A TRILOGIA BRASIL

jornal A Tarde, Salvador, 16 dez. 2006 Gerana Damulakis

Sabemos que construir uma trilogia é uma tentação para muitos romancistas, mas se o romance em si já exige tanto como gênero, quando se quer romance e não mero entretenimento misturando os famosos ingredientes: um moço bonzinho e sabichão, uma moça linda, um crime, um bocado de cultura inútil para o leitor sentir que tem em mãos um livro “maravilhoso”, imagina-se, então quanto talento e quanto fôlego são necessários para escrever um texto que perturbe o imaginário do leitor, revolva idéias sobre o sentido ou a falta de sentido da vida, ou que o faça lembrar daqueles versos de Drummond no poema “Viver”: “Mas era apenas isso,/ era isso, mais nada?/ Era só a batida/ numa porta fechada?”. Quantos romances suscitam esta pergunta. E, então, valem a pena. Melhor ainda se um romance puxa por outro e mais outro e daí resulta uma trilogia.

Quando Antônio Torres fechou sua trilogia com o recentemente lançado Pelo fundo da agulha, foi difícil resistir e deixar de colocar um título: Trilogia Brasil. De saída vem um paralelo com a trilogia USA, e apesar de não haver a necessidade de recordar uma trilogia estrangeira, já que temos na nossa literatura algumas muito boas — e agora vem o nome de Luis Ruffato, autor de uma delas —, cabe justificar o título culpando as associações, pois elas têm sempre uma razão que a própria razão tantas vezes desconhece e, afora este lugar-comum, é fácil achar a causa da lembrança. A trilogia USA, de John dos Passos, é composta por The 42nd Parallel (Paralelo 42, Rocco, 1987) publicado em 1930, seguido por Nineteen nineteen (1919, Rocco, 1989), editado em 1932 e finaliza com The big money (O grande capital, Rocco, 1999), de 1936, quando arremata a história de um americano vivendo na idade do progresso estadunidense, simbolizado pelo sacrifício; assim, um rapaz faminto e sozinho andando pelas estradas, faz a crônica da desilusão em relação à promessa americana, resultando na troca da sua inocência pela sua sobrevivência. Num trabalho sobre esta trilogia, Henry James é citado por conta de sua máxima: “O romancista é herdeiro do sagrado ofício do historiador.” John dos Passos registrou uma passagem da história norte-americana nas andanças do personagem, tal como faz Torres na trilogia Brasil.

Porque a trilogia de Antônio Torres não deixa de conter a nossa história, a história do povo brasileiro do sertão, tomando um caminho que tantos tomaram no século 20. Quando o autor publicou Essa terra, em 1976, o narrador contava a ida e a volta do irmão Nelo para São Paulo: o caminho do retirante. Mas há uma visão diferente daquela mais usual, encontrada nos romances que narram sobre os que deixam a terra. A questão está na abordagem de Torres, pois a miséria do sertão pode até ter a seca como uma das causas de falta de perspectiva, contudo a região centro-sul, tida e vista como núcleo do Estado nacional, chama as pessoas, vendendo esperança e, por fim, roubando a força produtora do sertão. Portanto, se não há a critica que culpa as condições climáticas ou a formação étnica, não há também uma glorificação do sertão, porque, enfim, não há momento em que o texto se queira panfleto, seja louvando a força do sertanejo, seja buscando a condição única e determinante de seu flagelo.

Vale repetir que a abordagem é bastante ampla, não se restringe a fazer ou não fazer dinheiro no sul maravilha. Torres estampa o modo como os baianos Nelo, Zé do Pistom, seu Caboco, Totonhim são avaliados pelos paulistas. Os baianos são conhecidos como aqueles que vão embora de suas terras e não voltam para buscar nem as namoradas. A marginalização chega ao ponto da generalização: “Todo baiano é negro, é pobre, é veado, acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia. São Paulo não é o que se pensa”, diz o personagem.

Já supracitada é a existência do outro diferencial na história dos retirantes do Junco, ou seja, não há herói sertanejo, há personagens completos, com virtudes e defeitos, sem idealização, que buscam uma condição de vida mais satisfatória: é só isso. E sendo só isso, o objetivo do texto não é a denúncia, desde que o autor não prega revolução de qualquer tipo, reforma seja lá de qual natureza; mas, por outro lado, ele não chega ao conformismo, já que há a tragédia do homem que lhe é inerente. Antônio Torres elaborou sua história sobre o ser humano e suas tristes condições, de forma a usar o espaço, a ação e seus personagens concorrendo num conflito psicológico com raiz no contexto sertanejo. Daí a linguagem: como o narrador está distanciando quando resolve contar, pois já saiu do meio sertanejo, as expressões e o vocabulário do que ele conta são usados depois que sofreram a transformação pela distância. Não se pode apontar um regionalismo lingüístico, sequer estranheza na leitura. É interessante enfatizar que, além da presença secundária da tradicional seca, há também a ausência do cangaço, porque “Lampião nem quis entrar no Junco”, o que, de resto, acaba sendo mais um diferencial em relação a outros textos da narrativa sertaneja.

Na trilogia, sempre a música se faz presente, levando à comparação com Alfred Hithcock e suas aparições nos próprios filmes; é, na verdade, a presença de Antônio Torres, um aficcionado por música : do bolero ao choro, aos sambas-canções, uma história musical corre paralela, seja para marcar o tempo, seja para incrementar os sentimentos.

Se cabe em Essa terra o suicídio do irmão do narrador, Nelo, a loucura da mãe, a solidão do pai, a ida dele próprio, Totonhim, para São Paulo, mesmo que haja o reconhecimento de que “essa terra me chama, me enxota, me enlouquece, me ama”, é em O cachorro e o lobo, 20 anos depois de Essa terra, que encontramos o narrador de volta à terra natal: o pai completa 80 anos, Totonhim vai visitá-lo sem levar a mulher e os filhos, talvez por serem estereótipos doa habitantes de uma grande cidade. Antes de chegar ao sertão, Totonhim vai ver a mãe e, já neste segundo volume da trilogia, o fato de que aquela senhora enfia a linha pelo buraco fino da agulha sem necessidade de ajuda é-lhe surpreendente. O pai de Totonhim está instalado no alto de uma colina a conversar com os mortos, ou, quem sabe, remoendo as terras perdidas depois que o Banco apareceu ali, emprestando dinheiro e mandando plantar sisal, empreendimento que deu errado e o levou à ruína. Junco agora é uma cidade cheia de antenas parabólicas, mas a única loura da terra continua a ser “Inês, Inesita Inesinha, ou simplesmente I”, a primeira namorada, a dos cabelos de boneca de milho, neste momento professora numa “terra de filósofos e loucos”. Volta a imagem do pai fazendo o caixão do próprio filho Nelo: imagem que deve voltar também à memória do pai que, com a chegada de Totonhim, faz de tudo, no capricho, para receber bem o filho. Medo de que este tenha voltado para repetir o feito do outro, igualmente se enforcando? O certo é que o pai, confabula com Inês, ambos tratam de limpar a casa e oferecer um almoço delicioso e farto ao visitante. Não há como temer que a volta dele seja como a de Nelo: o almoço do filho com o pai e com a primeira namorada, a noite de amor com ela, a abstinência do pai que, tido como bêbado, ele encontra sem tocar em álcool; enfim, tudo saiu muito bem, não haverá mais uma morte apressada.

Pelo fundo da agulha fecha a trilogia 30 anos depois. Antão Filho, cujo apelido já sabemos que é Totonhim, está aposentado do banco, no qual trabalhava em São Paulo, e a viagem para o Junco desta feita será pelas técnicas fragmentárias da memória humana: há muitas vozes nas lembranças de Totonhim sozinho, separado da mulher e dos filhos, já tendo perdido também o melhor amigo. A mãe velhinha, mas que enfia a linha pelo fundo da agulha, imagem já presente no livro anterior, serve como um quadro que ocupa o centro de uma sala gigantesca, onde cabe uma vida. A narrativa é mais uma vez musical e sons e letras de músicas acompanham a primeira noite do aposentado “sem despertador”. Apenas no final do romance o sono vence como se fosse a linha de chegada da viagem pela memória neste décimo primeiro romance de Antônio Torres. As duas frases finais dizem: “Adormece. E, finalmente, entra na região sem tempo dos sonhos”

A jornada foi longa, são tantos mortos nesta altura da vida, são tantos os remorsos, mas a viagem chega ao vale dos suicidas para ser comparada sem vantagem à vida dos aposentados. Chegam à memória o primo Pedrinho, o amigo de infância Gil, além do irmão Nelo. O primo Pedrinho deu o estilingue a Totonhim no dia em que este foi embora: “um presente para o pior caçador de passarinho que o mundo já havia conhecido”, ele disse. Como o homem nasce e morre só, depois do desfalque na Justiça do Trabalho, em Juazeiro, e para pagar dívidas da campanha eleitoral, o amigo Gil mergulha num copo de formicida, deixando uma carta para o bispo “Agora estou só. Tão desgraçadamente só quanto no dia em que nasci. Mas agora dispenso a parteira e não preciso mais berrar ao mundo que estou só”. Quanto a nelo, sabemos em demasia que se enforcou ao voltar para Junco sem trazer dinheiro de São Paulo. O vale dos suicidas evoca uma razão na citação de Albert Camus: “num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro…”

Totonhim, no entanto, está não apenas lembrando, está já no mundo da utopia e, por isso, Oscar Wilde é chamado dentre os devaneios: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a Humanidade está sempre aportando”. A utopia foi São Paulo, que chamou Nelo, que chamou Totonhim. No volume Pelo fundo da agulha, é o lado paulista da história que prevalece na narrativa: a chegada, os primeiros empregos, o primeiro amigo em São Paulo, o amazonense Bira, que acaba assassinado, assim como a esposa Sílvia, nos tempos duros da ditadura e logo após um encontro com Totonhim: aqui há uma cena pungente, quando Totonhim compra duas rosas, deita-as sobre o chão molhado do sangue do casal de amigos, benze-se e diz: “Ite missa est”. Continua a bela cena, com Totonhim lembrando e dizendo a si mesmo e chamando-se de senhor: “O senhor foi andando lentamente, a passo de funeral, um hoje, outro amanhã, e olhando para ontem, como se tivesse perdido o ritmo e o rumo das horas. Ao voltar a cabeça na direção das flores, percebeu que elas já haviam sido esmagadas pelos sapatos dos transeuntes. Toda a história de uma grande amizade terminava ali, debaixo das pisadas de quem a desconhecia,…”

Neste lado paulista da história, como foi acentuado, ficamos sabendo que Totonhim casou-se com Ana, que ele havia conhecido no casamento dos amigos Bira e Sílvia. Sabemos que Ana era colega de universidade de Sílvia. Sabemos o quanto Totonhim foi amigo de copo do sogro, que confiou nele deixando uma mala, quem sabe se repleta de documentos sobre a ditadura, porém, nem Totonhim nem nós saberemos o que continha, pois é queimada num ato que se traduz como lealdade e respeito pelo sogro morto. Tudo isto pode passar a impressão que há um afastamento da realidade sertaneja, mas não é assim: a narrativa é autêntica, ocorre que, se nos volumes anteriores, o narrador ainda está perto da caracterização do homem do sertão que se vai para o sul, agora lemos o que sucedeu ao sertanejo na cidade grande, embora o tom oralizante seja o mesmo, as frases curtas estejam igualmente ali.

Para finalizar, vale estabelecer os espaços precisos da trilogia: o Junco, atualmente uma cidade chamada de Sátiro Dias, Feira de Santana, para onde a mãe de Totonhim se mudou, e Alagoinhas, lugar do hospício para o qual a mãe foi levada por Totonhim em completo desatino após o suicídio do filho Nelo, e, enfim, São Paulo, para onde foram Nelo e, depois, Totonhim. Apenas o Junco, e apesar de tudo, é descrito poeticamente, pois é lá que se pode admirar “a barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-do-sol mais longo do mundo”.

Vânia Pinheiro Chaves professora de literatura brasileira na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estudando o volume Essa terra analisa as formas e o significado que a representação do sertão assume e que constituem a matéria da “literatura sertaneja”. Muito eficiente, o rótulo serve à perfeição para englobar “um filão que atravessa a Literatura Brasileira desde o Romantismo”, como atenta a professora. Manejando os espaços físicos, os aspectos sociais e econômicos, além dos políticos e culturais, incluindo os aspectos lingüísticos do universo sertanejo, ora idealizando-o, ora mirando-o criticamente, Vânia Chaves aponta quatro modos de abordar o sertão: o romântico de Alencar, o realista-naturalista de Os Sertões, de Euclides da Cunha, o neo-realista dos romances nordestinos dos anos 30 e o pós-modernista em Guimarães Rosa. Ela detecta influências de Grande sertão: veredas em Essa terra. Afora qualquer dívida, se ela existe, a trilogia de Antônio Torres é singular dentro da “literatura sertaneja”, como é singular cada caminho que se faz, mais ainda porque o autor deu expressão ao indizível e ao invisível nas entrelinhas daquele caminho.

Os três volumes têm um complemento sob a forma de uma pequena coletânea com três contos, estes últimos reunidos em Meninos, eu conto (Record, 1999). Por sinal, o título é uma homenagem a Gonçalves Dias, que, no poema I-juca-pirama, coloca na boca do narrador, um velho pajé que conta a história ao pé de uma fogueira, o verso “Meninos, eu vi!”. Tudo é, contas feitas, resultado da soma da memória mais a invenção. E o talento do escritor Antônio Torres.