Com a coragem e a cara (2015) Fernanda Sampaio Carneiro

Anoitecia. Lá se fora a Ladeira Grande. Adeus, Junco. Junco: assim se divulgava o nome daquele lugar, que o ônibus ia deixando para trás. Cada vez mais. (p.109)

Pelo fundo da agulha (1ª edição em 2006, 4ª edição em 2014) fecha a trilogia iniciada com Essa Terra, e seguida por O cachorro e o lobo. A saga de Totonhim continua – o nordestino que foi embora para São Paulo aos 20 anos. Antes de ir ele viu o suicídio do irmão Nelo na terra natal de ambos. Foi um dos motivos que o fez abandonar a sua terra. A mãe enlouqueceu e foi internada num hospício em Alagoinhas; o pai em Feira de Santana, cada um para um lado. Totonhim rumo a São Paulo.

O juízo da gente é assim como aquela linha fininha, que as costureiras enfiam no fundo da agulha. Quando se rompe, fica difícil de fazer remendo. (p.99)

O protagonista de Pelo fundo da agulha é casado, trabalha no Banco do Brasil e é pai de Rodrigo e Marcelinho, ele conta histórias aos filhos antes de dormir, viaja à Paris “em suaves prestações”, foi assaltado em Barbesse. Visita o túmulo de Oscar Wilde e vira flâneur pelas ruas onde pisava Charles Baudelaire. Conversa com o taxista filho de imigrantes armênios, que é francês, mas considerado cidadão de segunda classe. Nosso viajante fala francês, portanto. Faz “turismo fúnebre”, interessa- lhe os epitáfios, visita o túmulo de Balzac no Père-Lachaise. E na despedida, o taxista lamenta por seus pais não terem imigrado ao Brasil, aonde os filhos de armênios tornam- se cidadãos de êxito. E agora vem a genialidade narrativa do autor, que arremata com essa frase que condensa todo um sentimento universal e inerente à maioria dos seres humanos:

Aonde quer que você for, vai encontrar alguém com um lugar de sonhos. (p. 30)

Totonhim viaja. A menininha moradora no extremo norte do país estuda na Guiana Francesa para aprender francês e um dia ir morar em Paris.

O desejo era o seu passaporte, ele pensaria. Não, não teria coragem de cortar- lhe as asas, com advertências inúteis: “Assim como os rios, as mais sedutoras cidades do mundo têm suas margens. Você pode estar destinada a cair na pior delas.” (p. 33)

(…) Corre menina, corre. O mundo ficou tão pequeño quanto o fundo de uma agulha. Grande é o teu sonho de criança. (p. 34)

Na página 88 existe uma descrição perfeita do motivo que fazia (e ainda faz) muitos brasileiros do interior escaparem para as grandes cidades do Brasil ou do exterior.

A linguagem é contemporânea e o tempo não é linear. A narrativa acontece em épocas diferentes e em lugares diferentes. Totonhim jovem empreendendo sua grande aventura na metrópole; maduro, já na época das memórias. O narrador é onisciente: seletivo, vê tudo, sabe de tudo, sabe o que sente o personagem, opina. Essa obra é menos descritiva que as duas primeiras da trilogia. O mundo psicológico é mais intenso, há mais divagações sobre temas variados, como pequenas histórias dentro da história. Viagens, leituras, cinema, música. O tempo vai e volta, o protagonista agora é viúvo e está só. Os filhos crescidos estão pelo mundo. O narrador joga magistralmente com a forma trágica da morte da esposa do protagonista, baleada aos 50 anos pelas costas quando fugia de um assalto.

“Mais parece uma colagem de alguma matéria de jornal” (p.62) – e o narrador revela o pensamento mentiroso do protagonista que aumentou a idade da mulher e revela, que, na verdade, está separado, a mulher não está morta. Criativa essa forma de narrar! O narrador refere-se a “Totonhim” (de Antão, não Antônio como eu pensava) como “senhor”. Filho de Antão.

O tema da terceira idade é tocado sem panos-quentes. É ruim envelhecer pelo lado biológico, a perda de vitalidade e cabelos, as marcas do tempo, as constantes idas ao médico, os exames. A aposentadoria que mata. O taxista da Praça da Sé, com 70 anos, aposentado há 25 – o táxi o livrou de uma depressão – concorda:

Aposentadoria mata, meu chefe. (p. 62)

E a narrativa volta ao Junco, cidadezinha na Bahia onde Nelo, o primogênito, se enforcou. A mãe enlouqueceu, mas recuperou a sanidade e passa a linha pelo fundo da agulha sem óculos. Totonhim a reencontrou com 75 anos (em O cachorro e o lobo), mas e agora? Os pais estariam vivos?

A viagem de ônibus pau-de-arara da Bahia à cidade de São Paulo é dura, interminável, cheia de incomodidades e dormências, mas também cheia de esperanças e saudades. O espanto da chegada, o formigueiro humano que é a estação de ônibus em São Paulo. A solidão. Todos estão sozinhos. Essa parte emotiva da narrativa rumo ao desconhecido começa na página 91.

Lembram quando “antigamente” existia o vendedor de enciclopédias que ia de porta em porta? E as portas se abriam, sem medo?! Sim, essa profissão existiu no Brasil e foi a primeira (e efêmera) profissão de Totonhim em São Paulo. A narrativa da chegada quebra o estereótipo de uma cidade de São Paulo fria e impessoal.

Já leu “Paulicéia desvairada”, de Mário de Andrade? Um dos autores que Totonhim anotou mentalmente quando passou na biblioteca pública municipal Mário de Andrade.

Há o preconceito no sudeste contra o nordestino? O Brasil é um país racista ( sempre e ainda)? Basta ler os jornais ou acompanhar as redes sociais que você vai encontrar a resposta, embora os casos rotineiros não saiam nas notícias, são dolorosos igualmente. Esse tipo de obra deve servir como reflexão, auto-análise. O preconceito surge por causa do desconhecimento. De todas as formas, Totonhim teve uma melhor sorte que Nelo.

A trilogia fecha com chave-de-ouro: “Pelo fundo da agulha” termina a colcha de retalhos, o quebra-cabeça. Nesse livro são citados quatro suicídios – é um tema recorrente na trilogia. As sagas e dores familiares, essas, as que mais açoitam (na ficção ou na vida).

Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou pelo que deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo.(p.218)

(A minha admiração e homenagem a todos os nordestinos e nortistas que tiveram a coragem de sair das suas cidades/povoados para tentar uma “vida melhor”, normalmente em condições adversas e sem dinheiro. Em especial às minhas avós, e depois, à minha mãe, migrante aos 17 anos, que partiu de Feira de Santana para São Paulo, e que sempre soube transformar a dor em força, e ao meu pai (in memoriam), que aos 18 anos cruzou o Atlântico do Porto para fazer a América, um menino, que continuou menino toda a sua vida, com seu coração nobre e sonhador. O legado continua).

(…) E assim adormece. Com o coração mais leve, se sentirá um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha. (p.218)

Fernanda Sampaio Carneiro Resenha publicada no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2015, cujo texto postado aquí foi revisado por sua autora).

Pelo Fundo da Agulha (2006) – O GLOBO Luciana Ackermann

RIO – A hora de pendurar as chuteiras, é um momento delicado para muitas pessoas. Este momento de mudança, com os dilemas de um homem diante da aposentadoria é o tema do novo livro de Antônio Torres , de 66 anos, “Pelo fundo da agulha”. Nele, o personagem principal Totonhim refaz a trajetória de sua vida e diversas reflexões sobre a hora de parar. O livro fecha a trilogia iniciada com o romance “Essa Terra”, de 1976, passando pelo “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997.

Totonhim é um nordestino, que, como muitos, para melhorar de vida mudou-se para São Paulo. Lá, estudou muito, passou em um concurso público para uma vaga no Banco do Brasil, onde fez sua carreira. Formou-se em administração de empresas. Dedicou toda a sua vida ao banco. Nos últimos dois anos, foi gerente da área de recursos urbanos do banco. Em seu dia-a-dia, já havia se acostumado a ouvir as queixas e os lamentos daqueles que estavam se desligando do banco para se aposentar. Mais tarde, Totonhim mudou de lado e também precisou deixar o banco.

É nesse contexto que Torres desenvolve as profundas reflexões de Totonhim em sua primeira noite de sua aposentadoria. Para compor o personagem e todos os seus conflitos, Torres explica que, além da própria intuição, também fez diversas pesquisas de campo com profissionais da área de recursos humanos e entre aposentados. Nelas, encontrou casos de pessoas que gostam de viajar, fazer cursos, descansar. Outros que têm a capacidade de se autogerenciar, investem em algum negócio, e, aqueles que se sentem abandonado, sem saber o que fazer com o tempo livre.

Um dos relatos mais curiosos é o de um senhor aposentado que dia sim, dia não vestia seu terno para visitar o antigo trabalho e tomar um cafezinho com os colegas. No entanto, ele não ia embora e ficava dando palpites e aborrecendo os colegas.

– Para muitos a primeira angústia é a perda do crachá, que simboliza a perda dos vínculos com a empresa. Nesse momento perde-se um mundo de referências, a vida social, as festinhas, os amigos, os puxa-sacos, as estagiárias. Enfim, há um vínculo emocional entre o homem e a empresa, afirma Torres.

Para o autor, a alternativa para não sentir tal angústia é procurar ter outras atividades além da vida profissional, como a prática de esportes, ter uma vida social cultural, como visitar exposições, ir aos cinemas, aos lançamentos de livros etc. Ele, que está viajando o país para lançar o livro, diz que vários leitores o abordam para dizer que ficaram emocionados como o assunto é abordado.

Dor e delírio em tempo e espaços condensados

Prosa & Verso – O Globo 18/09/2006 Marcelo Moutinho*

Sempre que passa pela Travessa do Ouvidor, Antônio Torres pára por alguns segundos em frente à estátua de Pixinguinha para uma singela reverência. Mais do que simplesmente um pedido de benção ao mestre do choro, o gesto de Torres encerra uma poderosa metáfora sobre a própria obra. Desde “Um cão uivando para a lua” (1972), sua estréia na ficção, o escritor baiano radicado no Rio tenta jogar luz sobre um país que parece fora de foco. Através de personagens singularíssimos e desterritorializados, ele se detém sobre o que é peculiar, no específico, na cor local. Cor que, de uma forma ou de outra, em geral se dissipa.

Vida e obra se amalgamam quase que indissoluvelmente na trajetória de Torres, cimentada em 10 romances que a Record vem reeditando e agora ganham a companhia de “Pelo fundo da agulha”, com noite de autógrafos marcada para a próxima terça (19), na Livraria da Travessa. O novo título marca o realinhamento do autor com os elementos estéticos e temáticos dos trabalhos anteriores a seu recente passeio pela narrativa histórica, que rendeu “O Centro das nossas desatenções”, “Meu querido canibal” e “O nobre seqüestrador”. Paralelamente, o livro fecha a trilogia iniciada há 30 anos com “Essa terra” e que se seguiu com “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997.

A trilogia centra-se sobre o êxodo nordestino sob o ponto de vista do protagonista Totonhim, originário do pequeno município de Junco, no sertão da Bahia, e cujo irmão, Nelo, emigrou para São Paulo, em percurso que espelha o do próprio autor. Em “Essa terra”, Totonhim relata a volta trágica do irmão ao torrão natal, que sob a pena de Torres ganha a dimensão mítica de uma Macondo, embora seja real e, tendo trocado de nome, esteja hoje inscrita no mapa como Sátiro Dias. No retorno cercado de expectativa após duas décadas vividas no “Sul Maravilha”, Nelo procura tatear a identidade que fora esgarçada ao limite na megalópole – e tropeça no impasse. Se a migração não lhe reembolsara o milagre prometido, Junco agora ficara inevitavelmente para trás. Sem lugar, resta-lhe o suicídio.

Em “O cachorro e o lobo”, é Totonhim, já radicado em São Paulo, quem pega a estrada rumo ao passado a fim de tentar desfazer, a partir do reencontro com o pai e com a topografia do lugar que virou lembrança, o nó da morte do irmão. A viagem a Junco contempla uma outra viagem, interior, e o narrador turva sua saudade em choros e sambas-canção que parecem fora de época, reminiscências ainda latejantes de um tempo que vai, apressado. “Em quatro semanas, acabara descobrindo que o lugar em que nascera já não lhe pertencia. Sequer lhe oferecia um galho em que se segurar”, lamenta o narrador. A aparente imobilidade das coisas escondia mudanças profundas. A exemplo de Nelo, Totonhim também perdera a cidade que um dia fora sua.

Situado mais de dez anos depois, “Pelo fundo da agulha” traz Totonhim recolhido a uma cama, entre o sono e a vigília, na companhia espaçosa da solidão. Recém-aposentado e envelhecido, longe da mulher e dos filhos, ele embarca em novo périplo, agora inteiramente introspectivo, no qual se reencontrará com a mãe. São Paulo, Junco, o pai, o primeiro amor, o irmão suicida, tudo virou apenas matéria de memória, que remexe, movediça e fantasmagórica, em seu delírio.

“Era outra a cidade, e outro o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”, anota o narrador, que atua como uma espécie de ‘consciência crítica’ do protagonista, chegando a intervir no enredo. Quanto Totonhim pretende carregar na dramaticidade para justificar a ausência da esposa, por exemplo, ele o repreende: “Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor”.

Torres mais uma vez comprova sua destreza na construção de mundos complexos em tempo e espaços condensados. Como já havia acontecido em “Balada da infância perdida” (1986), cuja trama decorre durante uma única madrugada e limita-se ao apartamento do protagonista, o desvario de Totonhim dura apenas algumas horas e se dá no exílio de seu quarto. O isolamento que a aposentadoria agravou é “uma dor que puxa os restos das outras” e o leva a concluir que numa cidade como São Paulo “é possível você suportar tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer”.

Um regresso a Junco não faz mais sentido – ele já o experimentara. Tampouco lhe apraz a dura poesia concreta das esquinas paulistanas. Na cidade natal, havia o sonho de partir. Na metrópole, o de voltar. “Agora era janeiro. De um ano qualquer, já numa década avançada do século XX, que ia inflando, inflando, como um balão de gás solto no ar, levando sua juventude dentro dele”. E Totonhim esvaziou-se.

Estrangeiro onde quer que esteja, ele não vislumbra a perspectiva de reatar os fios que se romperam e flerta com a possibilidade do suicídio, personificada numa bela (porém demasiado longa) citação de “O mito de Sísifo”, de Camus. Junco, e mesmo São Paulo, são agora cidades imaginárias, passíveis de existência tão-só na remontagem quase fictícia que as recordações engendram. Na tentativa de impedir sua extinção, ele se apega em desespero a tais imagens.

Torres pinta o crepúsculo de seu personagem em tons sombrios, matizando um Brasil que enjeita a padronização e, sob o silêncio opaco de milhões de testemunhas, também começa a desaparecer. Ao registrar em papel a história de Totonhim, o autor acaba por salvá-la do esquecimento e esculpindo a memória em pedra bruta – como aquela que, já lapidada, tomou a forma de Pixinguinha e parece tocar sax em plena Travessa do Ouvidor.

* Marcelo Moutinho é escritor e jornalista

Feito de memória e de esquecimento

Revista Entrelivros, São Paulo, Maio de 2007 Renato Bittencourt Gomes

Ao contar história de bancário que se aposenta, Torres encerra trilogia que refaz meio século do país

Em um quarto de hotel, um homem sozinho, aposentado e separado repassa a vida, imaginando cartas e conversas, lembrando de acontecimentos, Quem é ele? “Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates”. Onde está? “Na região sem tempo dos sonhos”, ou do limiar dessa região: o que lhe passa pela cabeça é revelado ao leitor não tem exatamente uma natureza onírica e também não traz a consistência iniludível daquilo que rotineiramente chamamos de realidade. Ele elenca seus fantasmas, um a um, “pois agora sua vida seria só isso: memória”. Mas quem é esse homem?

“Um foragido e um sobrevivente. Alguém que conseguiu escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria”, disse de si mesmo o poeta Ferreira Gullar em um vigoroso testemunho, Uma luz do chão (1978). O mesmo parecem dizer os protagonistas de Antônio Torres, incluindo o nosso homem no hotel: foragidos e sobreviventes. E esses romances de Torres também trazem o tom de testemunho ao narrar a saga dos sertanejos na cidade grande. Porém, isso não acontece impunemente, porque à sua volta – e mesmo neles – o que se vê é aflição, desespero, alcoolismo, loucura e morte. Desde o primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua (1972). Há, no entanto, espaço também para a felicidade – as alegrias amorosas, a construção de uma carreira profissional, a formação de uma mínima prole, o reencontro com os familiares que ficaram no sertão.

Com o recém-lançado Pelo Fundo da Agulha (2006), Torres fecha uma trilogia começada com Essa Terra (1976) e prosseguida com O Cachorro e o Lobo (1997). Essa é a tríade de Totonhim, que, assim como o autor, é natural do Junco, lugarejo do interior seco da Bahia. Em Essa Terra, Totonhim decide deixar o Junco depois de sofrer o impacto do suicídio do irmão primogênito, que havia retornado depois de 20 anos em “São Paulo-Paraná”. Nesse primeiro tomo, já temos os conflitos e rancores familiares: a sombra do irmão, herói da família e do lugar; o pai apegado ao modo de ser do sertanejo; a mãe que quer outra vida. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim volta à cidadezinha para confraternizar com o pai, que completara 80 anos de idade. Nessa visita, surpreende-se com as mudanças ocorridas e, mais que tudo, observa a vida que evitou, a existência que, migrando, deixou de levar. Nesses dois primeiros volumes, não sabemos que bagagem ele acumulou em São Paulo, recebemos apenas dados preliminares, burocráticos: casado, dois filhos, funcionário do Banco do Brasil.

Só no terceiro volume sabemos o que ele passou na metrópole: a pensão, o emprego no banco, o casamento, a convivência com o sogro, os filhos, a morte do sogro, a separação. E tudo retrospectivamente, quando tudo já não é mais, quando Antão da Cruz Filho, o Totonhim, reduziu-se a um homem em um quarto de hotel, sozinho com sua memória. É pela memória que ele repassa tudo que viveu, assim como o autor vai reescrevendo mais ou menos a mesma história do livro de estréia, na trilogia, Balada da infância perdida (1986), compondo nesses vários volumes um mesmo “romance sujo”, redigido com a mesma pegada do Poema sujo (1976) de Ferreira Gullar, a mesma evocação da infância, a memória familiar, as vivências de um homem que é habitado por uma cidade e sua gente

Isso garante uma unidade de obra até mesmo nos recentes romances históricos – Meu querido canibal (2000) e O nobre seqüestrador (2003) –, que enfocam nosso passado colonial e nos quais o autor de alguma forma se insere na narrativa, com sua vivência de sertanejo habitando o Rio de Janeiro, migrante debruçado sobre o mistério da nossa aquática metrópole tropical. Assim, ao longo dos volumes da trilogia e de toda a romanesca de Antônio Torres, vemos ser composto um painel da vida brasileira nas últimas cinco ou seis décadas, nas quais o chamado progresso mudou nossa maneira de ser de viver.

Tendo iniciado sua obra com um romance sob o signo da loucura, Torres apresenta uma escritura que muitas vezes corteja o delirante, adentrando exageros que poderíamos chamar de barrocos, no que se aproxima de José Alcides Pinto, prosador e poeta oriundo do sertão do Ceará, autor da Trilogia da maldição (1964-74). Parece que em Pelo fundo da agulha é terminada a descrição do amplo arco que vai do Junco a um quarto de hotel em terra distante. Totonhim pode finalmente entrar na “região sem tempo dos sonhos”, mas tudo indica que a obra não acaba. Se o retorno e o suicídio do irmão foram uma confissão de derrota (“É como dizem: quem volta é porque fracassou”), Totonhim seguiu em frente. Antônio Torres, também.

A angústia no fim da linha Em romance reflexivo, Antônio Torres encerra trilogia iniciada há 30 anos

Caderno Idéias JB, 23/09/2006. Henrique Rodrigues*

Antônio Torres escreve musicalmente. Em palestras e oficinas que ministra pelo país, deixa clara essa associação no seu processo criativo. O resultado é uma prosa que traz o embalo do jazz e a melodia na leitura. Diferente de várias tendências da moda nas literatices, Torres não tem intenção de asfixiar o leitor: antes, convida-o para dançar.

O lançamento de “Essa Terra”, em 1976, trouxe novo fôlego ao debate acerca do dualismo sertão/cidade. O romance, hoje na 21ª edição, narra o fracasso diante da migração nordestina para locais com promessa de vida melhor. Totonhim assiste à desintegração das suas referências familiares quando os pais e irmãos se mudam de Junco (hoje chamada de Sátiro Dias) para Feira de Santana, outra cidade do interior da Bahia, e acabam por mergulhar ainda mais na pobreza. Lá, o banco emprestara dinheiro ao pai sob a condição de que plantasse sisal, uma cultura que não vingara, deixando-o endividado; sem perspectiva, os irmãos fogem de casa tão logo estejam crescidos. E a tragédia mais lancinante: o suicídio do irmão mais velho Nelo que, após fracassar em São Paulo, não encontrou mais referências na cidade que deixara para trás. O personagem se tornou, na literatura brasileira, um símbolo da perda da dignidade humana perante as sucessivas derrotas sociais.

Diante desse quadro, restou a Totonhim seguir o caminho do irmão, rumo a São Paulo, para tentar superar o atraso em que a família se encontrava. Ainda que lutando com a possibilidade de repetir a história de Nelo, vinte anos depois Totonhim retorna à cidade natal, onde, tal como acontecera ao outro, já era um estranho. Esse regresso é narrado em “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997. Ali, a memória constitui o caldo grosso onde flutuam, em permanente conflito, as expectativas e frustrações dos seus personagens, em especial no embate de Totonhim com o pai.

Espaço e tempo lhe escapam pelos dedos, construindo para o personagem um ambiente físico e psicológico segundo o qual a realidade é um imenso e, paradoxalmente, exteriorizado oco.

A consciência desse vazio imenso está em “Pelo fundo da agulha”. No desfecho da trilogia, Totonhim se vê no seu quarto, em São Paulo, abandonado pela mulher e filhos, na primeira noite após se aposentar. Financeiramente, sua jornada não foi desfavorável. No entanto, a solidão lhe preenche como a um aquário com peixes moribundos, num delírio formado por lembranças que desfilam pelas quatro paredes. Entre o sono e a vigília, o protagonista olha o próprio passado como se fosse pelo buraco de uma agulha, na qual sua mãe, idosa porém com mão firme, passava a linha.

Dentre as recordações, percebe-se um tom de auto-ironia, manejado com destreza pelo uso recorrente do discurso indireto livre, no qual a narrativa se desdobra em si mesma, dando lugar a uma segunda voz: “Agora ele avistava um sinal amarelo. Esperar. Mas atenção! Olho vivo nos semáforos. Cuidado para não ser atropelado. Como entrar na cidade e integrar-se nela? Com a ajuda de um, a mão de outro e empurrões da sorte. E prestando muita atenção aos seus sinais. Avante, camarada!”. O riso de agonia é, ainda que de forma resignada, um viés possível de compreensão que o personagem tem de si mesmo.

“Rever é perder o encanto”, já arrematou Millôr Fernandes. Na trilogia de Antônio Torres, rever significa trocar um desencanto por outro. A angústia se torna o território inexorável, onde irremediavelmente vai aportar a trajetória humana.

A saga de Totonhim, de certa forma, traduz a própria curva de desencanto da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, representada no cidadão cujas raízes se fragmentam, cada vez mais destituídas de som e fúria.

Henrique Rodrigues é escritor

ANTÔNIO TORRES: filamentos de uma escritura

Caderno Cultura, Diário do Nordeste 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará.

Antônio Torres ocupa, na ficção brasileira, uma posição singularíssima: tece, como poucos, um texto peculiar, posto longe das tendências ou das correntes literárias, ao mesmo tempo em que, diante do leitor mais atento à elaboração da escritura do que ao próprio desenrolar-se do enredo, constitui sempre um desafio: decifra-me ou devoro-te. E tal peleja se torna mais árdua quando o romancista trabalha com temas recorrentes, como, de modo específico, dá-se com a trilogia, iniciada com ´Essa Terra´, seguida por ´O cachorro e o lobo´ e que fecha o círculo, agora, com ´Pelo Fundo da Agulha´. (Editora Record, 220 páginas) Tais questões integram o motivo maior dessa edição, pois Antônio Torres estará em Fortaleza, na próxima terça-feira, dia 28, para, no Centro Cultural do BNB, abrir o Seminário ´Migrações: geografia das palavras´ – evento coordenado pelas professoras Sarah Diva Ipiranga e Solange Kate Araújo. Carlos Augusto Viana – Editor.

A linguagem é uma estrutura simbólica que comporta a realidade. Através dos signos lingüísticos, os homens se comunicam entre si a a respeito do mundo – mas não com o mundo. Há, portanto, uma separação entre sujeito e objeto; os signos circulam entre os indivíduos, comportando um sentido que exige uma investigação: ´A linguagem reclama o pensar: a palavra é propriamente o esquema do conceito; quem a profere vai ao conceito´. (DUFRENNE, 1969, p. 31)

Múltiplos são os caminhos por que se pode ler uma obra literária; no entanto, em se tratando de romance, deve-se, antes de tudo, concentrar uma especial atenção no título e (caso haja) na epígrafe – principalmente, se esta se referir ao texto como um todo. (O título há de ser retomado mais à frente; por enquanto, urge a epígrafe.) Em ´Pelo Fundo da Agulha´, conscientemente ou não, (pouco importa) a epígrafe, em vez de posta no frontispício, (nesta posição sofre, quase sempre, o desprezo do leitor) assiste à entrada do primeiro capítulo:

´A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geógia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos´.

Este fragmento é da escritora norte-americana Carson McCullers. Nascida em Columbus, (Geórgia) partiu, ainda adolescente, para Nova Iorque, perseguindo o sonho da fama como escritora. Viveu, na carne e na alma, o choque cultural, bem como o tormento de ter o comportamento social (vivenciou as mais diversas transgressões) regulado pelo olho da opinião pública. Sua ficção, cuja atmosfera remonta à densidade psíquica de Dostoievsky, é plena de comportamentos macabros e configura o viver como a expressão de um pesadelo.

Todo esse intróito se sedimenta numa funcionalidade: preparar o leitor para o universo que, a partir de agora, irá palmilhar, da mesma forma como, num lance antecipatório, mostra uma identidade entre essa escritura (a própria escritora) e o protagonista da trama que, então, há de abrir-se ao leitor. O protagonista da ´Trilogia do Suicídio´, de Antônio Torres, tem o seu percurso ontológico no seguinte movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim, uma vez que vive aquele mesmo impasse da personagem lírica do teatrum mundi drummoniano: ´Você marcha, José! / José, para onde?´. (DRUMMOND, ), delineando, assim, o desajuste entre o sujeito e o mundo – situação, aliás, que inaugura a narrativa:

Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.

Cá está ele: na cama.

Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado. Imóvel. A olhar para o teto e paredes de um quarto. E a assustar-se com a sombra de uma cortina em movimento, que supôs ser o fantasma de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de mulher com certeza. (p.7-8)

Assim, a narrativa põe diante do leitor uma personagem entregue a divagações e a incertezas, apontando, por outro lado, duas preocupações temáticas por que há de orientar-se a organização da trama: o estrangeiro e a metrópole; ou seja: o estranhamento que resulta desse encontro; por um outro, a construção do discurso, com pausas dramáticas e cortes abruptos, ressalta a problemática da linguagem como um dos elementos-chave dessa criação ficcional.

A princípio, a desfiguração do espaço entranha-se à da personagem: ´um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios´. O narrador, por sua vez, ao referir-se ao protagonista como ´outro personagem´, reconhece-se como tal e, pela intrusão, estende esse estado também ao leitor: ´Não o imagine um guerreiro…´ Nesse sentido, personagem, narrador e leitor formam um inextrincável tripé – atores, evidentemente, de todo o estranhamento, partícipes da pós-modernidade, cúmplices por ´sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico´. (HARVEY, 1992, p. 49) Desse modo, todos – e não apenas o protagonista – são ´um mortal comum´, e, por inferência, transformados em coisa: ´Assim o vemos: deitado. Imóvel.´ Ora, se ´o vemos´, (narrador e leitor) é porque, assim como ele, (o protagonista) também estamos imóveis: ´a passividade é a marca do olhar´. (CHAUÍ, 1998, p. 33) Todos, enfim, aniquilados, despidos de sua condição de sujeito.

Nas atividades semióticas, a literatura integra um estatuto privilegiado: ´tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto a sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível´. (TODOROV, 2004, p.54) A literatura é a linguagem plena de significado: ´A grande literatura é simplesmente a linguagem carregada de significado em seu mais alto grau´. (POUND, 1959, p.23)

Antônio Torres realiza ´A grande literatura´. Nesse fragmento em análise, imprime-se a habilidade com que tece o discurso, servindo-se do jogo de ´palavra-puxa-palavra´ – recurso estilístico pouco encontrável em prosadores. (Cf. Garcia, 1978, p.202-234) Esse processo resulta do encadeamento de palavras, fruto de afinidades as mais diversas, configurando associação semântica: um termo evoca um outro, que evoca um outro etc: ´Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem…´

Essa seqüência frasal tem como pilares a recorrência implícita a ´Era´ e explícita ao termo ´outra´ em suas declinações. Sendo ´outra a cidade´, entra esta em oposição a Junco e às metrópoles por que andou, antes, (o leitor sabe tratar-se de uma trilogia) a personagem; ´outros´ são ainda ´o país, o continente´ e, sobretudo, ele, o protagonista´, que, embora seja o mesmo, é ´outro´, pois vive o inferno da alteridade. O parágrafo ´Cá está ele: na cama.´ transmite ao leitor a sensação de intimidade, de estar diante de alguém a quem possa, facilmente, identificar. E tal situação se consolida em ´Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso…´, pois, assim, o leitor recupera, por associação, o ser e o tempo deste: Antão Filho e suas desventuras.

[Terceira Página do Caderno Cultura domingo – DIÁRIO DO NORDESTE 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará]