Com a coragem e a cara (2015) Fernanda Sampaio Carneiro

Anoitecia. Lá se fora a Ladeira Grande. Adeus, Junco. Junco: assim se divulgava o nome daquele lugar, que o ônibus ia deixando para trás. Cada vez mais. (p.109)

Pelo fundo da agulha (1ª edição em 2006, 4ª edição em 2014) fecha a trilogia iniciada com Essa Terra, e seguida por O cachorro e o lobo. A saga de Totonhim continua – o nordestino que foi embora para São Paulo aos 20 anos. Antes de ir ele viu o suicídio do irmão Nelo na terra natal de ambos. Foi um dos motivos que o fez abandonar a sua terra. A mãe enlouqueceu e foi internada num hospício em Alagoinhas; o pai em Feira de Santana, cada um para um lado. Totonhim rumo a São Paulo.

O juízo da gente é assim como aquela linha fininha, que as costureiras enfiam no fundo da agulha. Quando se rompe, fica difícil de fazer remendo. (p.99)

O protagonista de Pelo fundo da agulha é casado, trabalha no Banco do Brasil e é pai de Rodrigo e Marcelinho, ele conta histórias aos filhos antes de dormir, viaja à Paris “em suaves prestações”, foi assaltado em Barbesse. Visita o túmulo de Oscar Wilde e vira flâneur pelas ruas onde pisava Charles Baudelaire. Conversa com o taxista filho de imigrantes armênios, que é francês, mas considerado cidadão de segunda classe. Nosso viajante fala francês, portanto. Faz “turismo fúnebre”, interessa- lhe os epitáfios, visita o túmulo de Balzac no Père-Lachaise. E na despedida, o taxista lamenta por seus pais não terem imigrado ao Brasil, aonde os filhos de armênios tornam- se cidadãos de êxito. E agora vem a genialidade narrativa do autor, que arremata com essa frase que condensa todo um sentimento universal e inerente à maioria dos seres humanos:

Aonde quer que você for, vai encontrar alguém com um lugar de sonhos. (p. 30)

Totonhim viaja. A menininha moradora no extremo norte do país estuda na Guiana Francesa para aprender francês e um dia ir morar em Paris.

O desejo era o seu passaporte, ele pensaria. Não, não teria coragem de cortar- lhe as asas, com advertências inúteis: “Assim como os rios, as mais sedutoras cidades do mundo têm suas margens. Você pode estar destinada a cair na pior delas.” (p. 33)

(…) Corre menina, corre. O mundo ficou tão pequeño quanto o fundo de uma agulha. Grande é o teu sonho de criança. (p. 34)

Na página 88 existe uma descrição perfeita do motivo que fazia (e ainda faz) muitos brasileiros do interior escaparem para as grandes cidades do Brasil ou do exterior.

A linguagem é contemporânea e o tempo não é linear. A narrativa acontece em épocas diferentes e em lugares diferentes. Totonhim jovem empreendendo sua grande aventura na metrópole; maduro, já na época das memórias. O narrador é onisciente: seletivo, vê tudo, sabe de tudo, sabe o que sente o personagem, opina. Essa obra é menos descritiva que as duas primeiras da trilogia. O mundo psicológico é mais intenso, há mais divagações sobre temas variados, como pequenas histórias dentro da história. Viagens, leituras, cinema, música. O tempo vai e volta, o protagonista agora é viúvo e está só. Os filhos crescidos estão pelo mundo. O narrador joga magistralmente com a forma trágica da morte da esposa do protagonista, baleada aos 50 anos pelas costas quando fugia de um assalto.

“Mais parece uma colagem de alguma matéria de jornal” (p.62) – e o narrador revela o pensamento mentiroso do protagonista que aumentou a idade da mulher e revela, que, na verdade, está separado, a mulher não está morta. Criativa essa forma de narrar! O narrador refere-se a “Totonhim” (de Antão, não Antônio como eu pensava) como “senhor”. Filho de Antão.

O tema da terceira idade é tocado sem panos-quentes. É ruim envelhecer pelo lado biológico, a perda de vitalidade e cabelos, as marcas do tempo, as constantes idas ao médico, os exames. A aposentadoria que mata. O taxista da Praça da Sé, com 70 anos, aposentado há 25 – o táxi o livrou de uma depressão – concorda:

Aposentadoria mata, meu chefe. (p. 62)

E a narrativa volta ao Junco, cidadezinha na Bahia onde Nelo, o primogênito, se enforcou. A mãe enlouqueceu, mas recuperou a sanidade e passa a linha pelo fundo da agulha sem óculos. Totonhim a reencontrou com 75 anos (em O cachorro e o lobo), mas e agora? Os pais estariam vivos?

A viagem de ônibus pau-de-arara da Bahia à cidade de São Paulo é dura, interminável, cheia de incomodidades e dormências, mas também cheia de esperanças e saudades. O espanto da chegada, o formigueiro humano que é a estação de ônibus em São Paulo. A solidão. Todos estão sozinhos. Essa parte emotiva da narrativa rumo ao desconhecido começa na página 91.

Lembram quando “antigamente” existia o vendedor de enciclopédias que ia de porta em porta? E as portas se abriam, sem medo?! Sim, essa profissão existiu no Brasil e foi a primeira (e efêmera) profissão de Totonhim em São Paulo. A narrativa da chegada quebra o estereótipo de uma cidade de São Paulo fria e impessoal.

Já leu “Paulicéia desvairada”, de Mário de Andrade? Um dos autores que Totonhim anotou mentalmente quando passou na biblioteca pública municipal Mário de Andrade.

Há o preconceito no sudeste contra o nordestino? O Brasil é um país racista ( sempre e ainda)? Basta ler os jornais ou acompanhar as redes sociais que você vai encontrar a resposta, embora os casos rotineiros não saiam nas notícias, são dolorosos igualmente. Esse tipo de obra deve servir como reflexão, auto-análise. O preconceito surge por causa do desconhecimento. De todas as formas, Totonhim teve uma melhor sorte que Nelo.

A trilogia fecha com chave-de-ouro: “Pelo fundo da agulha” termina a colcha de retalhos, o quebra-cabeça. Nesse livro são citados quatro suicídios – é um tema recorrente na trilogia. As sagas e dores familiares, essas, as que mais açoitam (na ficção ou na vida).

Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou pelo que deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo.(p.218)

(A minha admiração e homenagem a todos os nordestinos e nortistas que tiveram a coragem de sair das suas cidades/povoados para tentar uma “vida melhor”, normalmente em condições adversas e sem dinheiro. Em especial às minhas avós, e depois, à minha mãe, migrante aos 17 anos, que partiu de Feira de Santana para São Paulo, e que sempre soube transformar a dor em força, e ao meu pai (in memoriam), que aos 18 anos cruzou o Atlântico do Porto para fazer a América, um menino, que continuou menino toda a sua vida, com seu coração nobre e sonhador. O legado continua).

(…) E assim adormece. Com o coração mais leve, se sentirá um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha. (p.218)

Fernanda Sampaio Carneiro Resenha publicada no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2015, cujo texto postado aquí foi revisado por sua autora).