A angústia no fim da linha Em romance reflexivo, Antônio Torres encerra trilogia iniciada há 30 anos

Caderno Idéias JB, 23/09/2006. Henrique Rodrigues*

Antônio Torres escreve musicalmente. Em palestras e oficinas que ministra pelo país, deixa clara essa associação no seu processo criativo. O resultado é uma prosa que traz o embalo do jazz e a melodia na leitura. Diferente de várias tendências da moda nas literatices, Torres não tem intenção de asfixiar o leitor: antes, convida-o para dançar.

O lançamento de “Essa Terra”, em 1976, trouxe novo fôlego ao debate acerca do dualismo sertão/cidade. O romance, hoje na 21ª edição, narra o fracasso diante da migração nordestina para locais com promessa de vida melhor. Totonhim assiste à desintegração das suas referências familiares quando os pais e irmãos se mudam de Junco (hoje chamada de Sátiro Dias) para Feira de Santana, outra cidade do interior da Bahia, e acabam por mergulhar ainda mais na pobreza. Lá, o banco emprestara dinheiro ao pai sob a condição de que plantasse sisal, uma cultura que não vingara, deixando-o endividado; sem perspectiva, os irmãos fogem de casa tão logo estejam crescidos. E a tragédia mais lancinante: o suicídio do irmão mais velho Nelo que, após fracassar em São Paulo, não encontrou mais referências na cidade que deixara para trás. O personagem se tornou, na literatura brasileira, um símbolo da perda da dignidade humana perante as sucessivas derrotas sociais.

Diante desse quadro, restou a Totonhim seguir o caminho do irmão, rumo a São Paulo, para tentar superar o atraso em que a família se encontrava. Ainda que lutando com a possibilidade de repetir a história de Nelo, vinte anos depois Totonhim retorna à cidade natal, onde, tal como acontecera ao outro, já era um estranho. Esse regresso é narrado em “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997. Ali, a memória constitui o caldo grosso onde flutuam, em permanente conflito, as expectativas e frustrações dos seus personagens, em especial no embate de Totonhim com o pai.

Espaço e tempo lhe escapam pelos dedos, construindo para o personagem um ambiente físico e psicológico segundo o qual a realidade é um imenso e, paradoxalmente, exteriorizado oco.

A consciência desse vazio imenso está em “Pelo fundo da agulha”. No desfecho da trilogia, Totonhim se vê no seu quarto, em São Paulo, abandonado pela mulher e filhos, na primeira noite após se aposentar. Financeiramente, sua jornada não foi desfavorável. No entanto, a solidão lhe preenche como a um aquário com peixes moribundos, num delírio formado por lembranças que desfilam pelas quatro paredes. Entre o sono e a vigília, o protagonista olha o próprio passado como se fosse pelo buraco de uma agulha, na qual sua mãe, idosa porém com mão firme, passava a linha.

Dentre as recordações, percebe-se um tom de auto-ironia, manejado com destreza pelo uso recorrente do discurso indireto livre, no qual a narrativa se desdobra em si mesma, dando lugar a uma segunda voz: “Agora ele avistava um sinal amarelo. Esperar. Mas atenção! Olho vivo nos semáforos. Cuidado para não ser atropelado. Como entrar na cidade e integrar-se nela? Com a ajuda de um, a mão de outro e empurrões da sorte. E prestando muita atenção aos seus sinais. Avante, camarada!”. O riso de agonia é, ainda que de forma resignada, um viés possível de compreensão que o personagem tem de si mesmo.

“Rever é perder o encanto”, já arrematou Millôr Fernandes. Na trilogia de Antônio Torres, rever significa trocar um desencanto por outro. A angústia se torna o território inexorável, onde irremediavelmente vai aportar a trajetória humana.

A saga de Totonhim, de certa forma, traduz a própria curva de desencanto da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, representada no cidadão cujas raízes se fragmentam, cada vez mais destituídas de som e fúria.

Henrique Rodrigues é escritor