Caderno Cultura, Diário do Nordeste 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará.
Antônio Torres ocupa, na ficção brasileira, uma posição singularíssima: tece, como poucos, um texto peculiar, posto longe das tendências ou das correntes literárias, ao mesmo tempo em que, diante do leitor mais atento à elaboração da escritura do que ao próprio desenrolar-se do enredo, constitui sempre um desafio: decifra-me ou devoro-te. E tal peleja se torna mais árdua quando o romancista trabalha com temas recorrentes, como, de modo específico, dá-se com a trilogia, iniciada com ´Essa Terra´, seguida por ´O cachorro e o lobo´ e que fecha o círculo, agora, com ´Pelo Fundo da Agulha´. (Editora Record, 220 páginas) Tais questões integram o motivo maior dessa edição, pois Antônio Torres estará em Fortaleza, na próxima terça-feira, dia 28, para, no Centro Cultural do BNB, abrir o Seminário ´Migrações: geografia das palavras´ – evento coordenado pelas professoras Sarah Diva Ipiranga e Solange Kate Araújo. Carlos Augusto Viana – Editor.
A linguagem é uma estrutura simbólica que comporta a realidade. Através dos signos lingüísticos, os homens se comunicam entre si a a respeito do mundo – mas não com o mundo. Há, portanto, uma separação entre sujeito e objeto; os signos circulam entre os indivíduos, comportando um sentido que exige uma investigação: ´A linguagem reclama o pensar: a palavra é propriamente o esquema do conceito; quem a profere vai ao conceito´. (DUFRENNE, 1969, p. 31)
Múltiplos são os caminhos por que se pode ler uma obra literária; no entanto, em se tratando de romance, deve-se, antes de tudo, concentrar uma especial atenção no título e (caso haja) na epígrafe – principalmente, se esta se referir ao texto como um todo. (O título há de ser retomado mais à frente; por enquanto, urge a epígrafe.) Em ´Pelo Fundo da Agulha´, conscientemente ou não, (pouco importa) a epígrafe, em vez de posta no frontispício, (nesta posição sofre, quase sempre, o desprezo do leitor) assiste à entrada do primeiro capítulo:
´A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geógia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos´.
Este fragmento é da escritora norte-americana Carson McCullers. Nascida em Columbus, (Geórgia) partiu, ainda adolescente, para Nova Iorque, perseguindo o sonho da fama como escritora. Viveu, na carne e na alma, o choque cultural, bem como o tormento de ter o comportamento social (vivenciou as mais diversas transgressões) regulado pelo olho da opinião pública. Sua ficção, cuja atmosfera remonta à densidade psíquica de Dostoievsky, é plena de comportamentos macabros e configura o viver como a expressão de um pesadelo.
Todo esse intróito se sedimenta numa funcionalidade: preparar o leitor para o universo que, a partir de agora, irá palmilhar, da mesma forma como, num lance antecipatório, mostra uma identidade entre essa escritura (a própria escritora) e o protagonista da trama que, então, há de abrir-se ao leitor. O protagonista da ´Trilogia do Suicídio´, de Antônio Torres, tem o seu percurso ontológico no seguinte movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim, uma vez que vive aquele mesmo impasse da personagem lírica do teatrum mundi drummoniano: ´Você marcha, José! / José, para onde?´. (DRUMMOND, ), delineando, assim, o desajuste entre o sujeito e o mundo – situação, aliás, que inaugura a narrativa:
Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.
Cá está ele: na cama.
Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado. Imóvel. A olhar para o teto e paredes de um quarto. E a assustar-se com a sombra de uma cortina em movimento, que supôs ser o fantasma de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de mulher com certeza. (p.7-8)
Assim, a narrativa põe diante do leitor uma personagem entregue a divagações e a incertezas, apontando, por outro lado, duas preocupações temáticas por que há de orientar-se a organização da trama: o estrangeiro e a metrópole; ou seja: o estranhamento que resulta desse encontro; por um outro, a construção do discurso, com pausas dramáticas e cortes abruptos, ressalta a problemática da linguagem como um dos elementos-chave dessa criação ficcional.
A princípio, a desfiguração do espaço entranha-se à da personagem: ´um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios´. O narrador, por sua vez, ao referir-se ao protagonista como ´outro personagem´, reconhece-se como tal e, pela intrusão, estende esse estado também ao leitor: ´Não o imagine um guerreiro…´ Nesse sentido, personagem, narrador e leitor formam um inextrincável tripé – atores, evidentemente, de todo o estranhamento, partícipes da pós-modernidade, cúmplices por ´sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico´. (HARVEY, 1992, p. 49) Desse modo, todos – e não apenas o protagonista – são ´um mortal comum´, e, por inferência, transformados em coisa: ´Assim o vemos: deitado. Imóvel.´ Ora, se ´o vemos´, (narrador e leitor) é porque, assim como ele, (o protagonista) também estamos imóveis: ´a passividade é a marca do olhar´. (CHAUÍ, 1998, p. 33) Todos, enfim, aniquilados, despidos de sua condição de sujeito.
Nas atividades semióticas, a literatura integra um estatuto privilegiado: ´tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto a sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível´. (TODOROV, 2004, p.54) A literatura é a linguagem plena de significado: ´A grande literatura é simplesmente a linguagem carregada de significado em seu mais alto grau´. (POUND, 1959, p.23)
Antônio Torres realiza ´A grande literatura´. Nesse fragmento em análise, imprime-se a habilidade com que tece o discurso, servindo-se do jogo de ´palavra-puxa-palavra´ – recurso estilístico pouco encontrável em prosadores. (Cf. Garcia, 1978, p.202-234) Esse processo resulta do encadeamento de palavras, fruto de afinidades as mais diversas, configurando associação semântica: um termo evoca um outro, que evoca um outro etc: ´Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem…´
Essa seqüência frasal tem como pilares a recorrência implícita a ´Era´ e explícita ao termo ´outra´ em suas declinações. Sendo ´outra a cidade´, entra esta em oposição a Junco e às metrópoles por que andou, antes, (o leitor sabe tratar-se de uma trilogia) a personagem; ´outros´ são ainda ´o país, o continente´ e, sobretudo, ele, o protagonista´, que, embora seja o mesmo, é ´outro´, pois vive o inferno da alteridade. O parágrafo ´Cá está ele: na cama.´ transmite ao leitor a sensação de intimidade, de estar diante de alguém a quem possa, facilmente, identificar. E tal situação se consolida em ´Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso…´, pois, assim, o leitor recupera, por associação, o ser e o tempo deste: Antão Filho e suas desventuras.
[Terceira Página do Caderno Cultura domingo – DIÁRIO DO NORDESTE 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará]