão na citação de Albert Camus: “num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro…”

Totonhim, no entanto, está não apenas lembrando, está já no mundo da utopia e, por isso, Oscar Wilde é chamado dentre os devaneios: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a Humanidade está sempre aportando”. A utopia foi São Paulo, que chamou Nelo, que chamou Totonhim. No volume Pelo fundo da agulha, é o lado paulista da história que prevalece na narrativa: a chegada, os primeiros empregos, o primeiro amigo em São Paulo, o amazonense Bira, que acaba assassinado, assim como a esposa Sílvia, nos tempos duros da ditadura e logo após um encontro com Totonhim: aqui há uma cena pungente, quando Totonhim compra duas rosas, deita-as sobre o chão molhado do sangue do casal de amigos, benze-se e diz: “Ite missa est”. Continua a bela cena, com Totonhim lembrando e dizendo a si mesmo e chamando-se de senhor: “O senhor foi andando lentamente, a passo de funeral, um hoje, outro amanhã, e olhando para ontem, como se tivesse perdido o ritmo e o rumo das horas. Ao voltar a cabeça na direção das flores, percebeu que elas já haviam sido esmagadas pelos sapatos dos transeuntes. Toda a história de uma grande amizade terminava ali, debaixo das pisadas de quem a desconhecia,…”

Neste lado paulista da história, como foi acentuado, ficamos sabendo que Totonhim casou-se com Ana, que ele havia conhecido no casamento dos amigos Bira e Sílvia. Sabemos que Ana era colega de universidade de Sílvia. Sabemos o quanto Totonhim foi amigo de copo do sogro, que confiou nele deixando uma mala, quem sabe se repleta de documentos sobre a ditadura, porém, nem Totonhim nem nós saberemos o que continha, pois é queimada num ato que se traduz como lealdade e respeito pelo sogro morto. Tudo isto pode passar a impressão que há um afastamento da realidade sertaneja, mas não é assim: a narrativa é autêntica, ocorre que, se nos volumes anteriores, o narrador ainda está perto da caracterização do homem do sertão que se vai para o sul, agora lemos o que sucedeu ao sertanejo na cidade grande, embora o tom oralizante seja o mesmo, as frases curtas estejam igualmente ali.

Para finalizar, vale estabelecer os espaços precisos da trilogia: o Junco, atualmente uma cidade chamada de Sátiro Dias, Feira de Santana, para onde a mãe de Totonhim se mudou, e Alagoinhas, lugar do hospício para o qual a mãe foi levada por Totonhim em completo desatino após o suicídio do filho Nelo, e, enfim, São Paulo, para onde foram Nelo e, depois, Totonhim. Apenas o Junco, e apesar de tudo, é descrito poeticamente, pois é lá que se pode admirar “a barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-do-sol mais longo do mundo”.

Vânia Pinheiro Chaves professora de literatura brasileira na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estudando o volume Essa terra analisa as formas e o significado que a representação do sertão assume e que constituem a matéria da “literatura sertaneja”. Muito eficiente, o rótulo serve à perfeição para englobar “um filão que atravessa a Literatura Brasileira desde o Romantismo”, como atenta a professora. Manejando os espaços físicos, os aspectos sociais e econômicos, além dos políticos e culturais, incluindo os aspectos lingüísticos do universo sertanejo, ora idealizando-o, ora mirando-o criticamente, Vânia Chaves aponta quatro modos de abordar o sertão: o romântico de Alencar, o realista-naturalista de Os Sertões, de Euclides da Cunha, o neo-realista dos romances nordestinos dos anos 30 e o pós-modernista em Guimarães Rosa. Ela detecta influências de Grande sertão: veredas em Essa terra. Afora qualquer dívida, se ela existe, a trilogia de Antônio Torres é singular dentro da “literatura sertaneja”, como é singular cada caminho que se faz, mais ainda porque o autor deu expressão ao indizível e ao invisível nas entrelinhas daquele caminho.

Os três volumes têm um complemento sob a forma de uma pequena coletânea com três contos, estes últimos reunidos em Meninos, eu conto (Record, 1999). Por sinal, o título é uma homenagem a Gonçalves Dias, que, no poema I-juca-pirama, coloca na boca do narrador, um velho pajé que conta a história ao pé de uma fogueira, o verso “Meninos, eu vi!”. Tudo é, contas feitas, resultado da soma da memória mais a invenção. E o talento do escritor Antônio Torres.

E agora, Totonhim?

Fonte: Revista Previ – Novembro de 2006 » Perfil – Antonio Torres

E agora, Totonhim?

O escritor Antônio Torres lança o romance Pelo Fundo da Agulha, em que o personagem principal mergulha em si para encontrar repostas sobre a vida e o que fazer a partir do primeiro dia da aposentadoria no Banco do Brasil.


O cenário: a cidade de São Paulo, onde você é capaz de suportar tudo, menos a falta do que fazer. O personagem: o ex-roceiro Antão Filho, o Totonhim, que veio do interior da Bahia para trabalhar em São Paulo como bancário do Banco do Brasil. O tempo: o primeiro dia de sua aposentadoria. A pergunta: depois de 30 anos no Banco, o que fazer a partir de agora? A busca dessa resposta é o fio que conduz o livro Pelo Fundo da Agulha, do escritor baiano Antônio Torres. Totonhim é o protagonista da história em que, segundo o autor, o sentimento é o de que passará a viver numa espécie de não-lugar.

Este terceiro livro, que conclui a saga escrita por Antonio Torres de migrantes que saem do Nordeste e enfrentam a cidade de São Paulo com um olhar carinhoso, começou com Essa Terra, de 1976, e reapareceu em 1997, em O Cachorro e o Lobo, no qual Totonhim já é o personagem principal e se vê dez anos ou mais antes da aposentadoria, vivendo o conflito das mudanças do mundo, a reengenharia, o neoliberalismo, a globalização, com medo de perder o emprego.

No segundo livro, a resposta encontrada por Totonhim, seu narrador, foi estudar muito e ascender dentro do Banco, chegando a gerente de recursos humanos. Fechando a trilogia, em Pelo Fundo da Agulha, ele está sozinho. Aposentou-se, separou-se da mulher e dos filhos, perdeu o melhor amigo. Como resume o próprio autor, Totonhim está em uma nova encruzilhada.
O escritor nas ruas de São Paulo. “Tenho experiência muito grande com os migrantes da periferia. Eles viviam com essa saudade da Bahia, mas havia uma coisa amorosa com São Paulo.”

O escritor nas ruas de São Paulo.
“Tenho experiência muito grande com os migrantes
da periferia. Eles viviam com essa saudade da Bahia, mas havia uma coisa amorosa com São Paulo.”

O homem deita na cama e pensa no sentido de tudo. Não há ninguém para consolá-lo e ele se sente perseguido pelas histórias de amigos e parentes que se suicidaram. “Tentei, fazer uma reflexão sobre o crepúsculo do mundo em que vivemos. Um mundo pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo. Entendo que por trás dos impasses do personagem não estão apenas os meus próprios. Nem apenas da minha geração. O que me parece é que de repente nos vemos todos – jovens, adultos e velhos – numa espécie de encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro. E onde está esta saída? Eis a questão”, conta.

Perguntado se o personagem revela muito do autor, Torres sai com a frase de Flaubert, que “Madame Bovary sou eu”, resposta que o francês teria dado à pergunta de quem inspirara um de seus mais conhecidos personagens. Como a dizer que Totonhim sou eu, Antônio revela muitas de suas coincidências.

Os dois nasceram no interior da Bahia, na cidade de Junco, hoje chamada Sátiro Dias. Vieram jovens para São Paulo, o personagem para trabalhar no Banco do Brasil. O autor, aos 20 anos, na capital paulista começou a trabalhar no jornal Última Hora. Se Totonhim fez carreira e se aposentou no Banco,Torres virou romancista em 1972, escrevendo Um Cão Uivando para a Lua, que causou grande impacto entre o público e a crítica, sendo considerado a revelação do ano. “Uma estréia feliz, que me abriu as portas do mundo da literatura. A partir fui embora”, comenta. Carreira de sucesso no Brasil, com dezenas de livros lançados, e em países como Portugal e França (para mais informações consulte www.antoniotorres.com.br).

Pesquisa

A opção profissional do personagem vem da constatação de que para quem morava no interior, na sua juventude, o horizonte era ir para as Forças Armadas, para o seminário (a Igreja), ser funcionário do Banco do Brasil ou da Petrobrás. “Essas eram as carreiras sonhadas pelos pobres do interior.”
Para compor Totonhim, Torres diz que entrevistou muitos aposentados do Banco: “aposentado, para pegar um perfil psicológico do momento em que o homem perde o seu crachá, e de pessoas da ativa, que “quando trabalham têm seu e-mail como sobrenome, fulanodetal@bb.com.br A hora em que a pessoa perde isso passa a se sentir numa espécie de não-lugar. Esse é o sentimento do personagem”, diz.

Além das pesquisas, o escritor também contou com a ajuda de seu primo, Marcelo Torres, “que fez concurso ainda lá na cidade de Junco e hoje trabalha na Diretoria de Marketing e Comunicação do BB em Brasília e me ajudou muito a construir o perfil do personagem. Ele pesquisou, me mandou dados que estão no romance, não só do sentimento do aposentado, mas também da questão concreta, real, o que o cara perde. Pois mesmo que mantenha o salário real, ele fica sem os benefícios de quem continua trabalhando, mas, sobretudo, o convívio. E isso é o que pesa mais. O envelhecer já vai criando limitações em termos de convívio, você sabe que isso é real.
O sentimento de perda econômico e social. O colega de trabalho, a secretária, as estagiárias, a sala, o telefone, o e-mail, o celular, todas perdas que são reais”, diz Torres.

Se há muitas perdas, o autor é otimista com seu personagem e diz que o livro tem uns toques de auto-ajuda. “Porque a voz interior desse homem o acompanha nas coisas que ele pode fazer. Ele pode se dedicar mais a andar, a fazer seções de teatro-terapia, fazer acupuntura e, sobretudo, pegar os livros na estante e corrigir o déficit de leitura dele, participar mais de eventos culturais. Também pode, pelo preparo dele, ser um gerente de recursos humanos, dar aulas em uma universidade, reencontrar o lugar de convívio.”

Sobre o desfecho, Antônio explica o título da obra que, nessa revisão da vida, Totonhim repassa a sua história e se sente mais leve, a ponto de passar pelo fundo da agulha, como na referência bíblica. Se durante o livro o suicídio é uma das hipóteses, no final ele se refaz: decide que no dia seguinte vai reencontrar os filhos, que estão perdidos pela cidade, vai almoçar com eles. “Aí entra na região sem tempo dos sonhos.” E tudo fica aberto para o leitor descobrir que sonhos serão esses.


Tempo que afaga e faz doer

Jornal Rascunho – Curitiba, fevereiro de 2007 Vilma Costa

Com Pelo fundo da agulha, Antônio Torres encerra a trilogia em que o suicídio é presença marcante

“Venham — vocês leitores conhecer/reconhecer Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.” Com essas palavras, Ignácio de Loyola Brandão, em O Estado de S. Paulo, edição de 17 de novembro de 2006, formula, talvez, uma das mais contundentes definições do romance Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres.

Considerado o último de uma trilogia, é um texto complexo, ligado aos dois romances que o antecederam através de um enredo que estabelece fios de ação, personagens, espaços e problemáticas comuns. Neste aspecto, a relação dos três romances — Essa terra (1976), O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006) — é de continuidade e íntima relação da trama que discute idas e vindas de personagens sobre uma história de vida que, apesar de particular, traz o selo de questões bastante amplas de uma coletividade. Voltado para as dificuldades vividas por grande parcela do povo brasileiro em diferentes momentos da nossa história política e social, permite à crítica identificar marcas realistas de referencialidades espaciais e geográficas, assim como eixos autobiográficos e autorais. Apesar de ser inegável a importância dessas marcas nos textos, no contexto geral da produção a questão central de discussão é mais ampla.

Torres se liga à tradição dos grandes nomes da literatura brasileira por sua filiação de romancista preso às suas origens e compromissos com o tempo histórico que testemunha, ao mesmo tempo em que se posiciona observando as mudanças estéticas e as novas experimentações no plano da linguagem, enquanto leitor crítico e atento dos seus contemporâneos. É, provavelmente, o diálogo que estabelece com aspectos tão distintos das esferas literárias que mantém sua produção em alta cotação de público e crítica. Ou seja, não deixando de abordar velhas questões, trata de aprofundá-las dentro de novas perspectivas, atualizando-as e ressemantizando-as.

Essa terra conta a história de uma família do interior da Bahia que recebe o primogênito Nelo, depois de 20 anos de ausência, com todas as honras de um bem- sucedido cidadão vindo de São Paulo. Apesar do aparente sucesso, Nelo surpreende a todos com um suicídio, incapaz de suportar o fracasso de seus projetos e da expectativa frustrada que isso poderia causar aos seus. A narrativa desenvolvida sob o ponto de vista do irmão mais novo, Antão, Totonhim, problematiza a falta de sentido dessa tragédia familiar que atinge, com violência, todo o lugarejo e põe em discussão concepções, valores e crenças da comunidade. É na pequena cidade de Junco que tudo se inicia.

Em O cachorro e o lobo, Totonhim retorna à cidade natal para o aniversário de 80 anos do pai, 20 anos depois de ter partido também para São Paulo e de ter internado a mãe em um hospício. A pequena cidade já incorpora novas tecnologias e se amplia nos aspectos físico e econômico, mas do ponto de vista afetivo e cultural mantém velhas crenças e memórias. A lembrança de Nelo e a ameaça de suicídio de quem volta ainda sobrevivem e pairam no ar.

Na viagem de retorno, o protagonista revê sua gente, encontra-se e faz amor com a primeira namorada, Inesita, reencontra a mãe velhinha e lúcida, livre da crise de loucura que a levou ao hospício, depois da morte do primogênito Nelo, e um pai sóbrio e disposto a evitar seu desencanto e suicídio. Seus caminhos foram diferentes dos do irmão. A tragédia não se repete. Mas retorna de mãos vazias. Como o outro, a pequena cidade não lhe pertence, não lhe acolhe, é como se ele não coubesse mais nela, não lhe oferecesse referência de pertencimento.

Memória e hipóteses

Em Pelo fundo da agulha, dez anos depois, ainda sob o signo da viagem, Totonhim refaz o percurso de sua trajetória de vida e revisita as cidades por aonde passou dentro de um plano imaginário entre sono e vigília, fragmentos de memória e hipóteses do que foi ou poderia ter sido a sua história. Dentre essas cidade, São Paulo tem um lugar privilegiado, mas não exclusivo. Paris, Babilônia, Nova York, etc. são contrapontos que estabelecem diálogo desse mundo globalizado com a provinciana origem que não oferece qualquer garantia de territorialidade.

O narrador do romance, como seu criador Antônio Torres, é um leitor e estudioso da literatura urbana contemporânea. Calvino, com suas Cidades invisíveis, Baudelaire, Walter Benjamin e Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade, não deixam de ser citados e discutidos nas conferências pronunciadas pelo autor.

Desde a epígrafe de Carson McCullers até as últimas linhas do romance, a cidade merece um tratamento privilegiado e mais do que uma referência de espaço físico é uma alegoria que acompanha o protagonista como auxiliar indispensável para a leitura da sua própria vida. Neste sentido, dialogando entre si, as cidades concretas e as invisíveis, do desejo, da memória, dos sonhos dos personagens, funcionam como poderosas lentes.

Nos textos anteriores, São Paulo já se apresentava como um contraponto a Junco, o que não se limitava a uma simplista oposição cidade/campo. Aqui, São Paulo equaciona a grande metrópole com seus núcleos de imigrantes e seus conflitos e estabelece relação com o mundo globalizado através de outras cidades geograficamente nominadas ou simbolicamente imaginadas. No primeiro parágrafo do romance, logo após a epígrafe, o narrador já sinalizava: “Era outra a cidade, e outro o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”.

Em termos da construção narrativa, a lógica linear se esgarça, apesar de se fazer perceptível por um frágil fio discursivo no qual predomina a ação situada num tempo cronológico e num espaço físico pautado no plano de uma realidade objetiva.

A complexidade do texto ganha fôlego a partir de um narrador onisciente, que acompanha o protagonista em sua noite de vigília pelos meandros de suas impressões, sugestões, medos, memórias e delírios. Nessa viagem afetiva, o narrador se apresenta, ora como um cúmplice tão íntimo que some numa narrativa que parece se fazer por si só, na qual a introspecção do protagonista ganha a força de uma voz própria.

Outras vezes, esse mesmo narrador se impõe, estabelecendo uma interlocução não apenas com o leitor, mas, principalmente, com o personagem, que passa a ser questionado e construído em termos de hipotéticas possibilidades de ação.

Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor…

Ao eliminar a sua ex-mulher brutalmente, o distinto aí pretendeu retirá-la da sua vida, de uma vez para sempre, não foi?

Pontos importantes de apoio, como as referências às músicas, aos filmes e a outros textos, tanto clássicos e literários quanto ditos populares, percorrem todo este livro, e a maior parte da obra do autor. Funcionam como um fio de linha, preso pelo fundo de uma agulha, que vai costurando os fragmentos de memória e ação, ora atribuídos aos personagens, ora assumidos pelo próprio narrador como elementos constitutivos do tecido. Algumas referências a letras de música são importantes elos de contextualização, ou seja, ajudam a situar os acontecimentos particulares num tempo histórico e social, portanto, coletivo.

Mais que citações avulsas, são recortes costurados ao texto, nele integrados, garantindo expressividade poética e ampliação de significados semânticos e contextuais. Como exemplo, podemos observar o lamento pela perda do grande amigo Bira e sua relação de amizade e amor pela cidade. “Nunca mais um chope no Jeca, na esquina da Avenida Ipiranga com a São João, imortalizada por Caetano Veloso… Sampa!”. Nada mais eficiente para criar a ambientação de uma festa popular de São Miguel Paulista do que “a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião, ouvida em todas as praças do sertão. Sentiu-se em Junco”.

O narrador ainda se destaca pela precisão com que se utiliza de outros textos na construção da trama, dos personagens, do tempo e do espaço narrativos. As questões temáticas levantadas ganham relevância quando acompanhadas por uma referência bibliográfica importante. Caso exemplar é a citação de trechos poéticos de Vladimir Maiakovski, quando o protagonista sugere seus medos do suicídio. “Hoje tocarei a flauta da minha própria coluna vertebral.”

O suicídio é uma questão que volta e meia entra em pauta, desde o primeiro livro da trilogia. As mortes do irmão Nelo e do primo Pedrinho, por enforcamento, do amigo de infância Gil e a do sogro, por tiro, são retomadas sob diversas formas nas memórias do protagonista. A referência a O mito de Sísifo, de Albert Camus, amplia o enfoque. Mais que um fato em si, um pecado mortal e condenado pela religião e cultura dos personagens, o atentado contra a própria vida é uma situação limite de perda de perspectiva do sujeito despatriado, sem referencial identitário, sem sonhos próprios. “… num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro” (Camus). Independentemente da ação suicida se realizar ou não, o que ela suscita no protagonista é o mesmo sentimento que levou seus amigos, irmão e sogro à morte, esse sentimento de estrangeiro de si mesmo.

Totonhim agora está aposentado de um cargo importante no Banco do Brasil e toda a sua vida se desenrola em apenas uma noite. “Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso… Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos…”

Seus passos, seus medos, seus sonhos, suas perdas, seus desencantos, sua solidão, seus vazios têm uma noite de vigília para serem revistos, sem esperança de algum sentido definitivo.

Situa-se como viajante sem rumo, cujo último porto só espera seus relatos de bordo, sua fragmentada narrativa. Sua matéria fundamental é o tempo: “É humanamente impossível fugir do tempo que está dentro dele, com todo um insatisfatório acúmulo de vivências — desejos e esperanças,… perdas e ganhos, prazer e dor, solidão e mágoa”. Passado e futuro, dois tempos que se cruzam na ponte incerta do presente narrativo, sonhos perdidos que apontam também para a atemporalidade dos desejos inatingíveis na angústia cotidiana.

Agora se sentia como um marinheiro que perdera o barco do tempo —olha lá onde já vai; acabou de sumir na linha do horizonte! —, deixando-o plantado à beira de um cais imaginário, sem saber que rumo tomar.

Paradoxalmente, o tempo como matéria dialoga com a “região sem tempo dos sonhos”, imaginário de um marinheiro que perdeu o barco a sumir na linha do horizonte, que constrói sua narrativa se apegando a referenciais concretos do tempo histórico. A partir da nossa história política dos anos de ditadura militar, são construídos personagens caros ao protagonista: Bira, o melhor amigo, revolucionário perseguido e assassinado em plena praça pública por forças policiais, e o sogro, militar reformado que se suicida e leva consigo segredos de Estado que jamais serão revelados.

Por fim, entre os mistérios e segredos que a escritura tenta inutilmente desvendar está a figura materna que admiravelmente sobrevive com sua visão apurada de costureira dos fragmentos desse tempo. “Com a mesma delicadeza com que passara a vida a enfiar a linha no fundo de uma agulha”, vela agora a noite de insônia do filho. Este ainda se inquieta e, depois de tantas perdas e vazios, tem curiosidade quanto ao que pode ser visto pelo fundo da agulha. Recortes de um tempo que ainda sobrevive em ruínas do passado? Fragmentos leves como seu corpo semi-adormecido, camelo capaz de atravessar a fronteira do sono e da vigília, pelo fundo da agulha? Ainda bem que essa mulher batalhou para dar estudo a seus filhos. Agora, quando tudo parece sem sentido e Totonhim não sabe mais se tem sonhos próprios, lhe resta “uma pilha de livros… para tomar de empréstimo sonhos alheios na esperança de vir a ter os seus…”, quem sabe, um dia.

O AUTOR Antônio Torres nasceu em 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal Última Hora. Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária ocorreu em 1972 com o romance Um cão uivando para a lua. Entre outros, é autor de Os homens dos pés redondos, Essa terra, Carta ao bispo, Adeus, velho, Um táxi para Viena D’Áustria e O cachorro e o lobo. Pelo conjunto de sua obra, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

TRECHO • Pelo fundo da agulha Daí para a frente era só se deixar ser levado. Arrastar-se de um ônibus para outro e do outro para o infinito. Contar as horas que faltavam para chegar. Soltar os pensamentos na estrada. As memórias das primeiras viagens, a pé, para visitar parentes de muito longe, andando em caravana, entre um bando de meninos, e seguindo a mãe e as tias, pelas veredas de tabuleiros que cheiravam a alecrim, murta e murici, aqui e ali dando um beliscão safadinho na coxa da uma priminha. Ou na garupa de um cavalo, com os braços enlaçados no cavaleiro, o senhor seu pai. Ou num carro de bois, vagaroso, gemedor. Um dia inteiro de jornada, nas sete léguas do caminho de Inhambupe, onde veria, pela primeira vez, as luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado. Agora vencia-se esse percurso em menos de uma hora. Sem cheiro de mato e medo de onça. As cruzes à beira da estrada sinalizavam um outro medo: de um desastre. Rezar para São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas. Fechar os olhos e tentar dormir. Sonhar.

As memórias da morte e a fome de vida

Estadão, Caderno 2 – Domingo, 11 de março de 2007 Paulo Bentancur

Pelo Fundo da Agulha é a conclusão da trilogia de Antonio Torres iniciada há 30 anos com o contundente Essa Terra

Em 1976, Antônio Torres publicava um dos mais contundentes romances da literatura brasileira, Essa Terra (Record, 192 págs., 21ª edição, posfácio de Vânia Pinheiro Chaves, R$ 26,90): a história elíptica, num ritmo vertiginoso (apesar de retratar o Recôncavo Baiano, onde se suporia uma condução narrativa arrastada), febril na sua perturbadora condução e linguagem. Totonhim, o irmão mais moço, recebe Nelo, vindo de São Paulo, onde este fora tentar a vida. Parentes, amigos e vizinhos esperam que, mala aberta – uma só -, o filho pródigo traga fortuna. Nelo, entretanto, foi, viu… e perdeu. Carregando, na volta, insustentável bagagem (desemprego, alcoolismo), não suportando a ausência de respostas que plantem alguma esperança na terra seca dos conhecidos, o homem que partira em busca de êxito enforca-se no retorno ao lar, sentenciado pelo secreto fracasso. Isso já no primeiro capítulo. E o romance termina com cena mais dramática, cinema puro, Brasil puro. É o ritmo vertiginoso de um livro que, com Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Os Ratos, de Dyonélio Machado, está entre os mais tristes e convincentes da literatura como espelho da nossa realidade.

Em 1997, com O Cachorro e o Lobo (Record, 224 págs., R$ 29,90), Torres retomaria a história. Essa terra terminara com a decisão de Totonhim, depois de pôr a mãe num asilo (incapaz de assistir ao enterro do primogênito, tomada de surto psicótico) e deixar o pai à própria sorte em sua precária lavoura, em ir para São Paulo, tentar o que Nelo não conseguira. Foram necessários 21 anos para que essa espécie de anti-saga se impusesse ao escritor. Um monumento ao contrário, uma trajetória feita de impossibilidades, mas, por isso mesmo, a atingir uma intensidade de realismo poucas vezes presente na nossa ficção. O Cachorro e o Lobo retoma esse torturante vaivém. Totonhim, já passado dos 40, retorna para casa também 20 anos depois. Diferente do emudecido e arruinado Nelo, porém, chega apenas de visita, para comemorar, com três meses de atraso, o 80º aniversário do pai, Antão. Antão Filho, o Totonhim, está casado, com filhos, e um bom emprego no Banco do Brasil – embora a estabilidade não exista e ele tema, sem revelar aos que dele se orgulham, uma provável demissão em breve. Não saberemos do desfecho nessa parte.

Essa continuação trata da visita de 24 horas – que parecem uma semana. Totonhim, o cachorro (tratado assim pelo tom carinhoso do pai, que usa a mesma palavra com os desafetos, com significativa diferença na pronúncia) encontra uma cidade habitada por fantasmas, os do passado (o irmão, cuja presença se faz constante ainda na casa paterna; a mãe, separada, preferiu ficar noutra cidade, ainda no Recôncavo Baiano, há uns 100 quilômetros dali) e gente viva que se arrasta no andar, no falar, no agir, igualmente como mortos que apenas ainda permanecem deste lado.

Totonhim redescobre a primeira namorada, Inesita, revive com ela o encontro/desencontro, vital e inevitável, de uma relação que não pôde dar certo. E um pai (o lobo) octogenário, vendendo saúde, humor, e vítima de rumores sobre vício e esquisitices que o filho não confirma. Ao contrário, frutos da distorção do afeto da filha que mora longe e da curiosidade mórbida dos vizinhos que o velho Antão não visita, as imagens emanadas no dia-a-dia do ancião recluso (ainda que a testemunha filial tenha um prazo exíguo para comprová-las) mostram uma imensa fome de vida e uma fidelidade digna das memórias que o progresso, lamentavelmente, atingindo terras mesmo ermas, enterra para sempre.

Em Pelo Fundo da Agulha, lançado há pouco, Torres afinal chega ao desfecho de um pesadelo que levou três livros para ser expresso. Talvez o maior pesadelo da ficção em língua portuguesa. Se no primeiro romance o protagonista era Totonhim (embora o irmão Nelo e seu suicídio, além da parte final do romance, a mais marcante, a da mãe e sua fuga da realidade para não viver a morte do primeiro filho, sejam a essência do livro), no segundo, o pai e sua personalidade voluntariosa costuram uma trama que merece exatamente esse nome, porque alinhavada com esmero, quase elíptica não fossem recorrências e ecos musicais e temáticos: constâncias do medo, da culpa, das perdas humanas, do choque social entre uma São Paulo que é quase uma miragem e uma Junco – cidade natal – que não cessa de enviar notícias, imagens, febris mas reais (cidade fictícia, próxima a Alagoinhas, esta real, a cerca de 100 km de Salvador).

Uma Junco desolada, povoado fantasma nos anos 1970; 20 anos mais tarde, uma cidadezinha híbrida entre os costumes ainda vigentes daquele tempo (a sentenciar, por uma moral implacável e por falta de perspectivas econômicas, homens e mulheres), incapaz de exumar suas vítimas do Vale dos Suicidas, e um território suscetível aos abusos espoliativos da política pequena e do progresso desigual. Dez anos mais tarde, no fecho da trilogia, quando Totonhim se aposenta, cai numa região mais ignota ainda. Se a mãe, com 85 anos (o pai, vivo fosse, teria 90), é capaz de, numa visita sob a forma de despedida emblemática, mais desejada que realizada, fazer uma linha passar pelo buraco da agulha (como fazia há décadas, sem óculos), Totonhim nesse desfecho da própria trajetória trafega – e a linguagem evocativa do romancista contribui muito para isso – num não-lugar, que parece ter sido sempre o habitado pela personagem, da juventude à aposentadoria. Uma referência nunca cumprida, nunca legitimadora (contra a qual é preciso lutar; a favor da qual não se deve fugir).

Em Pelo Fundo da Agulha, sob a presença da mãe (como um Virgílio conduzindo Dante no Inferno), sabemos afinal um pouco dessa São Paulo e do casamento de Totonhim, quase nada mencionados nos volumes anteriores. E chega-se ao ápice dramático: a confissão materna das diferenças com o marido, da arte da persistência e de um estratégico afastamento de um espaço cujo solo parece servir mais para enterrar mortos que plantar sementes. A depressão da aposentadoria cede a uma sutil esperança. Um tempo renovado para que as culpas sejam substituídas por ações “indenizadoras”.

PS.: A terra – nos três volumes, sobretudo no primeiro e no segundo – parece sempre ser a mesma, quando a memória a evoca como ponto de partida para uma, duas, tantas travessias de um homem que, também, já não é o mesmo. Não, não se trata da mesma terra. Nem a história poderia ser o desdobramento previsível de um começo há três décadas. Por mais que ele sofra na ilusão de estar chegando ao fim de uma única vida. Quantas existências cabem em uma só? Tantas quantas forem as fendas abertas para as saídas (ou fugas, ou recuperações), ou as agulhas para o ingresso num novo espaço.

Paulo Bentancur é escritor, poeta, crítico literário, autor de Bodas de Osso e o recém-lançado A Solidão do Diabo, contos (ambos editados pela Bertrand Brasil)

Pelo Fundo da Agulha na revista Brasil/Brazil, da Brown University. Cláudia Nina

Se a ficção contemporânea tem a marca da diversidade de estilos e de vozes, sendo um caldo onde convivem várias tendências, entre elas o urbano, o histórico revisitado pela invenção, a anti-linearidade e muitos outros vieses, um elemento talvez seja o elo comum – ou a linha que perpassa – a tudo isso: a temática da solidão. Afinal, eis a condição na qual está o homem, desde a modernidade, mergulhado na multidão, mas irremediavelmente só.

É também sobre a solidão um dos romances mais desconcertantes de 2006: Pelo Fundo da Agulha, de Antônio Torres, que dá seqüência a Essa Terra, de 1976, e O Cachorro e o Lobo, de 1997. Com esse último, fecha-se o cerco da trilogia, marcando três tempos na obra do autor e ainda três momentos distintos da história da ficção no País. Aqui, seu personagem mais célebre – Antão Filho, o Totonhim – está de volta à cena, agora imerso num abandono emocional que é a sua maior dor: na capital paulista, deitado na cama, começa a pensar no sem-sentido da existência.

Marinheiro à beira de um cais imaginário, como diz o texto, Totonhim empreende a mais arriscada de todas as viagens: a volta ao tempo de sua própria história, em lances fotográficos em que a memória fragmentada por excelência, vai conduzindo sua mão pelos momentos vividos. Nessa viagem, embarca sozinho. Está aposentado, separado da mulher e dos filhos, perdeu o melhor amigo. Suas raízes estão em Junco, no sertão baiano, a cidade natal, e é de onde retira a belíssima imagem que dá título ao romance: a mãe, já velinha, mas com visão suficiente para enfiar a linha pelo fundo da agulha sem usar óculos. É a clareza de quem sobreviveu a uma dor lancinante, o suicídio do filho, mas mantém-se forte a ponto de não se deixar sucumbir.

Importante fazer aqui uma breve viagem no tempo dos romances para se entender o que ocorre antes desse momento. Em Essa Terra, o personagem Totonhim ainda está jovem e recebe o irmão, Nelo, que volta a Junco com o peso nas costas da derrota na capital paulista. É ele quem comete suicídio, humilhado por não ter conseguido vencer na vida. No final da história, é Totonhim quem abandona Junco, seguindo os passos do irmão na tentativa de sobreviver onde Nelo faliu. Em O Cachorro e o Lobo, passam-se 20 anos e Totonhim volta a Junco para comemorar o aniversário de 80 anos do seu pai. Não está feliz e nem vitorioso. Pelo contrário, o desemprego é um tormento iminente. Pelo Fundo da Agulha acontece dez anos após esse retorno a Junco e traz novamente o protagonista a uma nova encruzilhada.

A viagem agora é mais emocional do que real, Junco, o lugar que o ônibus deixou pra trás, resiste com força e poder apenas do reino da memória, assim como todas as personagens que se esfumaçaram na vida real, mas insistem em retornar à lembrança, teimosas que são. Não se tem aqui um relato linear; as vozes se confundem assim como os tempos narrativos. A intenção é embolar tudo mesmo. Nem poderia ser diferente, já que o texto se faz ao sabor da memória. A lembrança e seus fantasmas são sempre perigosos.

Eis um trecho que resume bem a situação em que se encontra Totonhim, no fim da linha, sem ter o que fazer ou pra onde ir: “Era São Paulo esta noite. A cidade que contemplou os sonhos de um imigrante com emprego, mulher, sogro, sogra, filhos (onde estariam eles?), amigos (e estes também?), viagens, amantes, sim, queridas colegas de trabalho, vocês foram o sal e a pimenta do nem sempre insosso modo funcionário de viver. E agora muito disso, ou quase tudo isso, havia se esvanecido na fumaça do maior parque industrial da América do Sul – mais um forno, mais um torno, mais um Volks. Agora ele estava só. Totalmente só, na cidade onde é possível você suportar tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer”.

Ninguém está só quando se tem algo do que se ocupar. Mas, quando o tempo vai retirando os afazeres, percebe-se que todos à volta já se foram. Esse impacto de uma realidade que não se pode modificar é um soco no estômago de Totonhim que nem sequer num “longínquo passado” consegue encontrar um sentimento para a vida. É a cilada do tempo: enquanto o presente é solidão, o passado também não lhe oferece a possibilidade de um reencontro confortável, já que as lembranças têm um sabor mais agreste do que doce.

Pelo Fundo da Agulha talvez seja um romance perigoso, como narrar é também perigoso, pois trata da volta ao que foi vivido ou ao que, a duras penas, se vive. E uma narrativa sobre a solidão traz consigo um duplo perigo: o de fazer com que as personagens do outro lado da cena, os leitores, também percebam a sua irremediável condição.