Manhã de domingo em Tietê

O Estado de S.Paulo (17/11/2006) Ignácio de Loyola brandão

O que posso dizer para o Antônio Torres? Estava entre Porto Feliz e Tietê, no sítio de Lisa, uma amiga, contemplando paisagens em diversos tons de verde que iam do mais claro ao quase negro, enquanto o Rio Tietê, lá embaixo, fazia uma curva e cintilava ao sol. As caipiroscas de framboesas, colhidas ali no sítio, cheias de sumo, equivaliam a uma bênção papal com indulgência plenária, nos levando ao céu para sempre. Alguém propôs.

– Vamos a Tietê? – O que tem lá? – Uma pracinha central gostosa que vale a pena ver.

Em 20 minutos chegamos e a entrada da cidade é graciosa, florida. Aqui e ali os jardins se sucedem, até darmos com uma grande placa: Tietê, Cidade das Flores. Domingo, atravessamos ruas desertas, como em qualquer cidade do mundo nesse dia. Eu pensando: como apresentar o Antônio Torres que não precisa de apresentação?

Então, demos com a pracinha, que se chama Elias Garcia e não é pracinha, é praçona, cheia de roseiras, de flores, com fontes e um coreto. Comovente a presença de coretos. Tietê manteve o seu intocado no centro da praça. Jatos prateados subiam das fontes e as águas eram azuis, límpidas. Finalmente uma cidade onde as águas das fontes ou chafarizes são cristalinas, transparentes. Já vínhamos gostando da limpeza, parece que as ruas tinham acabado de ser lavadas, varridas. Decidi comprar um jornal, por todas as cidades em que passo levo um ou dois locais. Entrei na banca, uma portinhola numa esquina, perguntei ao jornaleiro:

– Qual o melhor jornal da cidade.– Temos cinco.– Então? Qual o senhor me aconselha?– Como aconselhar? Não sei o seu gosto, não conheço a sua opinião! Indico um, o senhor pode detestar. E como fico?

Diplomata o homem. Bela cidade que tem cinco jornais, numa era de tevê, internet, e tudo o mais. Um senhor se aproximou e me soprou dois títulos, comprei. Aproveitei:

– Quantos habitantes têm a cidade?– Trinta mil.

Agradeci, ia saindo, outro senhor me segurou pelo braço:

– Não temos 30, não. Tietê tem quase 40 mil. Corrija, 40 mil!

Estava orgulhoso e olhou feio para o outro, o que tinha diminuído a população local. Saímos para um volta e me apaixonei por uma velha casa em frente da praça, a de número 52 (mas há também uma placa com o número 59), ao lado do Hotel Cuitelo. Residência? No hotel – um belo prédio vermelho, anos 30 ou 40 – me responderiam. Queria perguntar, mas não havia recepcionista, não havia ninguém. Seria um hotel self-service? Num banco da praça, um grupo de homens, latas de cerveja na mão, jogavam conversa fora. Aposentados? Seguimos pela mesma rua até chegarmos à esquina da Rua Antonio Nery, onde há duas casas magníficas. Uma amarela, outra de janelas vermelhas, com jeito de casa abandonada. Subimos a Nery e demos com outra casa linda, no meio de um terreno, numa esquina. Fechada. Por toda a cidade, belas casas antigas, parte restaurada e conservada com classe e estilo.

Então, demos com um edifício comprido que pegava uma esquina inteira, em tijolos aparentes. Atmosfera de fábrica desativada. No térreo, havia uma agência de turismo, uma oficina ou borracharia e uma loja de eletrodomésticos. Daqueles prédios que nos deixam sem fôlego. Tombado? Vazio? Ali acontece alguma coisa? Perguntei a duas ou três pessoas, nada sabiam. Na padaria Duas Irmãs, onde tem uma saborosa carolina de maçã, também a dona não soube responder. ‘Não sou daqui’, nos disse.

Uma placa indicava: Oficina Cultural. Havia a placa, mas nenhum prédio com a indicação de Oficina Cultural. A rua virava contramão, passamos por trás da rodoviária, voltamos e nada da Oficina. Parecia conto do Borges. Ali perto, dominando uma esquina, uma casa que dava gosto, toda rosa, senhorial e altiva. Casa Rosada, pensamos. E nos ligamos a Buenos Aires. Borges e Buenos Aires. Fechava o clima. Rodávamos e não queríamos partir, a cidade tem um belo astral, a gente se sente bem nela. Ainda mais que todos que passavam diziam: m’dia, m’dia, m’dia. Nenhum deixou de nos cumprimentar com um sorriso. Coisa rara em um mundo no qual as pessoas estão cada vez mais grosseiras e mal-educadas.

Uma pena, a igreja na praça Elias Garcia estava fechada, apesar de ser domingo. Não fiquei sabendo se tem um altar de Santo Antônio. Subi ao coreto, contemplei a casa 59 (ou 52?) e, de repente, as coisas me vieram com clareza, naquele silêncio, na tranqüilidade de Tietê. Agora sabia o que dizer sobre Antônio Torres e seu romance Pelo Fundo da Agulha na noite da próxima terça-feira, dia 21, na Fnac de Pinheiros. Um livro que pergunta: ao nos aposentarmos, o que fazer? Tempo de ainda construir alguma coisa? O que é a velhice? Ao rever a vida pelo fundo da agulha, um homem pensa no sentido de tudo. A vida tem sentido? Torres envelhece com poesia e ternura nos textos. Delicadeza e compaixão. Pediram-me para falar do livro antes que ele autografe – e quem não for não saberá o que perdeu. Ando pela praça e raciocino: falo sobre o livro ou falo sobre a amizade? Torres e eu estamos envelhecendo juntos, tendo começado jovens na Última Hora, tendo trilhado – com João Antônio que precisou partir antes, nem se despediu, morreu só – este Brasil de ponta a ponta conversando com as pessoas, falando sobre o ofício de escrever que nos apaixona e diverte. Torres é íntegro, leal, exerce a escritura sem ressentimentos, sem rancores, compreendendo o êxito não merecido de um, lamentando o ostracismo não merecido de outro. Jamais o ouvi falar mal de um colega. Falo do livro, falo do autor, falo dos dois? Venham – vocês leitores – conhecer/reconhecer Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.