Feito de memória e de esquecimento

Revista Entrelivros, São Paulo, Maio de 2007 Renato Bittencourt Gomes

Ao contar história de bancário que se aposenta, Torres encerra trilogia que refaz meio século do país

Em um quarto de hotel, um homem sozinho, aposentado e separado repassa a vida, imaginando cartas e conversas, lembrando de acontecimentos, Quem é ele? “Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates”. Onde está? “Na região sem tempo dos sonhos”, ou do limiar dessa região: o que lhe passa pela cabeça é revelado ao leitor não tem exatamente uma natureza onírica e também não traz a consistência iniludível daquilo que rotineiramente chamamos de realidade. Ele elenca seus fantasmas, um a um, “pois agora sua vida seria só isso: memória”. Mas quem é esse homem?

“Um foragido e um sobrevivente. Alguém que conseguiu escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria”, disse de si mesmo o poeta Ferreira Gullar em um vigoroso testemunho, Uma luz do chão (1978). O mesmo parecem dizer os protagonistas de Antônio Torres, incluindo o nosso homem no hotel: foragidos e sobreviventes. E esses romances de Torres também trazem o tom de testemunho ao narrar a saga dos sertanejos na cidade grande. Porém, isso não acontece impunemente, porque à sua volta – e mesmo neles – o que se vê é aflição, desespero, alcoolismo, loucura e morte. Desde o primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua (1972). Há, no entanto, espaço também para a felicidade – as alegrias amorosas, a construção de uma carreira profissional, a formação de uma mínima prole, o reencontro com os familiares que ficaram no sertão.

Com o recém-lançado Pelo Fundo da Agulha (2006), Torres fecha uma trilogia começada com Essa Terra (1976) e prosseguida com O Cachorro e o Lobo (1997). Essa é a tríade de Totonhim, que, assim como o autor, é natural do Junco, lugarejo do interior seco da Bahia. Em Essa Terra, Totonhim decide deixar o Junco depois de sofrer o impacto do suicídio do irmão primogênito, que havia retornado depois de 20 anos em “São Paulo-Paraná”. Nesse primeiro tomo, já temos os conflitos e rancores familiares: a sombra do irmão, herói da família e do lugar; o pai apegado ao modo de ser do sertanejo; a mãe que quer outra vida. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim volta à cidadezinha para confraternizar com o pai, que completara 80 anos de idade. Nessa visita, surpreende-se com as mudanças ocorridas e, mais que tudo, observa a vida que evitou, a existência que, migrando, deixou de levar. Nesses dois primeiros volumes, não sabemos que bagagem ele acumulou em São Paulo, recebemos apenas dados preliminares, burocráticos: casado, dois filhos, funcionário do Banco do Brasil.

Só no terceiro volume sabemos o que ele passou na metrópole: a pensão, o emprego no banco, o casamento, a convivência com o sogro, os filhos, a morte do sogro, a separação. E tudo retrospectivamente, quando tudo já não é mais, quando Antão da Cruz Filho, o Totonhim, reduziu-se a um homem em um quarto de hotel, sozinho com sua memória. É pela memória que ele repassa tudo que viveu, assim como o autor vai reescrevendo mais ou menos a mesma história do livro de estréia, na trilogia, Balada da infância perdida (1986), compondo nesses vários volumes um mesmo “romance sujo”, redigido com a mesma pegada do Poema sujo (1976) de Ferreira Gullar, a mesma evocação da infância, a memória familiar, as vivências de um homem que é habitado por uma cidade e sua gente

Isso garante uma unidade de obra até mesmo nos recentes romances históricos – Meu querido canibal (2000) e O nobre seqüestrador (2003) –, que enfocam nosso passado colonial e nos quais o autor de alguma forma se insere na narrativa, com sua vivência de sertanejo habitando o Rio de Janeiro, migrante debruçado sobre o mistério da nossa aquática metrópole tropical. Assim, ao longo dos volumes da trilogia e de toda a romanesca de Antônio Torres, vemos ser composto um painel da vida brasileira nas últimas cinco ou seis décadas, nas quais o chamado progresso mudou nossa maneira de ser de viver.

Tendo iniciado sua obra com um romance sob o signo da loucura, Torres apresenta uma escritura que muitas vezes corteja o delirante, adentrando exageros que poderíamos chamar de barrocos, no que se aproxima de José Alcides Pinto, prosador e poeta oriundo do sertão do Ceará, autor da Trilogia da maldição (1964-74). Parece que em Pelo fundo da agulha é terminada a descrição do amplo arco que vai do Junco a um quarto de hotel em terra distante. Totonhim pode finalmente entrar na “região sem tempo dos sonhos”, mas tudo indica que a obra não acaba. Se o retorno e o suicídio do irmão foram uma confissão de derrota (“É como dizem: quem volta é porque fracassou”), Totonhim seguiu em frente. Antônio Torres, também.