ANTÔNIO TORRES Pelo fundo da agulha

Editora Verdes Mares Enviado por Laéria

Fundindo pensamento e linguagem, e, assim, estabelecendo uma perfeita harmonia entre enunciação e enunciado, a narrativa de ´Pelo fundo da agulha´ entrelaça memória e imaginação, de tal forma que a unidade se anuncia a partir de fragmentos. O processo da tessitura textual consiste, fundamentalmente, na seguinte constatação: o que é pó em memória retornará. Trata-se, portanto, de um mundo reconstruído pelo avesso: recuperam-se as migalhas para que o pão seja refeito. Carlos Augusto Viana – Editor.

Talvez por isso haja, em todo o romance, um privilégio das impressões sensoriais, sobretudo das que evocam a visão, a audição e o olfato: ´Oh, memoráveis serenatas em noites enluaradas para moças sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias engomadas…´ (p.45) Enumeram-se, ao longo do texto, os ruídos das descargas, dos móveis que se arrastam, dos automóveis que se chocam; quando não, os frêmitos atávicos, que se evolam de ´um carro de bois, vagaroso, gemedor´, (p.111) e que hão de conduzir a personagem às ´luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado´. (p.111)

Memória é evocação. Através dos sentidos, o ser reconstrói o que o tempo dissolveu. Eis, quem sabe, a razão de não nos cansarmos de cantar a mesma música, de repetir determinadas frases, de saborear, reiteradamente, os alimentos. Em toda a obra de Antônio Torres, há sempre uma música a tocar no rádio: ´Rosas vermelhas, as do bem-querer´; (p.117) e das notas musicais advêm os passos, os compassos, os descompassos: ´E dançava conforme outra música. Cesse tudo. Silêncio. Ouça, menina bonita: Eu sei que vou te amar / .. Por toda a minha vida eu vou te amar…´ (p.146)

O exercício da memória está, intrinsecamente, ligado à aprendizagem. Aprender é apreender. O homem, perdido de si mesmo e de seu semelhante, busca o passado na sofreguidão de marcar um encontro consigo mesmo no presente. Desse modo, o protagonista de ´Pelo fundo da agulha´ percorre toda a narrativa , reiterando aquele movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim; e reside aí a natureza de sua viagem:

Memória. Um irmão que se matou. Mas isso faz muito tempo. Foi o seu pai quem fez o caixão, a consolar-se numa garrafa de cachaça. Assim que o esquife ficou pronto, tratou de levá-lo para a cova. ´Tinha tão pouca gente´, desolou-se, ao voltar do enterro. Foi tudo nos conformes da lei dos homens, velho. A igreja fechou-lhe as portas. Suicida não entra na casa de Deus, nem no reino do céu. E afasta as pessoas. Apavora-as. (p.64)

Uma das virtuoses desse romance é fruto da escolha do ponto de vista, uma vez que, conduzida pela terceira pessoa, a narrativa sofre, freqüentemente, o entrecorte do discurso indireto-livre, que, muitas vezes, desemboca no fluxo da consciência. Nesses momentos, depara-se a interioridade da personagem, e esta se torna mais complexa, mais humana, carregando em si um universo de dúvidas, de contradições, de gozo, de culpas, de doces lembranças ou de amargas recordações:

Por quantos anos mais os esteios e as paredes daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa delas, de fundos para o Nascente, rodeada de árvores frutíferas, quintal de flores, verduras, abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o poente. Para os crepúsculos longos e mais silenciosos do mundo.

Agora via um menino saindo de lá e pegando um caminho que chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada, igual a muitas outras. Ao passar de um pasto para outro, ele, o menino, se deparou com uma explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão vermelhos que pareciam enfeites de um presépio. (p.105-106)

Esse excerto comprova que um dos aspectos estilísticos mais recorrentes é a fusão do passado com o presente, pois, o protagonista, com freqüência, entrega-se a devaneios; são momentos em que procura um sentido para a existência ou uma explicação para os mistérios que a rodeiam.

A recorrência com que o Autor se utiliza do discurso indireto-livre, fazendo com que a personagem seja, também, responsável pela condução do enredo, transpõe para o foco em terceira pessoa (ou ponto de vista externo) a onisciência prismática; – esta é erigida a partir do seguinte expediente: em vez de um narrador que se apresenta tão-somente com a onisciência, (aquele que tudo sabe e tudo vê, aquele que conhece o narrar e o narrado) o leitor entra em contato direto com a realidade, enxergando-a pelo prisma da personagem. Inscreve-se, assim, uma constante preocupação com as contradições da consciência e mesmo do inconsciente do ser dentro do contexto de uma realidade, emergindo as tensões. E tudo se dá pela fusão de perspectivas temporais: ora a simples lembrança; ora o momento presente; ora a projeção do passado no presente, a partir da qual assoma o futuro, para que, finalmente, tudo se funda no intemporal, pois os elementos configuradores do real têm dissolvidos os seus contornos:

Agora cá estava. Sim, com meio caminho andado, entre o passado e o futuro. Ainda não avistara o sinal verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto entre os dois tempos. (p.128)

O título desse romance – Pelo Fundo da Agulha – é um achado. Anulada e aniquilada, a existência do protagonista só poderá refazer-se através da verbalização. Transmuda-se, por isso, em vozes. É ele o oráculo de si mesmo. Tendo o olhar voltado para suas próprias entranhas, não contempla a opacidade da cidade pela janela de um quarto de hotel, pois outra é sua viagem: ´Toda narrativa é uma viagem – percurso construído pela imaginação para escoar possibilidades´. (DALCASTAGNÈ, 2000, p. 11)

Palmilhando ruas e avenidas, becos e ruelas, num banco de táxi ou de um ônibus, no frio da Europa ou sob o sol do empoeirado agreste, está o protagonista, em verdade, imóvel, e, em sua direção, apenas o passado e suas sombras. Inútil, pois, jogar fora todas as cordas: inúmeros, os camelos; inexorável, a agulha. A noite se dissemina em agônicas assombrações: ´Não percebeu que era tudo o que seu irmão queria? Uma corda para se enforcar?´ (p.96) A noite água a dúvida, o inesperado, o imponderável: ´o desaparecimento da luz nos confina no isolamento, nos cerca de silêncio e portanto nos desassegura´.(DELUMEAU, 1989, p. 99)

Pelo fundo da agulha, passa uma narrativa alinhavada; passam os automóveis, os aviões, o rugir ronceiro de um carro de boi, os solavancos de um coração, os dados que se quedam sobre a mesa, a cadência remissiva dos boleros, ´Xote, marcatu e baião´, (p.143) os olhos do enforcado, a indiferença de um ´Deus que não amava os suicidas´. (p.212) Desse modo, na narrativa, todos os referenciais ´misturam os discursos numa compulsão circular, moebiana.´. (BAUDRILLARD, 1991, p. 28) Na solidão de um quarto, emaranham-se os tijolos da construção de um ser em narrativa: ´todo o ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não pede o contado com o mundo dos meus semelhantes´. (ARENDT, 1989, p. 528)

Entre a janela de um quarto de hotel e o buraco de uma agulha, duas linhas por que se cirzem o passado e o presente: o tecido num bastidor, o pergaminho da memória. O bordado de um texto no entrecruzar-se dessas linhas: embora o real não seja mais possível, é possível a ilusão de um avarandado coração; assim, ´mais leve, se sentirá (o protagonista) um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha´. (p.218)

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In O olhar, NOVAES, A. (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988. DALCASTAGNÈ, R. A garganta das coisas. Brasília: Editora UnB, 2000. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo,1969. GARCIA, O. Alguns processos poéticos de Carlos Drummond de Andrade. In: Carlos Drummond de Andrade, BRAYNER, S. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1978. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. POUND, E. O que é literatura, o que é linguagem etc? In: Ensaios críticos de literatura, BEAVER, H. (org.) São Paulo: Lidador, 1959 TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004. TORRES, A. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

TRECHO

Calma aí, homem. O mundo ainda não acabou, se é assim que lhe parece. O que ele não oferece é o encanto dos descobrimentos, como na era das grandes navegações. Sejamos sinceros: viajar, hoje, não tem a menor graça. É um saco. Aeroportos enormes, desconfortáveis, cansativos. Conexões estorvantes. Passageiros destituídos de glamour e pessoal de bordo sem tempo para delicadezas. Lembra da sua primeira viagem aérea? Quando o avião balançou e o prato de comida voou da mesinha para o seu peito, logo surgiu uma aeromoça com uma toalha embebida em água quente e lavanda para, com mãos de fada, remover toda a sujeira sobre o seu paletó azul, comprado à prestação especialmente para aquela estréia no ar. Havia algo de material naquele gesto, não? Agora, o seu vôo será realizado num plano impessoal, com a frieza da lógica. Embarque, ajeite-se como puder, fique atento aos avisos eletrônicos, aguarde os serviços de praxe e tente dormir, se for capaz de não se apavorar com as turbulências. No seu sonolento embarque, perceberá que o mundo ficou igual, no que tem de pior. No mercadão universal não há sonhos à venda. Mas bugigangas que podem ser encontradas ali na esquina. (TORRES, A. Pelo Fundo da Agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p.36-37)

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